quarta-feira, março 19, 2008

15.

Deitado na cama de ferro, com a cabeça erguida em duas almofadas de sumaúma, Carlos, o Alferes, roda com enfado o convite manuscrito com volutas desenhadas a tinta da china. Pelo rectângulo da janela, diluída na espessura dos vidros, vê ao longe a encosta do outro lado do vale, virada ao norte, com seus pinheiros verdes e azuis, entrevê o voo largo de uma ave iluminada pelo sol da meia manhã de Setembro. O senhor seu pai acaba de passar a caminho da varanda, não tarda que arregace as mangas em dobras simétricas, puxando a cadeirinha de lona para junto do gradeamento de ferro forjado. Às vezes apetece-lhe recomeçar tudo de novo; regressar ao dia mágico em que uma nave voadora sobrevoou a Vila e ele compreendeu que o seu destino ficaria para sempre agarrado a essa imagem, à sombra ampliada do avião a atravessar o chão da veiga, a distorcer-se nos ciprestes do cemitério e na parede estreita da torre da igreja, a subir a encosta dos Matos, a aproximar-se por instantes da parte inferior da aeronave, até que uma e outra, sombra e aeronave, desapareceram para além da linha de cumeada. Nesse dia, nesse dia distante, soube que também ele haveria de sobrevoar a Vila e o mundo, que a sombra da sua aeronave correria ampliada percorrendo a veiga, a colina do Engenheiro, as encostas da Seixa, o mar oceano. Às vezes: como hoje, uma ave luminosa sobre a cumeada, o sol de fora a adivinhar-se no amarelo muito vivo dos losangos da colcha, o aroma do alecrim levantado no ar, o riso das crianças a correr atrás da camioneta da carreira.