segunda-feira, fevereiro 28, 2011

[o vendedor de astros]

Sinto-me outra vez tão cansado
de ter que carregar os astros
de um lado para o outro, de ter que arrumá-los no fim-de-semana
a procurar um espaço na garagem
entre fasquias, latas de tinta e peças dos restos de motores,
de ter que trazê-los de novo para a loja
muito cedo nas segundas-feiras de manhã.
Sinto-me tão cansado de ter que andar com eles às costas,
a expô-los na montra,
a escrever com marcadores de feltro
os papelinhos dos saldos,
a passar os dias inteiros à espera
dos tão escassos clientes
interessados neste primeiro quartel do século XXI
na poesia iluminada dos astros,
nesse fogo de combustão lenta,
nessa incandescência que vem
do lado de dentro das coisas,
nesta matéria afastada do câmbio,
neste produto menos valorizado hoi’ jem dia
que as batatas da Bretanha vendidas nas grandes superfícies
em saquinhos de três quilos
ao preço da uva mijona.
Sinto-me tão cansado,
sinto-me tão moído,
sinto-me tão farto de vender astros numa loja de comércio,
de ter que limpar-lhes o brilho
de ficarem tanto tempo nas estantes e nos expositores,
de vender ou procurar vender
a luz perfeita desses incêndios incombustíveis,
que chego a ter inveja dos funcionários públicos
que passam os dias a receber requerimentos
ou a preencher formulários
e a levar ao fim do mês
para casa
o ordenado inscrito no livro de estilo
dos vencimentos
do Estado.

terça-feira, fevereiro 22, 2011

[eram crianças]

Eram crianças como se tivessem holofotes.
Os homens chegavam durante a noite
e ficavam parados nos largos
a procurar nessa luz os segredos das renúncias.
E acreditavam que essa luz
vinha de um tempo anterior
ao tempo dos primeiros Livros.
E acreditavam que assim
podiam aproximar-se
da Palavra
reveladora.
Por isso rezavam.
Rezavam em voz baixa como se temessem
a reverberação dos sons
nos arames das vinhas.

Eram crianças como se fossem máscaras
de outras máscaras.
Os homens deixavam
os trabalhos dos campos
e procuravam nos guarda-fatos
o rosto verdadeiro
atrás do rosto devolvido pelos espelhos.
Os homens temiam enlouquecer
de nem terem um rosto.
E temiam que os seus rostos
estivessem escondidos
nos rostos das crianças.

Porque não havia nenhuma voz
e porque não havia
nenhum movimento
nem a cintilação de uma sílaba
nos muros das propriedades
ou nos andaimes das obras.

Porque
de súbito
só havia crianças.
Crianças.
Crianças como se fossem pedras incandescentes
tiradas de dentro dos cântaros.
Crianças como se fossem pistolas de plástico
e encerrassem nelas mesmas
a impossibilidade da revelação.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

[quadros de uma exposição, 1]


[reflexos na montra do Armindo numa manhã de Agosto de 2009]

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

[uma horta]

jcb




sábado, fevereiro 05, 2011

terça-feira, fevereiro 01, 2011

[Os antigos]

Noite sem nenhum elemento
singular: lua minguante
e a temperatura média dos meses de fevereiro.
A mulher levava uma candeia no corredor
que liga a cozinha a um dos quartos.
E de súbito tudo ficou iluminado
pelo clarão de um incêndio
a lavrar nas paredes. Foi
um instante breve. Logo regressou
a sombra. E só a luz ténue
da candeia espalhava de novo
os correntes rostos disformes dos antigos
na casa habitada pelo mesmo
sobressaltado silêncio de sempre.