sexta-feira, março 28, 2008

28.

Margarida (conta Maria Teresa) recorda o momento preciso em que a doença de adivinhar o futuro havia de tocá-la para sempre: nessa noite de quinta-feira não conseguia dormir. Durante a ceia havia um silêncio pesado. O pai evitara comentários sobre a chegada do primo Carlos; a mãe levantou-se da mesa para esconder as lágrimas. «Vem ferido?», perguntou. Que não. «Mas depois falamos do teu primo.» Não conseguia dormir: o rumor das águas de lima, o rumor das águas da nascente da mina; o alarido das águas crescendo no quarto: as águas do tanque, a água da ribeira do Fontão, a água da Presa do Moinho. Aos poucos, um a um, começava a identificar os ruídos todos da noite. Não conseguia dormir; as pálpebras cerradas a iludir a vigília. E de súbito, no escuro do quarto, vê a imagem do primo Carlos. Nítida. A imagem do primo: deitado numa cama de ferro da casa do largo, a luz da manhã a entrar pelo rectângulo da janela, a iluminar os losangos da colcha. De quando seria essa imagem? Da manhã do dia seguinte, de um dia qualquer de Setembro do ano seguinte, de um dia qualquer alguns anos depois? O primo regressado da guerra. A sua imagem nítida: deitado numa cama de ferro, os olhos atados a um qualquer momento de sombra que o haveria de acompanhar para sempre, que ficaria para sempre agarrado aos seus olhos, às suas mãos, à sua pele, à sua memória, à sua vida. Margarida não conseguia dormir: o rumor das águas de lima, o rumor das águas da nascente da mina, o alarido das águas crescendo no quarto, as águas do futuro crescendo no interior do seu próprio corpo.