domingo, maio 30, 2010

[Dois Poemas de Ivana Pavlek]

um.

Espera meu amor
estou na cozinha
tenho um horário fodido
a crise é uma coisa abstracta muito
bonita que ameaça o meu emprego no restaurante
não me olhes como se fôssemos a um
espectáculo de dança clássica quando
acabar os bifes
não tenho pachorra eu
quero é sair da grelha
e chegar a casa
e adormecer
a sonhar com os astros.


dois.

Eu sei que me amas
eu sei que sou a tua admirável princesa
eu sei que desejas sobre todas as coisas
acariciar a minha pele
como se pudesses tocar uma constelação de
luzes imensas
mas deixa-me respirar meu amor
deixa-me ser a anónima empregada do restaurante
por breves instantes
além dos teus ombros e das tuas mãos 
desampara-me a loja
vai ver se chove meu amor
quando chegar a casa depois do turno da noite
e só me apetecer 
dormir.

quinta-feira, maio 27, 2010

[Pequenas coisas]

Pequenas coisas
a nuvem
a água das nascentes
a cal nas paredes exteriores
o vento nos ramos das árvores
quase nenhuma palavra
o exercício de mover as contas do ábaco
na transmissão dos usos.

segunda-feira, maio 24, 2010

[Jardins Reais, 3]

Nenhum
eixo de simetria
resiste ao exercício
quase secreto
das raízes e dos ramos
dos cedros do Líbano
a estenderem-se
sobre os labirintos
e os caminhos
de saibro.
Nos projectos dos jardins
(no sonho de os erguer
como espaço
contrário
à natureza envolvente)
é o Tempo
o mais imperativo e decisivo
elemento.

[Jardins Reais, 2]

jcb

[Jardins Reais, 1]

jcb


domingo, maio 23, 2010

[Depois do Verão]

Deixavam as bicicletas na praia
caminhavam nas dunas a sentir a passagem do tempo
nas nuvens de cinza
no modo 
como as areias são arrastadas pelo vento
desenhando um ondulado 
roubado 
às vagas sucessivas
do levante.

Deixavam as bicicletas
como se pudessem não as encontrar de novo
como se fosse possível ficar para sempre
no labirinto dos meses depois do Verão

até perder-se a chave de casa
e a memória do que
nem chegámos a ser.

sábado, maio 22, 2010

[Escolhia as folhas]

Escolhia as folhas do
loureiro imunes ao relâmpago
a vagarosa elipse da semente do ácer
as represadas águas dos açudes
a mobilidade apenas do olhar

como se lhe fosse dado o fabuloso
e intangível e pacificado
poder das inércias.

terça-feira, maio 18, 2010

[Quase não se ouvia]

Quase não se ouvia sobre os telhados
esse vento 
dos primeiros meses
a desatar os nós dos fios 
a desarrumar as 
pedras das amuradas

tanto é às vezes o
que separa a lentidão e o erro
a glória e o talento.

segunda-feira, maio 17, 2010

[O que procuramos]

O que procuramos
é a incerteza ou a obscuridade
o rosto que está por detrás do rosto
a palavra além da palavra
o segredo das mesas
de jogo quando vamos
no escuro.

Foi num dia de Novembro igual
a quase todos os dias de Novembro
partimos por estradas secundárias
sabemos hoje que algumas
das vitórias
são a melhor evidência
dos naufrágios.

domingo, maio 16, 2010

[Nunca digas]

Nunca digas
«é tarde»

livra-te dos perigos
da redundância.

[Quero também regressar]

Quero também regressar
mas deixar
de lado a imagem
da luz poisada
nos pátios. 

Anoitecia cedo
era já depois do Verão
tu acendias o lume
como se alguém pudesse aparecer
e trazer
de longe
o livro
das perguntas.

[Estávamos desprotegidos]

Estávamos desprotegidos
tínhamos quase tudo
um território imenso separava-nos
dos afectos
nenhum mapa nos guiava pelos caminhos de asfalto
riscados a meio da noite
nas curvas de nível
das florestas.

Uma coisa apenas nos faltava
lembro-me:
a consciência de que
tínhamos quase tudo.

quarta-feira, maio 12, 2010

[Agora a sério, a Poesia]





A aparição de uma corça no Rio Mente, zona de Pejas, às 16:40 h do dia 10 de Maio de 2010.
Fotografias de Manuel João Vilanova.

[7: Ainda uma última versão]

Em nenhum livro de versos
deixes poisar
a vagarosa nuvem
dos consensos.

[6: Outra versão]

O poema
ou é o barco carregado de pérolas
a ir ao fundo
ou não é nada.

[5: Outra versão]

para MF

É na simetria
e na tijoleira dos pátios
ou na iluminada cal
que começa a poesia:

entre o azul e a pedra
da água; entre
a migração eluvial
e a nascente.

O resto é coisa
de geração nova
que confunde o verso
com a prosa.

[4: Outra versão]

Nem um remo estendas
nem um leme
ao barco dos naufrágios.

[3: Outra versão]

Antes os vidros debaixo da língua
ou as cápsulas
de estilo
dos venenos de água.

terça-feira, maio 11, 2010

[2: Outra versão]

Em vez da simetria
é a desordem natural das coisas
o que mais leva ao poema.
Ou a usura e a arbitrariedade
da pedra disparada
contra o remanso
dos açudes dos livros.

segunda-feira, maio 10, 2010

[Obviamente tudo isto]

Pouco poderá ser o que leva ao poema se não
for a desordem natural das coisas. À simetria
ou à claridade extrema de um céu azul
só deveria ser dado entrar nos versos por
oposição à injustiça de poderes
devassados. De qualquer modo: em
vez de loa aos remansos
antes o poema ao serviço
da usura: onde possamos
abrir a cicatriz da intranquilidade
ou adormecermos vencidos de já nos
bastar a deserção.

Obviamente tudo isto se
o poema obedecesse a uma regra de estilo.

[Tudo é um novelo]

É antes do povoamento
que o povoamento
começa? Na água ou na aluvião
ou nos relevos

que levam a uma
e não outra realidade
territorial?
Nos bosques densos de caducifólias

laboriosos animais enterram
no húmus as folhas pretéritas
da mesma

transformada
terra vegetal.
Que correspondência existe

entre os muros
das propriedades
e as paredes das casas
e esta antiquíssima

matéria inflamável?
Uma criança
corre a caminho dos largos
e ergue a sua voz

como um clamor
a invocar os astros
na manhã de cinza.

Tudo é um novelo indecifrável
de relações que ligam tudo
a coisa nenhuma?

quinta-feira, maio 06, 2010

[O Verão quente]

Ficaram primeiro rendidos ao fascínio das frases,
à melancólica exultação das pausas, à capacidade
de evocação de coisas e lugares. Foi no ano em
que as águas desceram até às curvas de nível
da raiz do junco e os retornados ergueram nos
pátios o desenho das periferias urbanas,
as fasquias e os caixotes de contraplacado,
os panos de tenda, as tábuas encostadas
às paredes de cimento dos anexos. Em cima dos
palcos, nas varandas, nos muros dos tanques,
os acrobatas ágeis moviam archotes e
iluminavam as plateias com o fascínio das frases.
Os altifalantes do largo, a música das fitas de
plástico e a cerveja a correr nos balcões metálicos
dos bares, os discursos na escola primária,
os cartazes afixados na porta dos armazéns
ou distribuídos à mão em dias de mercado. E só
depois o Verão. E eles rendidos ao lume
avassalador dos archotes, ao fascínio das frases.

[w. in prog.]


quarta-feira, maio 05, 2010

[Como se lhe fosse permitido tanto]

Como se lhe fosse permitido tanto: perder
tudo: um nome os bens uma reputação 
uma biografia e estar isento 
da compaixão.

[Os teus amigos enviam mensagens a gabar os versos]

Olhas os guindastes das obras esse
movimento quase perfeito da economia
a construir a sua tão densa e apertada teia não chove
há quase uma semana isto não deve

estar ainda devidamente estudado a meteorologia
às vezes parece uma ciência vacilante à procura
de objecto. Despedimentos: a arte valoriza-se nos mercados
quando os guindastes ficam parados como catedrais

suspensas da evolução das margens de lucro os
teus amigos enviam mensagens a gabar os versos
a dizer que curiosamente estão a aprender
a gostar de poesia lá vêm de novo as nuvens

desenhadas no mapa das previsões logo
vi. O melhor é desarmá-los não vá o consenso
e a falta de obscuridade metê-los a todos e mal que ficavam
no retrato de mãos dadas com a lírica.
[Acrílico sobre madeira. 2.20*0.50 m]



terça-feira, maio 04, 2010

[Também eu quero tanto ser um poeta moderno]

Juro que nunca
mais escrevo pedra
nem álamo.

domingo, maio 02, 2010

[Chamo-me Luísa]

Chamo-me Luísa. Sou uma personagem de ficção. Devem conhecer-me, pelo menos, do Primo Basílio. Mas sou também a drª Luísa Fragoso duma novela reles do Manuel Arouca, a Maria Luísa dum romance notável e esquecido de José Lins do Rego, a mulher do conto do Onésimo que saiu dos Açores na ilusão de que é possível fugir ao destino que o acaso nos ditou, a personagem obscura ou exaltante de um outro livro cujas páginas nunca te será dado leres. Já fui concubina e princesa, criada de servir, engenheira electrotécnica, assalariada rural no Alentejo. Já vivi no Iémen, numa cidadezinha da Bretanha rodeada por um bosque, em Angra do Heroísmo, em Portimão. Já fiz de tudo. Só nunca fiz de mim mesma. E por isso nunca soube o que era (de facto) acordar ou sentir o desejo ou o cheiro da terra molhada, ter frio, ter medo, amar, ser feliz. É verdade que já caminhei sobre o fogo, que já morri, que já ressuscitei, que já fui condenada ao degredo, que já conheci a glória, que já traí, que já dormi no deserto, que já fui heroína numa batalha em que os guerreiros mais corajosos acabaram por desertar. Mas fui sempre, senti sempre, por interposta pessoa. Por isso chego a pensar que trocaria tudo, sei lá, por um instante em que pudesse (de facto) sentir. Podia ser a dor, tudo bem. A dor que me trouxesse as lágrimas mais concretas. E que essas lágrimas me corressem na cara, sim, mesmo que então me descobrisse a mais desgraçada das mulheres à face da terra.