quarta-feira, dezembro 28, 2011

[cinema]

*
Não digas nada
que venha
no guião

*
Acredita que a tarde de sol
da cena número doze
ainda hoje me aquece

*
Eu apontava-te a pistola
na esperança de que pudesses
acertar-me

*
Amo-te meu amor
como se fosse verdade
o papel que represento

quarta-feira, dezembro 21, 2011

[o rastilho das legislaturas]

Só um poema de novo interessa neste tempo
de vigilância sucessiva. Um poema
sobre a deflação e o silencioso e rapace
voo da coruja. Sobre a irrealidade
material dos orçamentos. Sobre as técnicas
de diluição do défice nas
folhas remuneratórias das repartições.
É certo que desertaram os arautos

migratórios e se esvaiu assim
a fabulosa retórica de acreditarmos
ser possível de cabeça para
baixo sobreviver sem a protecção
civil nem a ajuda externa no fundo
de um poço com água pela metade
dele. Mas há terreno tanto ainda
para estender de um a outro

lado das praças o fio cinzento
do rastilho das legislaturas.
E por isso aqui se escreve que
chegou depois de tantos anos
o tempo do poema como quando
na tropa os sapadores procuram em pânico
nos livros de instruções o segredo
dos instrumentos de deflagração.

terça-feira, dezembro 20, 2011

[pr: memória das histórias da infância, 2]




jcb. pastel sobre cartão.

segunda-feira, dezembro 19, 2011

[pr: memória das histórias da infância, 1]




jcb. pastel sobre cartão.

quinta-feira, dezembro 15, 2011

[1866-1944]



jcb. pastel sobre cartão.

[em dresden no inverno de 1909]



jcb. pastel sobre cartão.

[direcções]




jcb. pastel sobre cartão.

[PONTO DE SITUAÇÃO]

O folhetim fica de molho... Até ver.

quinta-feira, novembro 17, 2011

12.

Isto já vinha de princípios do ano. Mas as determinações da administração é muito vagarosamente, e não raro de um modo difuso, precedidas em regra de sinais contraditórios, que chegam ao terreno e produzem efeitos concretos. Na praia de Monte Gordo poucos sabiam que o ouro do Brasil abundara e começava a escassear e que o muito que chegara à metrópole havia sido desbaratado em abastança pacóvia, lausperenes e indulgências; poucos sabiam que um poder reformador se preparava para devolver à Fazenda Real o que lhe era de direito e que os diplomas legais se sucediam em favor desse interesse público que em regra é foda ou canelada para os interesses individuais de cujo somatório seria suposto que resultasse; poucos sabiam que D. José, com enfado, nos intervalos do torno, assinava despachos de organização administrativa que começavam a dificultar as folgas aos funcionários dos impostos e, do mesmo passo, impunham ónus crescentes aos armadores de Castela; poucos sabiam que D. Carlos III não se ficara e taxara a valores proibitivos a importação de pescado dos mares portugueses; poucos sabiam que, em resposta, medidas fiscais foram promulgadas de modo a impedir que a sardinha galega fosse vendida no norte do território nacional; poucos sabiam que a diplomacia entrara em guerra, disparando de um e outro lado da fronteira; poucos sabiam que o Marquês de Pombal decidira, como agora em tempos da troika não seria mau decidir-se, transformar a crise em oportunidades: isentou-se de taxas a comercialização interna do pescado algarvio; revitalizou-se a indústria da salicultura, a economia das marismas; e Frei João de Mansilha foi chamado por Sebastião José para que, em segredo, e acenando com privilégios, aliciasse (que é um modo de dizer) a burguesia nortenha para o negócio das pescas do Reino do Algarve: em Monte Gordo podiam eles instalar os seus telheiros e salgas e cada um deles, em nome do interesse público, enriquecer ancorado numa política que os defendia sem pôr em causa o bem comum da pátria.

Poucos, nestas partes afastadas do mundo, sabiam das movimentações diplomáticas, das guerrilhas de secretaria: mas os efeitos, aos poucos, chegavam aos areais da praia: os catalães viam-se obrigados a mudar de rumo; António Martins Mascarenhas ria-se por dentro e achava que verdadeiramente começava a chegar o seu tempo.

Mal sabia ele que este pequeno fio de água se avolumava, crescia em torrente, desaguaria em breve na baía do Monte do Ouro com estrondo e espalhafato.
11.

Faça-se um intervalo (antecipando o que há-de vir) apenas para dizer-se que quase sempre os grandes amores, senão sempre, nascem das coisas mais prosaicas. Uma delas é a circunstância. O corrente, para depois justificarmos um encontro que parecia desenhado nas estrelas, é invocar elementos tão abstractos como o destino: isso que serve para justificar tudo o que acontece e tudo o que não chega a acontecer. Pois que grande habilidade quando Leonardo viu a pele muito branca da filha de António Martins Mascarenhas e o seu perfume se insinuou depois de tanto tempo em que as poucas mulheres que vira era como se não tivessem pele e, oh, sentiu que o punhal da paixão o atravessava. É isto que designamos por destino? Pois que seja: olha a grande habilidade. O certo é que o destino, por interposto Leonardo, há muito que não topava com uma circunstância assim tão propícia ao exercício do seu mister.

quarta-feira, novembro 16, 2011

10.

António Martins Mascarenhas era um dos mais dinâmicos estrategas da guerra diplomática que neste ano do Senhor de 1773 conhecia o auge. Não o movia o interesse público: mas era em nome dele, como é quase sempre, que defendia os seus interesses próprios.

Os interesses não é de costume digladiarem-se em podendo juntar-se. Os armadores catalães, que dominavam a praia com quase noventa das cem artes de xávega que aí concorriam, procuravam chamá-lo à razão: a situação interessava a todos.

Mas António Martins Mascarenhas via longe, que é muitas vezes um modo de vermos curto: e já imaginava, expulsos os catalães aos seus domínios, ser ele a dominar o empório da sardinha. Conspirou. Moveu cordelinhos. Fez aquilo a que hoje chamaríamos lóbi, termo que recentemente deixou de ser pejorativo para ser tão gabado.

António Martins Mascarenhas, vírgula: o nome de Mascarenhas constava de alguns dos relatórios enviados ao Paço. E neste mês de Setembro de 1773, enfim, sorri de ver que o mover das peças no tabuleiro legislativo, muito por sua iniciativa e empenho, começa a levar os espanhóis ao abandono dos areais da baía de Monte Gordo, que alguns designavam já por Monte do Ouro.

A coisa começava a compor-se.

terça-feira, novembro 15, 2011

9.

As pescarias de Monte Gordo, repetindo-se a história de quinhentos, sobretudo aproveitavam aos cofres do outro lado da fronteira. Os armadores catalães, atraídos pela fama da riqueza de peixe miúdo, vieram e fugiram aos impostos como se fizera sempre no individual interesse de todos menos no interesse do bem colectivo. O pescado vendia-se nos areais sem passar pelo Registo de Portagem ou era baldeado em águas oceânicas, de embarcação para embarcação, e levado directamente a Ayamonte como se fosse pescado em mares de Castela. Os cobradores de impostos, entretanto, nos intervalos de receberem alcavalas e calarem-se, faziam sestas prolongadas na repartição.
8.

A corda tinha deslaçado e Sebastião José compreendeu que a coisa não avançaria com falinhas mansas. E declarou guerra a Castela. Mas era ainda a diplomacia o que comandava o processo: os diplomatas retomavam as mesas de jogo para que não fossem necessárias tropas no terreno: em vez dos tiros que seriam o recurso sem a presença e a actuação deles, a diplomacia movia as peças no tabuleiro legislativo.
7.

A diplomacia é a arte de esconder o jogo e procurar foder o parceiro com elegância. Às vezes as cartas estão todas em cima da mesa e faz-se de conta que há jogo escondido. Um sabe que o outro sabe o que o outro sabe e ambos fazem de conta. E, no entanto, quem vê as cartas e sabe que não há jogo escondido, mas faz de conta que acredita que há jogo escondido, deixa correr a coisa elegantemente até a corda começar a deslaçar. Então é altura de o que está enfraquecido informar superiormente que o adversário enfraqueceu tanto que é tempo de dar-lhe o golpe final; o que está a vencer informa de modo igual o seu governo. Os diplomatas saem ambos por cima, o de um lado e outro, e lavam as mãos com elegância. Entretanto fizeram ambos um excelente e reconhecido trabalho e haverão de receber medalhas dos respectivos estados pelas mesmas e diversas razões.

As medalhas são concedidas em sessões solenes às vezes em datas não muito afastadas.

segunda-feira, novembro 14, 2011

6.

Cinco mil pessoas é diferente de uma mais uma mais uma até cinco mil. Cinco mil pessoas é um ponto num mapa, uma generalização num relatório entregue a Sebastião José sobre a economia do Reino do Algarve. Uma mais uma mais uma até cinco mil é uma pessoa e outra e outra, um e outro rosto, um nome e outro nome até à soma de cinco mil nomes e cinco mil rostos.

Mas a Coroa, preocupada com o interesse público, pouco curará de saber de nomes e rostos. Nos relatórios enviados a Lisboa não existe nenhum João Martins, de alcunha o Joanete, que cortou vinte e seis pinheiros na mata do concelho; nem consta nenhum Romão Pereira nem nenhum António Martins Mascarenhas, este que acaba de acusar aquele do roubo de pão. Existe apenas o conjunto abstracto que resultou do somatório de parcelas concretas.

António Martins Mascarenhas, vírgula: este armador de xávega há-de constar de mais que uma petição, de mais que um relatório, de mais que um anexo dos arquivos do Paço. Não Romão Pereira, claro, simples costeiro sem nome em autos que não sejam de querela e no papel de querelado. Mas este António Martins Mascarenhas, vírgula: os armadores catalães não podem vê-lo e é a ele que acusam das mudanças em curso e que, garantem, a ninguém acabarão por aproveitar. Acusações antigas, de resto, como haverá de se ver.

quarta-feira, novembro 09, 2011

5.

O interesse público vê a fuga aos impostos, ou apenas os cofres públicos quase vazios, com os maus olhos com que é suposto que veja.

O tgv (quer dizer: a expansão marítima) exigia pulso firme na percepção das receitas. Reformaram-se forais, mexeu-se em mordomias antigas de senhores com brasão de granito nas empenas das casas e camas de dossel, apertou-se ao povo um pouco mais o gasganete em nome do interesse público: construíram-se naus, desenhou-se um império.

E as modas pegam. D. Manuel, já no século XVI, recebe um relatório que fala de sítios ermos de areia, na foz do Guadiana e na contígua linha de costa, onde a riqueza invulgar de pescado não acrescenta um ceitil ao erário da Coroa: é a Castela que a apanha do carapau e da sardinha aproveitam. Em 1512 manda el-rei português que junto ao estuário seja edificada uma vila capaz de impor a prática de uma soberania que até então o era apenas de direito. Eis o programa: controlar os ataques corsários e a avidez mourama, inscrever no território as marcas efectivas do poder central, atacar o contrabando, fiscalizar, arrecadar receitas.

É assim que nasce Santo António da Foz do Guadiana por ordem real. Como se os lugares, as vilas, as cidades, se edificassem por decreto contra a geografia das necessidades, dos sonhos e da necessidade deles. Acontece, portanto, que antes ainda dos éditos, antes ainda das cartas de privilégio, já num desenho de Duarte de Armas o lugar é referenciado com topónimo castelhano: Arenilha. Já ali, portanto, antes da decisão real de mandar construir o aglomerado, havia gente a viver em barracas e a dar-lhe um nome. É bem feito.

Mas era a poente, não longe, nos areais abertos à baía de pescado abundante, indiferente às cartas de privilégio ou à outorga de regimentos de alfândega, que o povo começava a juntar-se. Santo António de Arenilha haverá de ficar sem gente, haverá de afundar-se nas águas do rio; e o contrabando haverá de persistir, como haverão de persistir a fuga aos impostos e a imposição dos interesses individuais, de gente livre, contra os interesses do Estado e as correlativas determinações de D. Manuel e de D. João III. E é por isso que neste mês de Outubro de 1773, pelas contas do jovem Leonardo Loppes de Arouca, o número de almas que na praia de Monte Gordo vivem (supondo que a cada indigente corresponde uma alma) ultrapassa os cinco mil.
4.

A liberdade individual é contrária aos interesses do Estado. O Estado prossegue o bem comum, o interesse público. Promulga leis, regulamenta. E a liberdade individual deve sujeitar-se às regras que garantam e assegurem o primado de um interesse mais vasto: o interesse comum. O ponto é que o interesse comum nunca é o resultado da soma dos interesses individuais. E a soma dos interesses individuais esbarra nos superiores interesses do Estado.

Os pinheiros da mata do concelho estão ao serviço do interesse público. Os pinheiros são cortados por ordem do Procurador do Concelho e vendidos na outra margem do rio; em Espanha. João Martins, de alcunha o Joanete, nunca usufruiu, directamente ou indirectamente, da venda legal e regulamentar dos pinheiros bravos. Uma noite resolveu cortar vinte e seis pinheiros e vendê-los a um espanhol que, de costume, os comprava mais caros ao Procurador do Concelho. Pela primeira vez iria usufruir de uma parcela de um bem comum. O certo é que foi apanhado e não é crível que o crime fique sem o castigo que a lei regulamenta e o interesse público recomenda.

segunda-feira, novembro 07, 2011

3.

Leonardo olhou o desenho do enviado da Corte e fascinou-o essa representação do real. Não tanto por o desenho representar a realidade: mas por reinventá-la.

É certo que se implantam em três linhas ao longo de uma légua as cabanas de colmo e as poucas casas de adobe e cobertura de telha onde vivem os mais de cinco mil habitantes da Praia de Monte Gordo: mas era preciso um desenho para representar essa realidade. Porque de nenhum ponto se tem uma percepção do conjunto. A quem chega pelo Norte, pelas marinhas do esteiro da Carrasqueira, o aglomerado novo há-de parecer um pequeno conjunto de choças erguidas por entre o ondulado dos relevos dunares; a quem chega do nascente, das bandas do Guadiana, seguindo pela vereda que corre na orla do pinhal do concelho, a imagem que se realça é a da igreja de Nossa Senhora das Dores e de uma espécie de largo que não é senão um breve descampado de areia; antes, de um e outro lado, dez cabanas iguais. E tudo é tão igual que estando em qualquer lugar do aglomerado é como se estivéssemos em todos os outros.

Mas o desenho do enviado da Corte reinventa cada minúscula parcela, esbate a ideia de um lugar abstracto onde se misturam patrões de xávega e gente adventícia fugida à justiça por delitos e más obras: uma rua específica, uma cabana específica, uma específica casa de adobe: onde vivem, onde trabalham, onde vagabundeiam, onde circulam aladores e mestres de alar, cirurgiões e estanqueiros, carpinteiros e soldados de infantaria, capitães e tanoeiros, sapateiros, costeiros, padeiros, mestres de iate.

O mundo é um desenho. E a realidade é a representação que se faz dela.

sexta-feira, novembro 04, 2011

2.

Um homem, na mata pública, cortou vinte e seis pinheiros verdes. Estavam arrumados em toros de nove palmos pelo comprido no interior de uma lancha que não tardaria a atravessar o rio quando o homem foi surpreendido pelo Procurador do Concelho. Tanto era certa a consciência de que cometia um crime: procedera ao corte das árvores durante a noite; e era madrugada ainda quando, furtivo, acabava a tarefa.

A Leonardo começara sobretudo por surpreendê-lo a determinação do Procurador: quase a ira. Tinha dificuldade em compreender esse empenho contra um homem que, de acordo com o próprio denunciante, em sua defesa se limitara a afirmar «ser um pobre».

O Procurador acusou-o do roubo dos pinheiros e de posse de arma ilegal. E o escrivão quase sorriu de ver como as histórias se repetiam e como os acasos eram tão favoráveis às instâncias dos poderes: quis o acaso que naquele dia o Procurador se tivesse levantado invulgarmente cedo e topasse o homem pronto a largar-se da margem com os toros de nove palmos; quis o acaso, ainda, que quatro pessoas ali passassem nesse preciso momento e testemunhassem o denunciante a retirar ao denunciado, por cautela, uma faca que trazia no cós do calção e se confirmou ser flamenga, «de ponta aguda penetrante», com o seu cabo de madeira lavrada e um anel de metal amarelo; e quis o acaso, finalmente, que dois soldados artilheiros da guarnição da Praça ali estivessem em lugar de costume tão deserto e assim o levassem logo para o posto da guarda do Poço da Areia enquanto o Procurador rumara a denunciar o roubo «e mais perfídias» ao doutor juiz de fora ou a quem em juízo o representasse.

O homem, João Martins, de alcunha o Joanete, que cortava os pinheiros e se preparava para vendê-nos na outra margem por desafio de um espanhol que vivia de argúcias, não saberia defender-se por não compreender as razões de o que fazia ser um crime. Quer dizer: não desconhece que apenas é possível cortar pinheiros da mata por ordem do Procurador; mas não compreende porque se diz que os pinheiros são uma riqueza de todos quando sabe que nunca a ele essa riqueza aproveitou e tem por certo que nunca haverá de aproveitar-lhe.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Capítulo III

[Monte Gordo, Outubro de 1773]

1.

Leonardo Loppes de Arouca tem uma expressão curiosa no seu livro de apontamentos: «este fascinante caos urbano de vária gente». É uma frase quase inverosímil para a época. Leonardo vem de boas famílias de Faro, é um jovem de vinte e um anos, e a praia de Monte Gordo, vê-se, mexe-lhe com a estrutura. A frase equivaleria hoje a falarmos com o mesmo entusiasmo das periferias urbanas: do caos de anexos de tijolo e prumos metálicos, da fascinante desordem e rendilhado das fasquias e dos andaimes das obras, dos impasses, dos loteamentos de ruas desligadas, de passeios interrompidos, de azulejos decorativos nas varandas.

Leonardo Loppes de Arouca, escrivão da Câmara, tem como função essencial dar conta dos autos de querela que na dita praia ocorrem com frequência desusada. Aí, na cabana de aposentadoria do juiz ordinário, às vezes com enfado, quase sempre com curiosidade e aprazimento, dá nota das ocorrências vulgares. Os autos de denunciação, no entanto, não é tanto ao corregedor ou ao doutor juiz de fora que os redige: primeiro os aproveita como matéria para a compreensão do mundo.

quarta-feira, novembro 02, 2011

Capítulo II

[Pombal, Setembro de 1779]

O homem que entra na sege parece um mendigo. Caminha devagar. Tem uma manta sobre os ombros, um gorro de lã enfiado na cabeça, umas calças largas de saragoça. É ainda escuro. Dois jovens ajudam-no a subir o degrau, a entrar, a sentar-se. A cena tem algo de desconcertante: uma mistura de miséria e solenidade, de vulgaridade e nobreza. As cortinas de cabedal fecharam à praça o espaço interior da sege e na manhã de Setembro começou por ouvir-se o ruído metálico das rodas a correr na pedra do pavimento, o eco dos cavalos a trote.

segunda-feira, outubro 31, 2011

Capítulo I

[Marco Polo]

«As Cidades Invisíveis» são uma metáfora do sonho das cidades. Não apenas das cidades longínquas que nunca visitámos, ou já derruídas, e que, por isso mesmo, dão espaço à imaginação e à mitificação das praças, das ruas, dos palácios, dos panos de muralha: «As Cidades Invisíveis» são uma metáfora do sonho de todas as cidades. Mas o sonho e as realidades concretas, não raro, misturam-se. Italo Calvino, falando do sonho, escreve sobretudo sobre a realidade que se esconde sempre aos olhos de quem visita as cidades; e que se esconde, mesmo, aos olhos de quem nasceu ou vive numa cidade e que nunca haverá de conhecê-la além da ilusão do olhar mais próximo. Todas as cidades são cidades invisíveis: o que verdadeiramente lhes pertence, o que elas verdadeiramente são, faz parte de um segredo sobre o qual é permitido especular até aproximar a realidade e a invisibilidade dela. O mais certo é que Marco Polo, falando a Kublain Kan sobre cidades imaginárias, não fale senão dos segredos intangíveis de cidades reais, materiais, verdadeiras, concretas.


Uma Arte de Arrastar

(Folhetim)


quinta-feira, agosto 11, 2011

[as Horas]

Não sei neste momento exactamente onde tenho guardado o relógio do meu avô. Procurei nas gavetas não o encontro. E no entanto cheguei a acreditar que o teria sempre momento após momento a meu lado. Comigo. No pulso ou no bolso das calças de guardar a chave de casa ou preso por uma corrente de prata a uma presilha. E no entanto neste momento exactamente não sei onde pára onde terei guardado o relógio do meu avô.

Os homens do campo sempre apreciaram os relógios enquanto objectos num certo sentido redundantes mas simultaneamente mágicos. Por trazerem uma ordem aos desacertos do tempo. Andávamos por exemplo nas encostas da presa do padre pedro a cortar nos salgueiros as varas dos cestos das uvas e o meu avô parava olhava o céu e dizia
já devem ser umas seis da tarde.
E então olhava o relógio e confirmava como se a tarde estivesse certa com a ordem natural das coisas
pois bem me parecia faltam quatro minutos para as seis.

O meu avô ofereceu-me o relógio quando estava a morrer. Procuro nas gavetas e não o encontro. E de súbito é como se mais nenhum relógio do mundo me pudesse devolver
as horas certas.

[a reunião da troika sobre o sector florestal]

jcb







[uma noite nos estradões das florestas]

jcb

terça-feira, agosto 02, 2011

[para adquirir RUMOR]

Relembro: para adquirir um exemplar de RUMOR os interessados enviam um mail para blogcacela@gmail.com indicando endereço postal completo e número de contribuinte (para ser possível a emissão de recibo). Nesse mail indicar-se-á que se procedeu já à transferência bancária (no valor de 11 euros – não é necessário comprovativo) para a seguinte conta (NIB):

0033-0000-00060303349-05.

O livrinho seguirá de imediato por correio normal.

[uma recensão a RUMOR]

[in Expresso, Atual, 30 de Julho de 2011]


Nada justifica que um poeta com provas dadas como José Carlos Barros (n. 1963) continue a publicar apenas em edições de autor ou à conta de prémios regionais. Mas o novo livro, «Rumor», é uma vez mais uma edição quase clandestina, com tiragem de cem exemplares e venda individualizada (através de blogcacela@gmail.com). Autor de «Uma Abstracção Inútil» (1991), «Todos os Náufragos» (1994), «Teoria do Esquecimento» (1995), «As Leis do Povoamento» (1996) e «As Moradas Inúteis» (2007), Barros é transmontano, vive no Algarve e mantém o blogue Casa de Cacela (http://casa-de-cacela.blogspot.com), onde apareceram originalmente vários destes poemas. A memória e a simplicidade são elementos centrais, embora coexistam com apontamentos políticos cáusticos. Os poemas, discretos e cuidadosos, estão cheios de vislumbres da infância, imagens familiares, secretos envios amorosos. O tema dos objectos antigos e dos usos antigos é recorrente, mas não existe nenhuma nostalgia, somente uma sensação de distância, madura e entristecida, face às coisas simples. Referindo-se à pintura rupestre, o autor fala de uma representação do real «contaminada pelo que sabemos». A poesia é a forma decantada dessa representação, feita de figuras enigmáticas e alusões mínimas, uma bacia de plástico com água da chuva, máquinas de luzes, uma torneira, um álamo, símbolos pessoalíssimos de um desejo urgente de pureza. A poesia, escreve Barros, é uma forma de redundância. Mas é também uma forma de evidência: «era no tempo da literatura/ dizíamos ‘a água dos tanques’/ e ficávamos à espera da reverberação dessas cinco sílabas/ ou cortávamos vagarosamente/ um ramo/ da árvore dos significados.»

Pedro Mexia

capa definitiva





segunda-feira, julho 18, 2011

[se o poema]

se o poema pudesse ser um número
ou uma pedra de calcário
se o poema pudesse ser uma arte produtiva
se pudesse não
apenas descrever a obscura luz de um poço
mas simultaneamente mover os rolamentos da
máquina hidráulica que
traz o balde de zinco
do mais fundo dos veios da água
se o poema alinhasse um bloco desacertado
e depois outro
erguendo em linhas a direito
os muros das propriedades
se o poema derruísse os taludes instáveis das áreas de risco
se delimitasse os
tão desejados perímetros de segurança
se curasse as doenças de pele
se tivesse os efeitos de um protector de
ecrã total
quando apenas o mundo nos pede a
contínua exposição solar ouvindo o
rumor imperceptível do levante
se o poema fosse uma farmácia ou
uma oficina de bicicletas
se disparasse balas verdadeiras contra os facínoras
e o seu eco nos acompanhasse nas
noites infelizes da insónia revertida dos espelhos onde
nos olhamos no dia vinte e
sete de novembro de todos os anos
se o poema nos acordasse quando os
exércitos precisam de reforços
se um poema ganhasse as eleições intercalares

eu sei
profundamente sei meu amor
que me haverias de enviar um mail
ou um sms
a dizer que desististe
que partiste com as aves da península
para nenhum
lugar
e que gostaste de conhecer-me
e que talvez um dia seja possível encontrarmo-nos de
novo
para mudarmos de sítio
as pétalas
inúteis
das frésias
dos jardins

quarta-feira, julho 13, 2011

Já à venda

O livrinho de poesia já está à venda. Numa tiragem de cem exemplares numerados.

Para adquirir um exemplar de RUMOR, entender-nos-emos no seguinte: os interessados enviam um mail para blogcacela@gmail.com indicando endereço postal completo e número de contribuinte (para ser possível a emissão de recibo). Nesse mail indicar-se-á que se procedeu já à transferência bancária (no valor de 11 euros) para a seguinte conta (NIB):

0033-0000-00060303349-05.

O livrinho seguirá de imediato por correio normal.

quinta-feira, junho 02, 2011

em breve


RUMOR. Poemas. Edição do autor. Tiragem: 100 exemplares numerados. A sair nos primeiros dias de Julho.

terça-feira, maio 17, 2011

[e depois o inverno]

Varas de lódão
pranchas nas cancelas das
hortas esculpidas a navalha
uma cruz desenhada com tinta vermelha
do lado de dentro
do portão das lojas
dos animais

e depois o inverno
o vento a dobrar os troncos dos
álamos brancos
a chuva no cimento dos pátios
o território imenso de um verão
que escreveu a direito nos fios
emaranhados
dos novelos
de ráfia

Era o tempo da infância
corríamos em direcção a
lado nenhum com lanternas acesas
a luz de mercúrio desenhada
no espelho de água
das represas

Habitaremos sempre esse
território devastado pelo granizo e
o lume incombustível

é aí que
ainda hoje nos dói quando
estamos doentes
ou acordamos num largo a meio da noite
e o mundo todo é só o
que vem desenhado
nos mapas
antigos
das províncias

[não era ainda a época dos naufrágios]

Não era ainda a época dos naufrágios
uma hélice triturava a
usura dos ofícios
os espíritos mais puros do meu tempo enriqueceram a
vender caixas de fósforos
um candidato mostrava que
não tinha nada na manga
fabricava permanganato
oferecia petróleo para a luz trémula dos candeeiros
das casas
nos intervalos
da campanha

Uma árvore
ou um rio

tão distante de nós ia ficando o que mais amávamos
lembro-me de conduzirmos os barcos
nos canais de rega
como se fossem as naus
dos descobrimentos

sabíamos o nome
delas todas
acreditávamos
ainda
no azul tingido da nuvem
do futuro

terça-feira, maio 10, 2011

[não devia chegar de noite]

Não devia chegar de noite a estes lugares
onde tudo o que um dia foi
parece emergir do fundo dos poços dos quintais
eco de outras vozes mais antigas
reverberação insidiosa dos segredos
palavras roídas pelo lado de
dentro das próprias frases

Fantasmas vagueiam em
silêncio contra o
fundo indefinido dos pinheiros bravos
o meu avô a colher as maçãs camoesas
e a guardá-las no cesto de vimes entrançadas da
presa das tílias
o táxi do senhor adriano a aproximar-se
vagarosamente da
bomba de gasolina
uma criança
que podia ser eu
a correr de olhos vendados nos
andaimes da obra dos bombeiros
voluntários

A sombra

mancha de óleo nas paredes das casas
cobrindo o alcatrão da estrada do rio

parece encerrar o tempo nas
suas cápsulas
de vidro

E não há um rumor
não há um único movimento
os ponteiros do relógio da torre parados a
meio da noite
entre as quatro
e as cinco horas
da tarde

quinta-feira, maio 05, 2011

[a luz de que fugíamos]

era em vez das constelações
escolhíamos o lugar da sombra
erguíamos uma pedra outra pedra
a água chegava-nos à cintura
nunca um muro juntou tantas coisas de um e outro lado
era como se fosse o contrário de uma fronteira
e fizéssemos contrabando de açúcar nas manhãs muito frias
de novembro
quando os guardas-fiscais ficam até tarde no posto
em redor do lume
e o amor acorda a meio da noite

era no tempo em que fugíamos da luz
porque não procurávamos outra coisa
a luz
a luz de que fugíamos ao seu encontro

quarta-feira, maio 04, 2011

[perder a memória]

perder a memória
como quem perde o barco que une as duas margens
dos rios
como quem procura no estrangeiro
a chave de casa
ou adormece na pedra
da lareira
com o rosto encostado
ao efémero tempo dos incêndios

chove de novo
desenhas nas partes em branco dos
mapas dos naufrágios
um território
que não existe

domingo, maio 01, 2011

[memória de tetuan]

jcb




[memória de chaouen]

jcb




segunda-feira, abril 25, 2011

domingo, abril 24, 2011

domingo, abril 10, 2011

[o espectáculo e os bens comuns]

era no tempo em que
o espectáculo e os bens comuns
se misturavam numa rede feita do novelo dos interesses
era no tempo em que
a propaganda e a encenação
traziam os estrados e os palcos decorados para
as praças
e os largos

era no tempo da cenografia
uma ave saía das mãos abertas do
mestre de cerimónias
num exercício de prestidigitação antigo
a música incitava à ênfase

as pessoas olhavam
deslumbradas
e olhavam de novo
e de cada vez que olhavam era
como se o verniz dos púlpitos
fosse estalando
até se ver o tabopan e a fórmica
de que
na realidade
eram feitos

sábado, abril 09, 2011

[pareces-me um gajo porreiro]

A nossa história, feita de cruzamentos e desencontros, começou na sala dezanove do Liceu. Na primeira aula do primeiro trimestre. Penso que éramos as únicas novidades numa turma onde toda a gente se conhecia dos anos anteriores. Ela vinha de uma escola nãoseidonde, eu vinha do ciclo de Vidago. E quis o destino que ficássemos juntos, a partilhar a mesma mesa com tampo de fórmica de um amarelo debotado. Meti conversa no intervalo grande da manhã. Sentados no parapeito da janela em frente à sala de aula. Eu com aquele ar de aprendiz de artista de cinema a dizer-lhe como a achava fabulosa e a perguntar-lhe o nome. «O meu nome foi dito na chamada. Se o não recordas é porque não te interesso.»

Acabara de cumprir dezassete anos e o meu insucesso com as mulheres era de uma evidência que cheguei a temer que estivesse inscrito na testa, ou nas faces, em letra de imprensa. Mas andava nos treinos, começava a esboçar umas tácticas. Não estava era preparado para lances tão decisivos e dramáticos, para cortes tão radicais. Atrevi-me, ainda assim, como naqueles momentos em que acreditamos que é tudo ou nada. E disse-lhe: «Claro que me interesso. Nunca vi uma rapariga tão bonita na minha vida.» Ela ficou em silêncio. Sorriu apenas. Como se sorrisse para dentro dela. E entrámos, ao toque, para a aula de Ciências Físico-Químicas.

Só ao chegar a casa, já noite, já depois de apanhar a camioneta da carreira no Jardim do Bacalhau, já depois de passar Curalha e Casas Novas, já quando bebia uma imperial no Jeremias com o Zé Manel, encontrei o bilhete no bolso do casaco. Só podia ser dela. Só mo podia ter deixado durante as aulas. Dizia apenas: «Amanhã 17 horas Adega Eiffel.»

O dia seguinte passou a correr. Às cinco em ponto entrei na Adega do Faustino. A pista parecera-me fácil: havia a conhecida história que atribuía a Eiffel, ou à sua escola, o projecto do Faustino. Ou, pelo menos, da deliciosa estrutura do tecto, desenhado numa teia elegante de ferro e madeira. E, de facto, ela lá estava, com a Teresa, ao fundo, num entusiasmo ruidoso que só não era superior à inépcia demonstrada no lançamento das pequenas malhas do jogo do sapo. O orgulho, no entanto, deixou-me ao balcão, apenas lhes acenei num cumprimento vago, pedi um branco traçado. Tinha a certeza de que ela não tardaria a aproximar-se, a desnovelar conversa, a retomar o fio do mistério que começava a alvoroçar-me. Mas não. Passaram-se uns cinco minutos, uns dez minutos quando muito, e já elas saíam, rindo, cúmplices, quase sem se dignarem olhar-me. Eu não contive um «filha da puta» em voz alta. Mas elas já não podiam ouvir-me. E os meus parceiros de balcão não esboçaram um gesto que demonstrasse terem achado desusada a terminologia. Pedi a conta. E, com os trocos, recebi um envelope. «Pediram-mo que lho entregasse.» A caligrafia era a mesma do bilhetinho inicial: «Para o José Carlos.» E, no interior, um novo recado em papel-manteiga fez-me regressar o sobressalto: «Mereces-me se adivinhares o nome da minha mãe. Tem doze letras. ‘Anagrama’ é a palavra-chave. Disporás de sete pistas. Talvez descubras antes da última. Não fales comigo até me dizeres as duas palavras desse nome próprio com doze letras.»

E foi assim. Durante quase dois meses, a intervalos irregulares, recebi sete mensagens nas situações mais inverosímeis: duas chegaram-me por correio normal; uma foi-me entregue num pavilhão do Tabolado, na feira dos Santos, por uma moça que fazia os trocos das fichas dos matraquilhos; uma outra deu-ma a Adelaide do Jeremias com a explicação de que a tinha deixado ao meu cuidado o viajante dos finos; e as restantes foram-me aparecendo na mochila de ginástica e nos bolsos dos casacos. Da sétima mensagem dei-me conta já em casa, ao deitar-me, no último dia de aulas antes das férias do Natal.

Tinha, portanto, sete pistas para decifrar um enigma. Os recuos iam sendo mais que os progressos; mas o desânimo não chegou nunca a ultrapassar os repetidos momentos de júbilo sempre que avançava na desmontagem das cifras.

A primeira pista remetia de forma óbvia para um topónimo: «As árvores das amoras são um dos lugares»: Amoreiras, claro. A segunda também não foi difícil de resolver: «Um SEREME invertido no concelho de Valpaços» invocava, naturalmente, a igreja de Santa Maria de Émeres (eu lia umas merdas). «Os cachorros de Leocádia» permaneceu durante muito tempo imune à decifração. «Um campanário no Calvo Grande» deu alguma luta; mas, com a ajuda do meu amigo Luís Moura, cada vez mais entusiasmado com os enigmas e seduzido pelo mistério em que eu o tornara cúmplice, cheguei a outro topónimo: Calvão. Havia mais uma pista fácil: «Com mais um S era um Osso» só podia significar Oso, embora isso não nos dissesse coisa absolutamente nenhuma. E foi ainda o Luís Moura, muito calhado com a história da cidade, que me explicou que «É a igreja que foi do Bispo Idácio» só poderia significar uma referência à Igreja Matriz de Chaves, ou de Santa Maria Maior. «Perdizes de São Miguel», enfim, era pista com que não atinávamos: tempo de colheitas, riqueza cinegética?

Mas na noite de consoada, à mesa cheia de copos do café do Jeremias – com o fogo lá fora a subir as labaredas à altura dos fios dos telefones e a pô-los em risco –, o Luís Moura, às tantas, bateu com violência no tampo da mesa, virou-se para a Adelaide e disse, quase num grito: «Cerveja para todos.» Puxou da folha A4 onde, há vários dias, íamos alinhavando nomes e frases. Eu quase não respirava. Sentia o desassossego de quem se aproxima do único segredo do mundo, da revelação, de um corpo que não tardaria a pertencer-me.

Eis as notas que era possível compor:

1) Amoreiras. 2) Santa Maria de Émeres. 3) Leocádia [igreja de Santa Leocádia? Ver se a igreja tem cachorros ou gárgulas]. 4) Calvão [ver se a igreja de Calvão tem um campanário singular]. 5) Oso [ver…]. 6) Igreja de Santa Maria Maior. 7) Perdizes?/São Miguel?/Vilar de Perdizes/Igreja de São Miguel?

Não queria acreditar. «Meu Deus, parece definir-se um padrão: igrejas.» «Claro», respondeu o Luís Moura, já calmo, um sorriso a rasgar-lhe o rosto. «Maria Mantela. Estas pistas parecem remeter para a lenda de Maria Mantela. É só um momento.» E desapareceu. Uma hora depois lá estávamos, de novo, de roda das pistas e de um artigo do padre Lourenço Fontes. «Não conheces a lenda de Maria Mantela?» Eu que não. E então o Luís explicou-me.

Pelos primeiros anos do século XIV um abastado sujeito da Vila de Chaves, passeando com a esposa, encontrou uma mulher com dois filhos gémeos que lhes pediu esmola. Fernão Gralho, assim ele se chamava, condoeu-se da pobre. Mas Maria Mantela, a esposa, colocou em dúvida a honestidade da mulher, porque nenhuma mulher de um só homem poderia gerar de uma só vez mais que um filho. Acontece que, alguns meses depois, Maria Mantela, na hora do parto, teve, um após outro, sete filhos. Com o marido ausente numa caçada, e aflita lembrando-se do que dissera à pobre mãe de duas crianças gémeas, encarregou a ama de lançar às águas do Tâmega seis dos filhos que acabara de parir. Estava a ama a meio das poldras quando apareceu Fernão Gralho e descobriu o que se passava. Ordenou à ama que regressasse a casa e informasse a senhora do cumprimento das ordens. Fernão pegou nas seis crianças e confiou-as, em diferentes aldeias, a diferentes amas. Dez anos depois solicitou à esposa que preparasse um lauto banquete para festejar o Ano Novo com seus especiais convidados. À mesa, quando Maria Mantela chegou com o banquete, estavam sete jovens todos iguais em feições. «Qual deles é o teu filho?», perguntou Fernão.

«Maria Mantela. As pistas remetem para a lenda de Maria Mantela» – insistia, eufórico, o Luís. «Estas sete crianças tornaram-se padres. E cada uma delas acabaria por fundar uma igreja com a invocação de Santa Maria: Santa Maria de Moreiras, Santa Leocádia, Santa Maria de Calvão, Mosteiro de Oso, Santa Maria Maior, Santa Maria de Émeres, São Miguel de Vilar de Perdizes.»

O resto das férias passou vagarosamente. Desesperadamente devagar. É claro que faltava decifrar o segredo final: o nome da mãe da minha apaixonada. Mas isso parecia agora o mais fácil. Como dizia o bilhete do Faustino, ‘Anagrama’ era a palavra-chave. O segredo final só poderia ser um anagrama de Maria Mantela. Peguei num lápis. Papel. Risquei letras, alinhavei palavras. E depressa cheguei ao único nome possível: doze letras: Mariana Telma…

No intervalo da primeira aula do segundo trimestre, no primeiro intervalo da manhã, puxei a minha apaixonada para um canto. «Decifrei o segredo. A tua mãe chama-se Mariana Telma.»

Ela olhou-me semicerrando os olhos. Como se a tivesse surpreendido. Como se não esperasse a minha capacidade de decifração dos enigmas. E respondeu:

«É verdade. Acertaste. Mas vens tarde. Fernão Gralho escondeu o segredo durante dez anos. Tu demoraste vinte dias a descobri-lo. É um avanço. Mas há uma semana que o teu amigo Luís Moura me revelou a resposta. Acertou primeiro. Temos estado juntos. Passámos juntos o fim de ano. Somos namorados. Talvez me venha a arrepender, não digo que não: tu pareces-me um gajo porreiro.»




publicado originalmente aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/

quarta-feira, abril 06, 2011

[era preciso que alguém]

era preciso que alguém descesse
ao mais fundo de um poço
que alguém tirasse da cintura a adaga dos interesses
e a espetasse nos corações mais
puros

para que a divindade
se cumprisse
era forçoso que a imperfeição
pudesse redimir um homem

era preciso que judas traísse
misturando no vinho dos cálices
a flor de cinco pétalas
do adorno

e houvesse uma maçã e uma serpente
e um jardim
como símbolos
de tudo

[a história da arte ocidental]

a história da arte ocidental
tem início
nos símbolos
desse mural de uma cena de caça
em que a representação do real
está pela primeira vez
contaminada
pelo que sabemos
ou pela inquietude
do que procuramos saber
além das evidências

segunda-feira, abril 04, 2011

[nos países democráticos]

nos países democráticos
a cultura levou a
que os jogos substituíssem as guerras

os danos
hoje
são irrisórios
a propagação da estupidez quase não tem efeitos
colaterais

também por isso
o futebol é um dos melhores exemplos
do avanço
da civilização

no iraque morreram milhares de homens
na líbia é o que estamos vendo

hoje
na luz
deu-se a ocorrência em relatório de oito detenções
e parece que não mais de catorze ou
quinze adeptos
foram parar às urgências
do santa maria
com escoriações
ligeiras

sábado, abril 02, 2011

[não guardes os medos]

não guardes os medos e o coração na mesma gaveta
não deixes o ruído de uns
intrometer-se onde
no outro a luz é quase de água
não escolhas entre duas verdades
não deixes acesas durante a noite as lâmpadas
tão difusas
dos provérbios

às vezes é preciso queimar as páginas dos
livros dos usos
às vezes é preciso olhar de frente a luz
da flor da dedaleira

essa que dizem que cega
só de nos aproximarmos
dela

sexta-feira, abril 01, 2011

nota

[Seis poemas inspirados na reunião da máfia norte-americana que teve lugar em Havana, no Hotel Nacional, entre 22 e 29 de Dezembro de 1946.]

[um hotel em havana: dezembro de 1946]

1.

Não é consensual o inusitado elogio
na conferência inaugural
ao sistema democrático:
«a eleição livre de San Martin
é uma espécie de caução.» Mayer
Lamsky explica pacientemente
que não há lugar a um revólver
onde a regra instituída puder
substituí-lo com vantagem
dos interesses.


2.

Vito Genovese tinha acabado de fazer
quarenta e oito anos e era cada vez mais óbvia
a assimetria do seu rosto. A recepcionista
do Hotel Nacional olhava-o fascinada
a imaginar até onde poderia levá-lo essa quase
afável metade esquerda sem um vinco
e sem o arqueado da sobrancelha
que do outro lado parecia erguer-se em permanência
na direcção dos desastres. Às dezoito e quinze
do dia vinte e quatro de dezembro
de mil novecentos e quarenta e seis
Lucky Luciano veio impaciente do terraço da suite 212
a blasfemar contra os atrasos.
E foi o próprio Mayer Lamsky que ligou
aos gritos para a recepção a perguntar se alguém
vira por acaso Vito Genovese. Mas a menina
que atendeu não saberia como explicar
que talvez a reorganização mundial dos mercados
de narcóticos e jogo clandestino
tivesse que esperar mais um pouco
até a colega sair da salinha das bagagens
onde procurava a gritar de prazer
os segredos da face esquerda
de um rosto.


3.

Um jovem fascinado com as glórias
do mundo afastou-se do grupo
e saiu pela porta de serviço
do piso inferior.
Atravessou os jardins
e virou à direita a caminho do Malecón.
O silêncio e uma calma imprevista começavam
enfim madrugada adentro
a desenhar-se depois da música e dos risos
voláteis da noite. O jovem encostou-se
ao paredão a fumar um cigarro e a deixar
os olhos correr atrás da espuma
da ondulação de um barco a deslizar
vagarosamente sobre as águas
na direcção do Castillo del Morro.
Quando regressou ao Hotel Nacional
viu Lucky Luciano num dos sofás da entrada
com a cabeça enterrada nas mãos
e imaginou que por um instante poderia
atravessá-lo a nostalgia da invisibilidade
passeando sob um céu estrelado da Sicília
nos campos de oliveiras envolventes do pequeno
povoado de Lercara Friddi
como se até os assassínios de Masseria
e Maranzano participassem já de um
mesmo plano de regresso
a um lugar que deixou de pertencer-nos.
Mas Franck Sinatra estava com
sono e subiu ao quarto e deitou-se
a pensar nas glórias do mundo
e a reflectir sobre coisas tão abstractas
como o sentimento da honra.


4.

Era de supor que a conciliação
ou a procura de bases mínimas
de consenso não exigiriam esforços
num grupo de conferência de interesses comuns
fechado à chave contra o ruído
das regras. Mas Joe Bonanno
está exausto e vem por instantes
sozinho aos jardins a procurar
um intervalo na mediação
a que é chamado em permanência por
uma antiga tradição de consensos.
É o penúltimo dia do encontro
e será preciso ainda mediar
os conflitos que parecem levar
Luciano e Genovese a
uma irremediável dissensão.
Ao fundo emergem como um espelho
as águas do Atlântico. Joe
Bonanno fecha os olhos e depois regressa
ao interior do hotel com a sensação estranha
de que a transparência dessas águas
o persegue ainda a caminho
do salão de banquetes como
as luzes de um casino
onde não houvesse
cartas marcadas.


5.

Em Havana há sinais de que
a oposição a Trujillo parece irradiar
como um vírus. Como se os países deixassem
de ter uma fronteira delimitada nos mapas antigos
e se estendessem pelos vales
e pelas cordilheiras
definindo novos territórios. Como se Cuba
ou Bolívia ou Porto Rico
fizessem parte de uma mesma
inverosímil geografia. Isto defendia um jovem
universitário do segundo
ano preparando-se para controlar
a Federação de Estudantes.
Mas em nenhum momento
o nome quase desconhecido de Fidel
de Castro Ruiz foi pronunciado
durante as várias
sessões da conferência
em que se discutiam casinos e narcóticos
e as potencialidades nunca verdadeiramente
relevadas da indústria dos têxteis.


6.

Yoani explicou às amigas
que Albert Anastasia lhe pareceu
um homem igual a todos os outros.
Que provavelmente o poder
e a desumanidade
não serão relevantes
nas coisas
do amor.

quarta-feira, março 30, 2011

[regressar]

regressar
como se fosse possível desaprender

como se cada objecto pudesse ocupar de
novo o seu lugar próprio

como se pudéssemos desligar de
cada uma das coisas antigas
os nomes que agora
lhes damos

regressar
como se o conhecimento não tivesse movido
o que chegou a pertencer-nos
para um espaço que agora é exterior
a nós mesmos

regressar
como se pudéssemos ainda ambicionar a ignorância

tocar a água fria dos tanques
e não saber de onde vem
a água

[segirei, 2]

o fumo da lareira já nem sai dos telhados
são onze da noite
não há um único movimento nas
ruas e nos quelhos

a neblina subiu do rio
parece suspensa de fios invisíveis um
pouco acima das
pedras irregulares
do largo

se alguém gritasse
se alguém corresse na encosta com um archote
se alguém viesse à janela a
estender a colcha da infância
talvez o tempo retomasse
vagarosamente
o seu novelo espesso
de labirinto

[segirei, 1]

jcb

[era no inverno]

era no inverno
lá fora o granizo espelhava-se no pavimento
dos pátios
embrulhávamos as pedras aquecidas nas
folhas do primeiro de janeiro
pedaço de fogo guardado nas mãos
contra a obscuridade
das manhãs frias

era tudo ainda tão recente
o império desenhado nos mapas das
províncias ultramarinas
as linhas dos caminhos de ferro
os nomes das serras
os rios da metrópole que nasciam
em espanha

nos jogos do recreio
as meninas queriam ser enfermeiras
ou hospedeiras
de bordo
os rapazes queriam ser tropas
o benfica ganhava os jogos quase todos
do campeonato
nacional

era no inverno
levávamos para a escola as
pedras aquecidas
era no tempo dos emigrantes
e dos aerogramas

quinta-feira, março 24, 2011

[primeiro/ depois]

primeiro achou que não era com ele

depois tirou um retrato
e reparou que o retrato
era igual a todos os retratos

depois olhou-se ao espelho
e viu com sobressalto
que o seu rosto
era igual
a todos os rostos

quarta-feira, março 23, 2011

[uma teoria]

Um doutorando da universidade de oxford
defendeu em 2006 a tese
de que o declínio das civilizações
está muito directamente associado
às quantidades de lixo
que produz.

Era uma teoria
em que acreditava tanto
que perdeu a bolsa de investigação
por se recusar a preencher um impresso
na secretaria dos serviços académicos
explicando não haver alternativas

os formulários electrónicos
produziam um lixo
ainda mais nefasto.

Não o vejo há muito
éramos velhos amigos

sei apenas que regressou ao yorkshire
para viver numa quinta
que era dos avós

sem mail
nem caixa postal.

segunda-feira, março 21, 2011

[porque a ciência não é mais do que pensamento]

porque a ciência não é mais do que pensamento
temiam os números e a prova
temiam a evidência de uma lei que
pudesse demonstrar a ausência de nexo
entre a chuva imprevista ou um dia de sol
e o livre arbítrio
do poder

por isso espalharam cinza sobre as ruas e as praças

e passou o tempo
e já quase não há memória do tempo em
que se praticava o estudo das ciências naturais
e se escreviam poemas nas paredes
a fazer
perguntas.

domingo, março 20, 2011

[no sul/ a arquitectura]

jcb




a criança ficava a olhar
a luz misturada aos ramos das árvores
ao verde e ao castanho da terra
a poisar exausta nas açoteias das casas
a subir os degraus como se finalmente os
dias e as noites
pudessem equivaler-se

no sul
a arquitectura é a luz desatada a
meio da tarde nos troncos das amendoeiras jovens
a sombra que a ilumina pelo lado de dentro
em vez das palavras

a criança ficava a olhar
estendia os braços a procurar na parede
o espelho das imagens verdadeiras.

sábado, março 19, 2011

[outra vez a terra]

outra vez a terra
o imperscrutável som do puro veio da água
isso que parece afluir aos dedos como cinza ou
obscura semente
isso que mistura
o antes e o depois da música

éramos crianças e subíamos aos muros das propriedades
delimitávamos o mundo em
linhas a direito nos campos lavrados
uma árvore
esse reduto defensivo imune ao
correr do tempo
a essa sombra nos acolhíamos nas tardes muito
quentes dos meses de junho
apenas para respirar

outra vez a terra
o som do puro veio da água
a memória vem do único lugar onde nunca soubeste
adormecer.

sexta-feira, março 18, 2011

[era no tempo]

a procissão
os tabuleiros das carnes assadas
os anjinhos com os moncos dependurados e
as asas presas aos ombros por alfinetes de dama
o baile
a música dos altifalantes

era no tempo do júbilo
era num tempo de escassez
era no tempo antes da Crise
os risos verdadeiros desenhados para os retratos
a preto
e branco.

[a/ linha estreita]

olhava indistintamente a
caixa das sementes ou as estrelas
a mesma matéria feita de
um lume que continua a arder
depois da rarefacção
do ar

às vezes ficava à varanda a olhar a noite
era no inverno
puxava com as mãos a
linha estreita que separa a terra e o céu
o mesmo rumor

a mesma voz indecifrável
como se viesse das páginas
dos livros
de romance.

[alguma coisa]

alguma coisa batia com força
nos tampos de madeira das carteiras
nas continhas do ábaco
no branco do giz sobre o quadro de ardósia

o tempo é essa matéria vil
que nos separa da memória do
cheiro dos livros das primeiras letras
do rumor do vento nos
vidros pequenos das janelas da escola

alguma coisa batia com força no mais fundo da infância
aí procuramos ainda hoje o poema
uma razão para não temermos a sombra ou a tempestade
o arame onde estender a roupa que
nos fica apertada nos braços.

quarta-feira, março 16, 2011

[os objectos antigos]

olhar os objectos antigos
sem que a memória devolva os seus usos
como se acabassem de ser construídos
como se não houvesse ainda uma função que
lhes estivesse destinada

como se conhecêssemos já um gesto e
tivéssemos que procurar a mão
que haverá de fazê-lo.

sexta-feira, março 11, 2011

[pedia que nos afastássemos]

pedia que nos afastássemos
trazia a vara das nascentes
puxava as mangas da camisa acima dos cotovelos
concentrava-se
não há outro mistério
outro milagre
à face da terra

a vibração da vara das nascentes
a desenhar o mapa dos terrenos de herdeiros
o veio subterrâneo
da água.

[misturávamos/ as uvas]

misturávamos
as uvas
e as bagas do arando

ficávamos em silêncio
a escutar o rumor dos arames das vinhas
deixávamos erguer-se sobre as mesas
o odor dos frutos vermelhos
dos bosques

as tardes de domingo
suspensas de quase nada

um gesto
uma palavra
o voo de um pássaro podiam
fazer ruir
as paredes das casas.

[os anjinhos]

os anjinhos das procissões
cansados
cheios de sede
pareciam apenas
crianças
verdadeiras.

quinta-feira, março 10, 2011

[quadra ao gosto popular]

olho a fotografia de grupo
onde nunca apareceste
e é como se apenas tu
estivesses no retrato.

quarta-feira, março 09, 2011

[lembro-me/ das tuas camisolas]

lembro-me
das tuas camisolas todas

eu chegava a ter frio
só para que pudesse
vesti-las.

[imagina/ que escrevias]

imagina
que escrevias um poema de cinco
em cinco minutos
e que morrias disso
não propriamente do coração
não propriamente das transaminases
mas de um problema de métrica
de uma rima excessiva
que crescesse dentro de ti
como uma pedra
nos rins.

[às vezes/ o tempo apaga]

às vezes
o tempo apaga todas as imagens
a tua bicicleta vermelha comprada no miranda
a noite em que uma estrela cadente
ficou poisada nas tuas mãos
durante quase uma hora

e ninguém acreditava

a filarmónica tocava no coreto
havia quem dançasse ao ritmo certinho da música
como se mais nada existisse
como se o mundo não estivesse a nascer
no lugar exacto
em que as mãos de um
tocavam as mãos
do outro.

[os dias separavam]

os dias separavam as palavras
e os gestos
o que dizíamos
e o que queríamos dizer

mesmo que trouxesses os teus cadernos
e os lápis de cor
era como se os desenhos
ficassem sempre
por fazer.

[trazias a água]

trazias a água num cântaro
era no tempo em que os assessores
ainda não tinham fechado
as escolas primárias
nem os centros de saúde
nos lugares mais afastados
da província

a fotografia mostra as duas casas
a seguir ao tanque
deves lembrar-te dessa tarde de verão
em que subimos a escaleira
a correr

no pátio havia uma torneira

mas não era dessa água
que queríamos beber.

[as mulheres traziam coisas à cabeça]

as mulheres traziam coisas à cabeça
coisas inexplicáveis
um cântaro iluminado
a flor da urze
um rumor que parecia vir das nascentes

equilibravam-se como se saíssem de
um quadro de vermeer
de um fotograma
de um relâmpago
que ainda hoje
nos cega.

[deixar/ que sejam as palavras]

deixar
que sejam as palavras
a levar o vento
a estender nos arames dos
pátios os segredos do inverno
a espalhar as fotografias nas mesas da cozinha
a misturar as certezas e os enganos

deixar
que sejam as palavras
a esconder o teu rosto por
detrás de camadas de poeira sucessivas
ou por detrás das cortinas das janelas
quando o verão irrompia
como se fosse
o último.

[os rios só existem]

os rios só existem nos mapas das províncias
nos quadros de ardósia
da escola primária
onde se misturavam estuários
e afluentes

lembro-me de desenhar um rio
e esse rio ter o teu nome

e eu acreditar que não havia outro rio
a cruzar os continentes.

[nas colinas]

nas colinas
havia o palco de um teatro
estrados e máquinas de luzes
panos de correr

treinávamos durante o inverno
líamos os textos
ensaiávamos
chegámos a acreditar no estrangeiro

mas quando chegavas
esquecia-me sempre
das frases.

[escrevíamos a lápis]

escrevíamos a lápis
podíamos mudar as versões
dessa história
bastava apagar as palavras
uma linha
depois outra

e no entanto
era como se o teu nome
ficasse marcado na parte de trás das folhas
dos cadernos

como quando
escrevíamos com medo que a caligrafia
traísse o que queríamos dizer
ou desenhávamos um barco

mesmo que apagássemos os desenhos
ficava sempre
essa marca
imperecível
como uma memória
dos erros.

[lembro-me]

lembro-me
de haver um fio que juntava
a água e o coração

lembro-me de chover
dias inteiros
para que o inverno ficasse na memória dos livros
para que as nascentes se aproximassem das casas
e pudéssemos beber
em vez de morrermos de frio

lembro-me
de haver um fio
que ligava o corpo
às suas próprias
mentiras.

[hoje sei]

hoje sei
que estivemos tão perto
de ter quase tudo

que era possível ainda regressar ao largo
deixar a mão poisada na superfície plana
da água do tanque

e esperar
os milagres.

terça-feira, março 08, 2011

[já nem pergunto]

já nem pergunto
por ti
aos amigos

chego a pensar que nunca exististe
que esta cicatriz junto ao coração
não foste tu
que a desenhaste
só de respirares a meu lado

se hoje te visse
a descer a caminho do largo
talvez nem acreditasse
que um dia foste tu
que disseste o meu nome
a tremer
de frio.

segunda-feira, março 07, 2011

[ainda hoje]

nunca digas
«para sempre»
meu amor
como disseste uma vez
já nem te lembras

a manhã entrava
pela janela do quarto

estávamos tão próximos das despedidas
e a luz era tanta
que ainda hoje
nos cega.

[há coisas/ tão difíceis]

há coisas
tão difíceis de compreender
o modo como perguntámos
«dás-me um cigarro»
quando o amor
parecia ainda imperecível

o modo como nos despedimos
de tudo o que chegámos a imaginar
que nos haveria de pertencer
para sempre.

[se pudéssemos]

Se pudéssemos desviar de nós
por um momento
os cuidados do amor
essa atenção quase permanente que o amor exige
se pudéssemos por um momento
deixar ao amor apenas o tempo
que ao amor pertence
um perfume
um passeio nas florestas de bétulas
um copo de vinho em tabernas afastadas do mundo
a camisola que trocamos no inverno
os mapas onde desenhamos todas as viagens

se pudéssemos por um único instante
desviarmo-nos do que o amor exige
para nos concentrarmos apenas
no que é do amor
sem a exigência
de sermos puros.

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

[o vendedor de astros]

Sinto-me outra vez tão cansado
de ter que carregar os astros
de um lado para o outro, de ter que arrumá-los no fim-de-semana
a procurar um espaço na garagem
entre fasquias, latas de tinta e peças dos restos de motores,
de ter que trazê-los de novo para a loja
muito cedo nas segundas-feiras de manhã.
Sinto-me tão cansado de ter que andar com eles às costas,
a expô-los na montra,
a escrever com marcadores de feltro
os papelinhos dos saldos,
a passar os dias inteiros à espera
dos tão escassos clientes
interessados neste primeiro quartel do século XXI
na poesia iluminada dos astros,
nesse fogo de combustão lenta,
nessa incandescência que vem
do lado de dentro das coisas,
nesta matéria afastada do câmbio,
neste produto menos valorizado hoi’ jem dia
que as batatas da Bretanha vendidas nas grandes superfícies
em saquinhos de três quilos
ao preço da uva mijona.
Sinto-me tão cansado,
sinto-me tão moído,
sinto-me tão farto de vender astros numa loja de comércio,
de ter que limpar-lhes o brilho
de ficarem tanto tempo nas estantes e nos expositores,
de vender ou procurar vender
a luz perfeita desses incêndios incombustíveis,
que chego a ter inveja dos funcionários públicos
que passam os dias a receber requerimentos
ou a preencher formulários
e a levar ao fim do mês
para casa
o ordenado inscrito no livro de estilo
dos vencimentos
do Estado.

terça-feira, fevereiro 22, 2011

[eram crianças]

Eram crianças como se tivessem holofotes.
Os homens chegavam durante a noite
e ficavam parados nos largos
a procurar nessa luz os segredos das renúncias.
E acreditavam que essa luz
vinha de um tempo anterior
ao tempo dos primeiros Livros.
E acreditavam que assim
podiam aproximar-se
da Palavra
reveladora.
Por isso rezavam.
Rezavam em voz baixa como se temessem
a reverberação dos sons
nos arames das vinhas.

Eram crianças como se fossem máscaras
de outras máscaras.
Os homens deixavam
os trabalhos dos campos
e procuravam nos guarda-fatos
o rosto verdadeiro
atrás do rosto devolvido pelos espelhos.
Os homens temiam enlouquecer
de nem terem um rosto.
E temiam que os seus rostos
estivessem escondidos
nos rostos das crianças.

Porque não havia nenhuma voz
e porque não havia
nenhum movimento
nem a cintilação de uma sílaba
nos muros das propriedades
ou nos andaimes das obras.

Porque
de súbito
só havia crianças.
Crianças.
Crianças como se fossem pedras incandescentes
tiradas de dentro dos cântaros.
Crianças como se fossem pistolas de plástico
e encerrassem nelas mesmas
a impossibilidade da revelação.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

[quadros de uma exposição, 1]


[reflexos na montra do Armindo numa manhã de Agosto de 2009]

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

[uma horta]

jcb




sábado, fevereiro 05, 2011

terça-feira, fevereiro 01, 2011

[Os antigos]

Noite sem nenhum elemento
singular: lua minguante
e a temperatura média dos meses de fevereiro.
A mulher levava uma candeia no corredor
que liga a cozinha a um dos quartos.
E de súbito tudo ficou iluminado
pelo clarão de um incêndio
a lavrar nas paredes. Foi
um instante breve. Logo regressou
a sombra. E só a luz ténue
da candeia espalhava de novo
os correntes rostos disformes dos antigos
na casa habitada pelo mesmo
sobressaltado silêncio de sempre.

segunda-feira, janeiro 31, 2011

[resumo, 3]

Não temias nenhuma dessas feridas
quase desejavas a cicatriz

quando nos dói
é bom haver uma marca no corpo.

[resumo, 2]

Sejamos claros: escrevemos poesia
para ficarmos às escuras.

[resumo, 1]

Estou quase como o Tjorge: Sá antologia
dá Sírio não reparou em mim
quexe cossxa: o problema
é deis:
a posteridade lá estás.
Mas por mim não mer’ ciam um artigo na Lerque
nem lhes dava de vaia.

domingo, janeiro 30, 2011

[do estado da arte. ou dos lentos progressos. excerto.]

Mas assim se passaram as coisas. E apenas quatro passageiros seguiram na camioneta da carreira que saiu às três e cinco do Largo do Toural: dois pides e dois conspiradores contra a segurança do Estado. Na tarde sentia-se a rarefacção do ar, um silêncio que era muito mais que a ausência de som, a imobilidade dos objectos de família poisados nas cómodas velhas. A camioneta da carreira descia a Rua Vinte e Oito de Maio como se prosseguisse numa cápsula de vácuo e como se as mulheres debruçadas às janelas e os homens parados à porta da barbearia, e os cães adormecidos no quelho das Casas do Canto, e os gatos estirados na varanda da ourivesaria, e os pássaros escondidos nos ramos densos dos abetos do jardim, estivessem já fixados nos sais de prata das fotografias.

Também lá dentro, nos bancos da frente, não se ouvia o ruído do motor nem o chiar dos eixos de um carro de bois que se arrastava pela estrada do Noro, não se ouvia uma palavra, não se percebia a mais ligeira oscilação da viatura. E foi então que o pide número um moveu a cabeça e depois aproximou o rosto da janela e viu que um homem voava sobre a Vila, vagaroso, ausente, distante, na tarde que de súbito se sobressaltou com o voo de todos os pássaros até então escondidos nos abetos do jardim dos Correios. Tirou os óculos escuros, encostou o nariz ao vidro embaciado, o barulho do motor da camioneta da carreira misturou-se ao tumulto das aves a esconder o céu. Fixou o olhar. Mas se alguém voava sobre a Vila, sobre o quadriculado da Veiga, sobre as encostas de urze e pinheiros bravos, acabara de desaparecer por entre a sombra escura que descia sobre as ruas e os telhados.

sexta-feira, janeiro 28, 2011

[O meu candidato]

BEM CERTO é que uma coisa puxa outra e as conversas são como as cerejas. Estávamos a falar dos resultados das eleições e o meu amigo recuou um pouco mais de um ano para trazer à baila esse fim de tarde mágico em que o glorioso benfica venceu o everton por cinco golos sem resposta. Ainda hoje os ingleses devem acordar a meio da noite a magicar e a procurar compreender que passes de bailado foram aqueles que levaram os homens de goodison park a encolher-se e a perder o norte. E o mais certo é que depois adormeçam de novo por dentro de um pesadelo que é feito de memórias da perfeição ofensiva da equipa de lisboa. Porque a magia costuma ter sobre as pessoas esse efeito que é intrínseco à própria definição do termo: uma espécie de entorpecimento deslumbrado. Os de liverpool vinham para a segunda parte com um único golo de desvantagem. Ainda começaram por levantar a cabeça ligeiramente. Mas óscar cardozo marcou aos 47 minutos e voltou a marcar aos 48 minutos. E depois luisão deve ter achado que o melhor seria não deixar arrefecer o motor do ataque e voltou a meter a bola dentro das redes quase logo a seguir: corria o minuto 52. O meu amigo fala dos cruzamentos deslumbrantes de di maria ou das velocíssimas e exemplares transições ofensivas. Mas fala sobretudo da multidão de quarenta e cinco mil pessoas que assistia ao jogo e da força que podem ter quarenta mil pessoas a gritar ao mesmo tempo por algo em que acreditam e os leva a sair de casa para se juntarem a outros que partilham uma crença.

O MEU AMIGO retoma a conversa das eleições do passado domingo. E fala dos votos em branco. E procura convencer-nos da importância de refletirmos sobre o significado de um voto que não entra diretamente nas contas de nenhum dos seis candidatos. Mais de cinco milhões de pessoas ficaram em casa. Tinham os seus nomes inscritos nos cadernos eleitorais e resolveram ficar em casa. Mais de metade dos eleitores ficaram em casa e deixaram os outros decidir por cada um desses cinco milhões. Mas houve cento e noventa mil pessoas que deram baixa dos seus nomes nos cadernos eleitorais e votaram em branco. Não ficaram em casa. Não abdicaram do exercício de um direito que talvez só valorizemos verdadeiramente se um dia o não tivermos de novo e seja necessário começar a lutar do princípio para voltar a pertencer-nos. A verdade é que houve mais de cento e noventa mil pessoas que votaram em branco. E cento e noventa mil pessoas são mais de quatro vezes as pessoas que assistiram ao benfica a derrotar o everton num fim de tarde de outubro fascinante de comunhão e delírio. E o meu amigo relembra que o voto em branco não tinha outdoors nem comícios nem caravanas nem tempo de antena e que foi o único a não ser entrevistado pela judite de sousa. E que cento e noventa mil votos em branco devia querer dizer alguma coisa. E que talvez fosse importante discutir o significado disso no intervalo dos discursos eufóricos ou resignados.

MAS EU JÁ ESTAVA farto da conversa. Até porque votei naquele senhor da madeira que se chama qualquer coisa coelho e o caso começava a fazer-me prurido; porque só então discorri que houve mais votos em branco do que no meu candidato-revelação.


Publicado no Jornal do Algarve.

quarta-feira, janeiro 26, 2011

[era no tempo dos livros]

Há uma ave a única
a ave do silêncio
a que deixa nas páginas ímpares dos
livros de aventuras da gulbenkian
a frase indecifrável dos desastres
uma palavra de nenhuma sílaba
a reverberação da nuvem
iluminada
dos meses de junho.

E depois
nos degraus de casa
em vez das sombras dos complementos directos
uma fotografia guardada para os meses frios
um rosto contra a tempestade
a chuva demorada atrás dos vidros das janelas
de ser
quase
o verão.

E outra vez o silêncio
a pedra obscura
do que
não tem ainda
um nome.

Caminhos se desenham
na periferia
dos bosques
iluminados na distância de serem breves
os nomes antigos
as flores pretéritas dos
matos das encostas
uma estrela desenhada por
dentro das
constelações de
sílabas
contadas
pelos dedos.

Era no tempo dos livros em vez das florestas.

Era no tempo das frases
era no tempo dos títulos desenhados a tinta da china
nas capas dos romances
era no tempo da água/
dos canais de rega inscritos na aluvião
era no tempo dos primeiros mapas dos
primeiros nomes do mundo
o lugar a que pertencíamos
antes
do deserto.

Talvez só o silêncio
o rumor imperceptível e distante das nascentes próximas
a água descendo as escada inclinadas
dos substantivos.

E se respirássemos
ouvia-se o eco
de sermos tão jovens.

E então
sobre todas as coisas
sobre as facas dos talheres e a pedra da lareira
sobre a tábua da masseira e
as folhas do comércio do porto dos louceiros
recortadas vagarosamente
com as tesouras de costura/
os números dos ábacos
a aritmética
a narrativa
um verso
o único verso
como a única ave que não se desprende
de tocarmos a água dos açudes
como se fosse possível ainda
a invenção dos milagres.

A pedra
a que nem
conseguíamos dar um nome.

A pedra quase uma nuvem
a nuvem quase uma pedra.

E agora é tarde.

E nenhuma outra coisa
nos é
dado saber.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

[a curva da estrada]

Éramos jovens e decidimos fazer a revolução. Mas para mudar o mundo era preciso começar por mudar a geometria da curva da estrada do rio onde por mais que uma vez nos espetámos regressando dos copos às três da manhã. A nossa primeira luta foi contra o presidente da câmara e depois contra a junta autónoma das estradas quando o edil civilizadamente nos explicou que a via não era municipal. Escrevemos cartas. Mas a junta autónoma devia ser tão autónoma que não respondeu a nenhuma. Então fomos pessoalmente entregar uma petição exigindo a imediata intervenção no asfalto e nas bermas e a reposição das indispensáveis condições de segurança. Recebeu-nos um funcionário zeloso que não nos permitiu passar além dos bancos corridos de madeira da salinha de espera e nos despachou dizendo «bom dia» e que a petição seguiria os estabelecidos trâmites. Um ano passou e nem um oficiozinho da junta autónoma dizendo por exemplo «o assunto mereceu a nossa melhor atenção». Foi então que pensámos em meter uma bomba na escadaria das traseiras do edifício-sede acionando-a por controlo remoto no instante preciso em que o sr. engenheiro-diretor das estradas a subisse com a pastinha de calfe do despacho debaixo do braço. Mas alguém mais avisado propôs a alternativa de pedir-se mas era uma audiência no governo civil e resolver-se logo o assunto. Pedimos a audiência. Quatro meses depois fomos recebidos. E o senhor governador assegurou que tomaria boa conta do processo e que não haveria de passar muita água por baixo da ponte até que a curva da estrada tivesse o perfil corrigido. E a verdade é que decorridas poucas semanas um ofício com os melhores cumprimentos do chefe de gabinete do governador civil explicava que o assunto havia sido remetido ao cuidado do sr. secretário de estado dos transportes. Mas nessa altura já a revolução não podia contar com o entusiasmo inicial destes seus tão fervorosos membros. Até porque o armando tinha ido para tancos cumprir o serviço militar. O luís alberto emigrou. O mendes arranjou emprego numa multinacional e passava o tempo a viajar. A teresa entrou em engenharia civil. Encontrávamo-nos cada vez mais espaçadamente e começávamos a sentir a estranha sensação de faltar-nos espaço para mudar o mundo e construir os alicerces de uma sociedade nova. O tempo correu e a curva da estrada ainda lá está sem ninguém lhe bulir. Não somos velhos mas é como se tivéssemos envelhecido mais depressa do que o tempo que foi passando por nós. O luís alberto tem uma empresa de construção civil nos estados unidos e regressa de dois em dois ou de três em três anos. Eu abri um restaurante. O mendes deixou a multinacional e trabalha agora por conta própria em consultoria financeira. O armando morreu num acidente de automóvel. A teresa meteu-se na política e é actualmente secretária de estado dos transportes. Às vezes penso em telefonar-lhe. A lembrar-lhe que está nas suas mãos resolver o velho problema da regularização do perfil da curva da estrada do rio. Mas o tempo passou. E eu receio que a teresa ainda haveria de rir-se na minha cara se eu tivesse a ingenuidade de lhe recordar o nosso sonho antigo de arranjarmos uma curva da estrada e depois mudarmos o mundo.


texto publicado no Jornal do Algarve.

quinta-feira, janeiro 06, 2011

[dizíamos]

Era no tempo da literatura
dizíamos «a água dos tanques»
e ficávamos à espera da reverberação das cinco sílabas
ou cortávamos vagarosamente
um ramo
da árvore dos significados.

[no tempo dos poemas]

Deixávamos as moedas no carril e ficávamos à espera a olhar com o fascínio de quem é surpreendido num fim de tarde pela presença de naves alienígenas num espaço de silêncio e rarefacção a ver as rodas metálicas do comboio a espalmá-las até ficarem assim nas mãos em concha de um de nós como se tivéssemos recolhido enfim a prova irrefutável dos milagres. Foi/
há tantos anos/
a senhora da bandeirinha vermelha perguntava se nunca tínhamos visto um comboio/
lembro-me de ser no tempo dos poemas/
um verso podia ser também a moeda espalmada nos carris da estação do caminho de ferro de Vidago/
tudo se misturava na mesma nuvem volátil de irrealidade e sobressalto.

terça-feira, janeiro 04, 2011

[depois de muito tempo]

Depois de muito tempo sem escrever um poema chego ao largo e penso em voz alta/ «quantas vezes este largo e estas ruas entraram nos meus versos». Nunca houve outra razão para deixar perguntas em papéis de acaso/
cortando as linhas como se existisse uma imprecisa melodia nessa perplexidade de interrogar o mundo. E é mais uma vez o largo e estas ruas que vêm dar ao largo o que me leva a escrever depois de tanto tempo.// É verdade que hoje não há nenhuma pergunta para fazer. Mas também é verdade que não há razão nenhuma para fazer perguntas quando conhecemos as respostas e sabemos que nem ao poema/ é dado devolver o eco das antigas interrogações.