quarta-feira, dezembro 18, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 5: os outros

é uma revelação
descobrir as modalidades do jogo de atirar as pedras
não há riscos
protege-nos a inimputabilidade
o segredo é estarmos do lado certo
e mudarmos de lugar quando o lado certo muda de lugar
atiramos as pedras com a legitimidade de quem nunca teve culpa de nada
porque a culpa é sempre dos outros
são os outros os culpados de baixar o ranking da república
são os outros os responsáveis pela electricidade estática
são os outros os culpados de nos ramos dos pinheiros fazer ninho a processionária
e as fotografias ficarem desfocadas nas festas dos aniversários
são os outros os responsáveis pelas baixas pressões
e pela proliferação das algas nos areais
nós limitamo-nos à ética
nós limitamo-nos a atirar as pedras justas nas modalidades diversas
a modalidade dos títulos nas primeiras páginas dos jornais
a modalidade das salas com acústica adequada à reverberação das sílabas ágeis
a modalidade das conversas nas mesas dos cafés
a modalidade do comentário equitativo
a modalidade do editorial a exigir a transparência
é quase uma revelação
descobrir como é fácil o jogo de atirar as pedras
contra os outros
os culpados de tudo

sexta-feira, dezembro 13, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 4: as colinas e os rios

olhar as pedras disparadas a capear a água das represas
e reflectir sobre o peso insustentável das coisas
a ausência a fazer sombra nas varandas dos inúmeros meses de novembro
a distância a esticar os arames das vinhas até à vibração interior
as despedidas a trazerem a humidade às fotografias guardadas nas gavetas das cómodas
o rosto a que nos encostávamos em agosto para não morrermos de frio
as colinas e os rios dos romances
os mapas das cidades que rasurávamos para nos podermos afastar das ruas conhecidas

um dia compreendemos que não temos mais nada senão o que perdemos
senão o que nem chegámos a ter
e procuramos de novo
o rosto dos primeiros versos
os cadernos de caligrafia
os trabalhos domésticos
uma criança a correr e a ideia de um sistema de justiça como um espelho que devolvesse as imagens puras
uma criança a olhar o azul dos montes e a ideia de um país que privilegiasse o mérito

e procuramos de novo um pouco da luz que julgávamos ter chegado a pertencer-nos
por uma espécie de direito consuetudinário
em que a hipocrisia dos poderes
apenas tinha a lenha abundante
onde havia de queimar-se

quarta-feira, dezembro 11, 2013

Louvor de Nadir Afonso

Nunca havemos de esquecer o fascínio
das contas de madeira do ábaco da escola
furadas para correrem em prumos metálicos horizontais:
era um pequeno ábaco e provavelmente
é possível decifrar uma parte do mundo
movendo-as com recurso às técnicas
de análise combinatória.

Todos os mistérios do universo se escondem
na matemática. Borges ensinou
que é possível escrever o Quixote
recorrendo a uma parte insignificante das
combinações possíveis das letras
do alfabeto. E Deus não O é senão
de conhecer o segredo de mover de uma só vez
as contas todas do infinito ábaco da orbe.

Assim uma árvore existe além dos ramos e das folhas
crescendo nas tardes quentes de Julho
por ter na geometria inscritas as suas pretéritas formas.
Há uma regra anterior ao crescimento do tronco
das alvíssimas bétulas de Segirei
ou dos freixos das margens do Tâmega:
apenas a essa regra e ao seu domínio subtil
responde o erguer desses cilindros perfeitos
contra o olhar e a cultura e
os coincidentes erros de percepção.

Era no tempo do Liceu de Chaves e pela primeira vez
nos perturbava a ideia de que a Arte
revertia da compreensão de fórmulas
intemporais. Sabemos hoje que a natureza e a paisagem
procuram ainda na geometria as suas próprias leis
e que o fascínio da raiz do codesso
vem de compreendermos que antes da luz e dos sais minerais
que antes do colo e da coifa
um quadrado ou um círculo se inscrevem por dentro dos seus nomes
pelo lado mais intangível e íntimo e profundo.


Abril 2009

NADIR 1920-2013

Nadir Afonso. Ponte d' Auteuil, 1962.

terça-feira, dezembro 10, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 3: a lenha do inverno

juro que não vou morrer de um ataque de coração
pode trair-me o fígado
podem os rins deixar de funcionar
pode um micróbio atacar-me o cérebro indefeso
porque de resto marco no chão a raia do distanciamento
olho a luz do fim da manhã poisada nos muros do cadastro
olho a sombra invertida dos planos de água inscrevendo nas paredes uma cronologia imune à fita regular da passagem do tempo
amanhece
anoitece
e tudo isso é superior a tudo
aos discursos dos assessores que medem a eficácia das palavras em folhas de cálculo
às manchetes do expresso e do correio da manhã
tão idênticas a procurarem diferenças onde há mais a unir do que a separar
deixo passar os automóveis nas avenidas largas
deixo passar o ruído dos comícios e as frases dos comentadores a abrir os noticiários
afasto-me de quem regressa à política para defender a legitimidade de se comprar um zeppellin de acrobacias
afasto-me da oposição que se opõe a tudo quanto se opuser à narrativa
afasto-me dos poderes que enchem balões com hélio comprado a prestações nas feiras de salvados
afasto-me de tudo
deixo que as cortinas dos bordados antigos separem o deve e o haver
corro as gelosias        
procuro no telheiro a lenha do inverno
o pão e o vinho
não espero os pareceres do tribunal constitucional
não me interessam as previsões do governo para o comportamento da economia no próximo semestre
limito-me a fechar a porta
a afastar-me do barulho
a afastar-me de tudo
a adormecer
a deixar que apenas o vento ou a chuva me sobressaltem ao ponto de me levantar do escano
a confirmar que o portão do pátio não ficou aberto
a rodar nos gonzos
durante a noite

sábado, dezembro 07, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 2: as linhas das fronteiras

é quando os homens se dividem nas linhas das fronteiras e erguem bandeiras indecisas
uma pátria é às vezes um lugar onde se adormece nas noites da mudança da hora
às vezes é preciso desenhar nos mapas uma nacionalidade
um território onde seja possível dizer as palavras antigas em voz alta sem que cheguem do estrangeiro as ambulâncias voláteis da respiração assistida
às vezes é preciso recomeçar
bater com as barras de néon no discurso difuso dos orçamentos
acreditar que uma pedra pode ser uma ave
acreditar que uma sombra repete no chão o movimento vagaroso de uma nuvem
é quando nas fronteiras os homens se agasalham para não desistirem com a boca tapada por fios de arame
e ainda assim avançam contra os caminhos que parecem vir de longe em sentido contrário
se pudéssemos recomeçar um país
se pudéssemos reinventar uma linguagem
um rio seria o lugar do mundo onde mergulharíamos as mãos e as levaríamos ao rosto
para que amanhecêssemos mais perto das
nascentes da água

As Coisas que é preciso dizer. 1: o lume e o gelo

o amor de uma mãe por um filho
o momento preciso em que um filho regressa da guerra e entra no pátio da casa da infância
a carta que um filho escreve do estrangeiro a dizer que não há novidades e que as coisas apesar de tudo parecem encaminhar-se
o primeiro dia em que a mesa tem um lugar vazio
a chuva a escorrer dos vidros das janelas nos últimos meses de novembro como se repetisse as lágrimas de um filho ausente
a marcação da reunião das partilhas
as tardes imensas de domingo
a luz da água dos açudes derramada nas varandas
um riso
um choro
o lume e o gelo
um filho acabado de nascer
um filho que aprende a andar de bicicleta
o amor de uma mãe por um filho
uma árvore a crescer e as nervuras das folhas a erguerem-se nítidas como as linhas dos eléctricos das cidades antigas
desenhadas no chão

quinta-feira, outubro 03, 2013

[A minha avó clotilde]

A minha avó clotilde não
esperava do mundo
senão o dia que começava
a nascer. Chegava
à pequena varanda do largo do muro
e olhava os campos lavrados
ou em repouso
de ser o tempo da névoa
poisada nos cômoros. Depois
certificava-se de que havia
um cântaro com água
e fogo na lareira
ou luz suficiente nos pátios
conforme as estações

do ano. Administrava a escassez
com a sabedoria
de quem entende não haver
nada que falte
em havendo os lugares à mesa
e os retratos a sépia
nas cómodas
dos que não estavam presentes
por justa causa.
E quase não tinha lágrimas.
Chorava apenas de saber
que há sempre alguém no mundo
que se perde nos caminhos
e não encontra o caminho de casa.

[É como no jogo da glória]

É como no jogo da glória: a partida e a chegada
estão em lugares diferentes do tabuleiro.
Não tenhas a ilusão
de que regressas à varanda da infância
ou de que repetes a noite em
que havia o som de um acordeon
contra a chuva a bater nos vidros
das janelas. Tudo é sempre um outro lugar
e não é possível parar a meio do caminho e procurar
a sombra das árvores
que ficaram para trás. Tudo é já diferente
e o mais certo é que chegues aos lugares antigos
e não os conheças
ou não te reconheças neles.

terça-feira, junho 18, 2013

[Vermeer]

Fotografia de Manuel Dias.




1.
Vermeer tinha vinte e quatro anos
quando pintou a cortesã. As grandes dimensões
da tela, a preocupação de preenchê-la
toda até correr o universo todo
nos seus limites, o modo como a luz a invade
para trazer a jovem da penumbra
da casa, revelam-no ávido e crente
das alegrias materiais. Uma cumplicidade
insuspeita com o fogo traía a tranquilidade
frágil da composição, como se vermeer
não soubesse ainda conter a paixão e o tumulto
e do mais fundo de si irrompessem
com violência todos os nomes que mais
tarde quase não poisaram nos seus quadros.


2.
Das quatro paredes entre as quais viveu
a vida inteira, uma apenas, e de cal, despojada
já dos panos e tapetes que chegaram a fazer
parte das suas preocupações, escolheria
para as telas cada vez mais simples.
A erosão do mundo da família aos poucos foi
tomando mão dos planos grandes, e
vagarosamente correu as coisas uma
a uma até espalhar de sombra o sumptuoso espaço
dos primeiros tempos. A música haveria
então de persegui-lo com insistência.
Com as cartas e os mapas, ou seus
fragmentos, ela o acompanhava nos intervalos
cada vez mais vagos da evasão e do sonho.


3.
Mesmo quando, como na jovem rapariga
do turbante, vermeer deixa adivinhar a paz das
coisas que, incessantemente, o percorrem,
é ainda o apelo antigo do coração, um
anónimo fulgor sobressaltado, o que regressa
aos seus pincéis de muito longe. Nessas
margens raramente cabem a tranquilidade
e o repouso que aparentemente o definem.
No mais claro e leve olhar de rapariga
um movimento estranho nos transporta a escusos
e insuspeitos nomes e lugares. Para
repor o equilíbrio do mundo bastam agora
os objectos da casa, a janela só um pouco
aberta, o pequeno espaço do geógrafo.


4.
Só o tempo sabe diluir as cores assim, dos
vermelhos vivos ao azul e ao branco,
do fulgor do corpo às pérolas sem peso
do silêncio, do pulsar intenso da paixão à
paz da casa e ao vulgar comum
das coisas em redor. É um rumor antigo e
transparente o que aproxima os séculos da música
e do vinho ao movimento trémulo
das mãos agora exaustas procurando
sempre. Frágeis, as imagens se repartem
com o tempo e se transformam em nudez
completa, como se a idade média
do olhar, voraz e leve, adormecesse enfim na
vagarosa luz exígua destes quadros.


5.
Vermeer tinha vinte e quatro anos
quando pintou a cortesã. Insistentes vozes procuravam
nele ainda o ardor volúvel, a vigília, o
desencontro, a ilusão do amor. De certo
modo a sabedoria exige o logro, o frémito
efémero da paixão sem outro nome, a
devastação dos sinais de ruína e morte sobre
a ignorância crepuscular da idade.
O tempo, essa inefável clepsidra, dilui
o sobressalto em águas claras e resume os
hábitos do sangue nesta paz tranquila e sem
cuidado. Tão próximo da eternidade, só
é difícil, sempre, a manhã insidiante
e seu ruído contra os vidros e a parede branca.

segunda-feira, junho 17, 2013

[As Cartas Militares. 6]

Nao sei se há outro modo de desmon
tar as vertentes declivosas dos
interesses: nós acendíamos ras
tilhos tirados dos mapas das estradas

e nem escondíamos o rosto com
as mãos para que a luz se aproximasse
dos nossos nomes ilícitos no
momento em que a explosão convocava as

memórias de um tempo justo. Não sei
se há outro modo de reduzir a
cinzas o que um dia julgámos per

tencer-nos: não invocar sequer a
legitimidade de quem já sabe
que luta apenas para ser vencido.

quinta-feira, junho 06, 2013

[As Cartas Militares. 5]

Era quando nos incêndios custava
respirar de ser tão lenta a evapo
ração da água dos açudes. As
fronteiras mudavam de lugar a

té ninguém saber nas cartas mili
tares a indicação das linhas do ca
dastro. A evaporação estilhaçava a
ideia de propriedade. Nenhuma

genealogia resistia a sermos
jovens. E nas páginas dos romances
contava-se a história dos amores que

começavam no tempo dos incêndios
para que findassem apenas em
sendo o tempo de começar de novo.

quarta-feira, junho 05, 2013

[As Cartas Militares. 4]

Depois de tudo dizer-se vem a
noite com a sua árvore de pa
lavras. É só um rumor a mover as
sílabas contra o estuque das paredes

e a frase nem rasurada no livro
da catequese ou a vibração dos
arames das vinhas nos meses de
fevereiro. E tudo se resume a essa

espécie de ilicitude de não ha
ver lugar para o silêncio de ne
nhuma forma de remorso. A poe

sia é às vezes a sensação estranha
de já termos dito tudo o que não
há nem nunca houve para dizer.

terça-feira, junho 04, 2013

[As Cartas Militares. 3]

O tempo não existia entre as par
tidas e os regressos. Apenas vento
ou luz. Apenas uma sombra leve
sobre as águas dos açudes. Um ru

mor. O vento. Um fio suspenso entre os
dois postes do pátio para que o in
verno deixe às vozes exteriores o si
lêncio dos seus nomes. Só depois o

sobressalto de alguém que chega de
longe para recomeçar enquanto
não for o tempo de partir de novo.

E entre a chegada e a partida o
tempo é apenas o espaço das au
sências de tudo o que a ninguém pertence.

segunda-feira, junho 03, 2013

[As Cartas Militares. 2]

Não desejarias do mundo se
não o que o mundo te roubou: as íngremes
escarpas onde juraste morrer se o
inverno não devolvesse à praia as

mais inverosímeis promessas do a
mor. Tudo se resume às coisas simples
e decisivas de um instante em que
julgavas enganar a morte por

um excesso de desprendimento e ar
tifício. E afinal a morte re
gressa de ser apenas uma sombra

desenhada no espelho das impos
sibilidades e o que deseja
rias do mundo já nem tem um rosto.

sexta-feira, maio 31, 2013

[As Cartas Militares. 1]

Penso com as mãos abertas sobre a
roseira do pátio. Penso com os
músculos a subir os degraus. Penso
propositadamente a ruína a

té ser a parte dela que deve
ria ter sido. Penso como se o
pensamento fosse a arte dos nú
meros da indiferença. Penso com

as espáduas a vir do tronco à cabeça
imperecível. Penso com as mãos
abertas ao milagre de nem me

reconhecer num corpo. Só depois
adormeço e um relâmpago há-de i
luminar o que não podemos ver.

Convite para beber um copo ao fim da tarde

Um Amigo para o Inverno




[Capa de Rui Garrido. Fotografia de António Tedim]

terça-feira, maio 28, 2013

Um marcador

Brevemente nas livrarias.


sexta-feira, maio 17, 2013

Ausências e um anunciado regresso

Este tem parecido um espaço de ausências. Mas os regressos podem desde já anunciar-se -- e, num certo sentido, compreender-se-á melhor o afastamento: outros afazeres... Durante a próxima semana tudo será melhor explicado: um novo livro é sempre uma alegria que apetece partilhar com os outros...

sexta-feira, maio 03, 2013

[o anjo da caverna da anunciação: poema de antónio osório]



jcb. Óleo sobre tela, 2012.

quinta-feira, fevereiro 14, 2013

[É isso a poesia]

Procuras ainda a tarde de domingo
em que a luz poisava nos pátios
para que as aves sobrevoassem vagarosamente
os terrenos das nascentes e a geometria dos muros do cadastro
antes de começarem os relatos dos jogos
da primeira divisão
e as mulheres regressarem do largo
com cântaros
de água.

Não é possível. Mas é isso a poesia:
a insistência na impossibilidade
e a recusa de aprender com os erros.

terça-feira, janeiro 29, 2013

[O COMÉRCIO]

1. [Vasco]
Naquela noite fiquei até tarde no café. É certo que lhe tinha bebido bem. Devia ter começado a chover pouco antes de sair. Porque não recordo a chuva senão quando, já perto de casa, tropecei num deslumbrante corpo de mulher. Ninguém, no dia seguinte, e nos dias que se seguiram a esse dia, acreditou nas minhas palavras. Eu mesmo deixei de acreditar. Mas continuo a ver, tantos anos depois, esse rosto de cinema, esse corpo dobrado nos meus braços. Enquanto a erguia sem esforço. Adormecida. Como se não tivesse peso. Como se estivesse a preparar-se para acordar e dançar num espaço sem tempo, no princípio dos tempos. Conversa de bêbado, dirá. Visões que o malte tece. Isso me disseram todos quantos ouviram a minha versão dos estranhos sucessos dessa noite.

2. [Pimentel]
O Vasco é um romântico. Sobretudo quando bebe. Mais ainda na ressaca. Enfim, é um romântico. Nessa noite de meados de novembro de mil novecentos e sessenta e sete parecia que estava a beber de empreitada. Desde as onze, de fio, três ou quatro horas seguidinhas. As mulheres dão-lhe cabo do fígado mais que do coração. Apaixona-se muito e a correspondência é relativa. Acontece que pela primeira vez o rapaz fizera um engate que se dissesse benza-te deus. A prima do Sérgio, recém-chegada de Lisboa. Aquilo era outro andamento. Perfumezinho, decote, saia curta, o cabelo desatado nos ombros. Segue-se que dois dias depois da chegada era vê-los muito agarradinhos no baile do fundo da rua a dançar ao som da grafonola do Albino. Já lhe devo ter dito que o rapaz tem veia poética. Pois imagina. Flores e poemas a rimar, um fio de prata comprado no Inácio, bilhetinhos, prendinhas de namoro. Não que eu não lhe repetisse: deixa-te de paneleirices, menino. Mas nada. Ele fechado em casa a acertar a métrica dos versos e ela no sábado da festa com o Tó Fernandes em aulas de condução. O Vasco, é claro, adoeceu-se daquela parte da alma onde flui a inspiração da lírica. E então recomeçou nos copos. Era sempre assim de tiro e queda, o moço, em se tratando de desgostos de amor. E este, imagine-se, que parecia correspondido. E você agora compreende a razão de ninguém ter acreditado na história do Vasco. Ele fez sempre questão do adjectivo, já deve saber: a história da mulher deslumbrante em que tropeçara às três da manhã quase à porta de casa. Um pifo dos velhos, isso garanto-lho eu. A verdade é que repetia a história com convicção, sempre com os mesmos pormenores, sempre com as mesmas palavras. Isso chegou a dar-nos que pensar. E depois a coincidência espantosa de, subitamente, se dizer que o doutor arranjara empregada de dentro, ou lá que era. Caída do céu, como nos filmes. Pois o Vasco insistia que só podia ser essa mulher que levara a casa do facultativo às três da manhã quando a descobriu no meio da rua. Ele diz sempre o facultativo. O certo é que, a bem dizer, praticamente ninguém pôs a vista em cima à criada do doutor durante o andar de todos estes anos. Eu mesmo a vi uma única vez, ainda assim de relance. Toda vestida de preto, o cabelo desalinhado a fugir-lhe do lenço que tapava parte do rosto. Mas deslumbrante, ora adeus. Nem é o que corre.

3. [Doutor]
O meio é pequeno. Não há nada de estranho ou surpreendente num caso que o não chega a ser. Numa noite de mil novecentos e sessenta em sete, em novembro, ouvi bater à porta. Altas horas da noite, uma noite de chuva. Devo ter demorado, o vento corria nos telhados, não terei ouvido logo. E então aparece-me uma rapariga galega com nome de andaluza. Carmen. Quase desfalecida. A precisar de cuidados médicos. Não soube explicar muito bem como tinha chegado à Vila, não insisti nas perguntas. Ela não se lembrava de nada, ou fazia de conta que não se lembrava de nada. Vai dar ao mesmo. Ficou a convalescer, acabou por ficar. Acresce que. Mas você já deve saber. Carmen não é propriamente deslumbrante. Seja como for. Um médico viúvo não pode ter uma empregada portas adentro. Mesmo que não seja muito bonita. As pessoas falam, é assim o povo. É como lhe digo: acabou por ficar. Nunca fala com ninguém, quase nunca sai de casa, passa o tempo entre a limpeza do pó, a cozinha e a leitura de romances. Lamento, mas penso que o não quererá receber.

4. [Raimundo]
O doutor perdeu a mulher em mil novecentos e sessenta e seis. Agosto ou Setembro. Logo a seguir à festa da Vila. Agosto, portanto. Era uma santa, pode escrevê-lo. Do doutor não direi o mesmo. Bruto como casas, uma pedra no lugar do coração. Estou que nunca olhou um cristão que não fosse de esguelha. Daí já você tira. É assim o mundo, é sempre assim. O mundo está feito de maneira que uma metade sofra sempre pela outra metade. A dona Maria com a caridade dos pobres, as novenas, a luz do Altíssimo, e o doutor na boa-vai-ela em sucessivas surtidas a Espanha. Mulherio, só podia ser. Pois lho digo eu. Dezasseis anos servi naquela casa. E depois a desvergonha de meter portas adentro uma galdéria fugida sabe-se lá de onde. Como as outras que lá iam para o doutor. Cala-te boca.

5. [Joaquim]
Não vá por aí. Aqui as fronteiras não passam de grafismos tirados a tinta da china nas cartas militares. Os próprios marcos, onde e os há, é vê-los cobertos de ervas. As fronteiras são outras. De qualquer modo a verdade é a camada mais profunda de qualquer acontecimento. Não pretenda saber tudo, desvendar seja o que for que passe além da evidência. O Vasco afirma ter tropeçado numa mulher deslumbrante. Pois então tropeçou numa mulher deslumbrante. Agora não comece a fazer filmes. As fronteiras são outras, e essas é que valiam o esforço de procurar esclarecê-las. As fronteiras quotidianas que não vêm nos mapas. As que se erguem entre mim e você. Entre você e o doutor Magalhães. Entre o doutor e as pessoas da Vila. Entre as pessoas e a doente anónima que caiu no consultório do doutor às duas ou três da manhã. Entre essa rapariga, deslumbrante ou não, e o resto da Vila e do mundo.

6. [João Pereira]
É curioso que queira desenterrar um pequeno mistério sem importância do nosso passado recente. Por várias razões. Mas sobretudo porque se tem falado disso desde que você começou por aqui com perguntas. Na café, no barbeiro, na farmácia, no jardim dos correios, as pessoas discutem a chegada de Carmen e a inexplicável teimosia do Vasco em insistir na beleza da moça. Ele próprio não acreditava já numa história que, convenhamos, tinha pouca consistência. Carmen nunca sai de casa. Mas os poucos que a viram, na varanda ou a atravessar o pátio, uma ou outra vez no corredor que leva à sala de espera do consultório, garantem que ela pode ser tudo menos deslumbrante. Estes lugares de província são abstracções territoriais onde nada acontece. As pessoas, aos poucos, vão-se misturando na terra e desaparecem misturadas às raízes apodrecidas dos negrilhos. Onde nada se discute que não seja superficial, irrelevante. A suposta beleza da moça não é coisa de grande importância, acredite. E também pouco importa como ela apareceu ou deixou de aparecer. A grande questão é se o doutor dorme ou não dorme com ela. Esse é o ponto. E isso é que tem ocupado os espíritos desta gente nos últimos catorze ou quinze anos. E se dorme, e é como se não pudesse deixar de dormir, com que frequência o facultativo a assiste. É assim que o Vasco se refere ao doutor. Facultativo. E é isto que verdadeiramente interessa numa terra onde o virgo das raparigas e a graduação do vinho tinto se constituem como temas existenciais. De qualquer modo não deixa de ser uma perspectiva interessante. Não sei. É que a fronteira, aqui, pelo menos aqui, é um traço que divide duas margens iguais de um mesmo rio. Um rio, ainda assim, periférico. Mas não sei. Provavelmente não há uma verdade. Às vezes penso que apenas existem maneiras diferentes de olhar uma mesma coisa, um mesmo acontecimento, uma mesma verdade.

7. [Acúrsio]
Sim, trabalhei por lá uns seis ou sete meses. Foi há tanto tempo, já correu tanta água nos rigueiros da serra. Seja como for. Podia contar-lhe coisas terríveis. Como tratava a desgraçada da esposa, por exemplo. Bem, sim, não foi coisa que tivesse visto. Dizia-se, sabia-se. E das raparigas que lá iam para isso, claro, falava-se à boca pequena. Eu mesmo me recordo de uma moça que chegou aí a coberto da noite e do segredo que envolveu a casa. Eles fechados no consultório e a dona Maria escondida no quarto a rezar pela salvação do mundo. Era o que se dizia. Aqui houve dois ou três casos, mas as raparigas deixavam-nos vir. Quem não tivesse posses ou um bom amparo. Isto é como tudo.

[8. Custódio]
As pessoas, na Vila, perderam a memória. O que é normal. Não há memória individual que sobreviva à amnésia colectiva. À Vila foram chegando pessoas de vários lugares e por diferentes razões. Para trabalhar nas finanças ou na caixa, chefiar o posto da guarda ou montar um negócio de reclame luminoso por cima da vitrina larga. Não tinham por aqui raízes fundas. Quanto aos outros, os que tinham raízes, foram aos poucos procurando livrar-se delas como quem se livra de um incómodo. Até absolutamente nada distinguir uns e outros. Por isso mesmo encontrará agora toda esta gente tão babada com os partidos de Lisboa, por exemplo. E tão distantes do que verdadeiramente lhes pertencia ou podia pertencer-lhes. Procure-os no reservado do café bebendo vinho branco de marca a acompanhar pratinhos de cigalas. São poucos os resistentes. Procuram, nostálgicos, o que não existe. E também eles já começam a comer cigalas e também eles começam a nem procurar. E apenas se embebedam e fazem filhos que depois desaparecem daqui para longes terras ou arranjam um emprego na conservatória ou na secretaria da câmara. Agora as fronteiras. Sei lá se as fronteiras existiam, sei lá se as fronteiras existiram. Hoje sei que não existem. Nem as verdadeiras nem as outras. As simbólicas. Desde logo porque somos todos iguais e as fronteiras marcam lugares de diferenças. Vamos todos perdendo a memória e vamo-nos todos perdendo por dentro de nós mesmos como se já nem pudéssemos encontrar-nos num livro de regressos. Olhe-me essa gente do reservado do café a comer marisco congelado e a beber vinho de marca depois de ter vendido as vinhas. Se não estou a exagerar? Sim. O mais certo é que esteja a exagerar e que entre mim e o mundo se tenha já erguido uma inultapassável barreira de gelo e incompreensão.

[9. Mário]
A raia sempre foi um lugar mágico e recorrente. Um lugar de refúgio e protecção. Um lugar de sonho. Para procurar o amor ou fugir ao fascismo ou simplesmente à desgraça a que o mundo rural votou fervorosamente os seus filhos. A raia sempre foi um lugar por onde se transportaram ilusões difusas. Um lugar virado ao sonho mas também um lugar de desgraças. Por ali fugiram tantos emigantes não se sabe de quê. Alguns morreram ou desapareceram entre o comércio de passadores sem escrúpulos e esses caminhos que lhes eram estranhos. Mas agora me interrogo. Onde quererá você chegar com estas conversas sobre a raia? Acha que isso atrasa ou adianta à história do Vasco e da galega que se amantizou com o doutor?

[10. Pedro Mendes]
Não acredite na teoria dos acasos. Carmen veio parar aqui por razões políticas. Para isso serviu a fronteira tantas vezes. Podia contar-lhe muitos casos. Desde a guerra civil. Mas também depois, e então sobretudo em sentido inverso. Agora essa história dos desmanchos e da boa-vai-ela por terras de Espanha. Trocaram-lhe as voltas à narrativa. O doutor Magalhães nunca se alheou da política. Certamente que, por razões políticas, a protegeu. Como acreditar que é ao calhas que alguém vem parar a um sítio destes? Já havia história. Só podia haver. Claro que é isso que corre. Que um acaso a levou a casa do doutor. O acaso de mais uma tosga do Vasco. A encontrar uma rapariga deslumbrante, desfalecida, no meio da rua, às duas ou três da manhã. Ou talvez não. Digo eu. O certo é que o próprio destino tem os seus quês quanto a uma coisa ser consequência de outra como se não pudesse ser de outro modo. Que sabemos nós? Fale com o Sousa. O Sousa acompanhava-o nessas andanças. Verá como a história é diferente da versão de vão de escada que lhe contaram. Não quer dizer, enfim, que não houvesse muito vinho e espanholas de salero fácil à mistura. Lá de quando em vez. Mas eram outras as razões essenciais que os moviam. Nas casas de ambos dormiu muito fugido ao fascismo. Repare como a palavra já parece estranha. Soletre devagar. Fas-cis-mo. Esquecemos tão depressa. E depois essas tretas da mulher do médico. Uma beata de fundo de sacristia feita com o padre e as guardiãs da moral. Posso indicar-lhas a dedo, uma a uma, ainda. Todas juntas não fazem uma. A lançarem boatos desses. Nunca compreenderam, não podiam compreender. Acontece que o facultativo. É curioso. O Vasco diz sempre facultativo. O doutor deve ter deixado correr o boato dos desmanchos. A história acabava por lhe ser favorável. Justificava as movimentações estranhas a meio da noite, por exemplo. Esta é que é a verdade. Fale com o Sousa, o doutor pouco lhe haverá de adiantar. Ou nada. Ficou seco. Desiludido com o rumo que as coisas tomaram, com o rumo que as coisas tomavam. Mesmo em setenta e quatro, enfim. A verdade, de qualquer modo, é que Carmen nunca saiu de casa, não permitiu nunca que ninguém lhe visse o rosto por inteiro. Que pretende ocultar, ou revelar, com este mistério? Ninguém sabe. Penso que ninguém virá a saber. Nem você. Há sempre qualquer coisa que se não desvenda nunca, não acha? Um segredo, um mistério, o avesso de uma evidência permanecem para além do que sabemos e para além de todas as indagações.

[11. Júlio France]
Lembro-me de quando rapavam fome e não tinham uma leira e não amanhavam emprego. Nessa altura eu não era ainda o passador sem escrúpulos mas a tábua de salvação no meio da tormenta. Davam-me prendas, prometiam favores, convidavam-me para apadrinhar os rapazes e dar-lhes o nome. Empenhavam-se, é certo. Mas essas casas que vê agora a erguer-se com telhados suíços, esses carros lustrosos em que regressam, esse nariz erguido a pedir rodadas de grades, é a mim, e a outros como eu, que devem. Porque também nós arriscávamos o futuro. O nosso e o dos nossos. O mesmo com o contrabando, não lhe escondo que fiz muito. Contrabandeávamos as coisas mais incríveis, até enxadas e foices. Mantas e calçado, café e tabaco, cacau e perfumes baratos. E por isso, você não é desse tempo, as raparigas, nos bailes, nas festas, nas bodas, cheiravam todas ao mesmo perfume. Certa vez a minha mulher andou quase três horas em redor da capela de S. Caetano com um saco de contrabando à cabeça. Como se fosse o centeio de uma promessa grande. Eu andava seguido. E então com a guarda republicana a espreitar de um lado e os negociantes a espreitar do outro. Duma outra vez, em princípios de vida, impingiram-me uma remessa de sapatos todos do mesmo pé. O que passei para os vender, na feira da Vila, nos largos das aldeias, com artes e maroscas que só eu sei. Agora, eu que fui preso, que andei fugido pelos atalhos dos montes, sou corrido de passador sem escrúpulos. Por esses mesmos que livrei da desgraça dos trabalhos do campo. Por esses que vê de porta aberta no comércio, de espadinha com cromados puxados a parafina, de casa forrada de azulejos, de esposa no cabeleireiro duas vezes à semana a fazer mises.

[12. Sousa]
Pois como te hei-de dizer. O Magalhães nunca tocou no assunto. Não ia insistir. Só te posso dizer que a Carmen é de uma beleza perturbante. Não me admiro que o Vasco se não recomponha da visão daquela noite antiga em que a diz ter encontrado desfalecida no meio da rua. Ele é um romântico, já deves saber. Pois acontece que a Carmen, inexplicavelmente, não aparece à janela ou à varanda senão a esconder o rosto e vestida de negro da cabeça aos pés. Riem-se quando o Vasco a descreve. Como é que ele diz? Deslumbrante. As pessoas riem-se. Pois desculpar-me-ás, o assunto é delicado. Bem vês, o próprio Magalhães foi cauteloso quando falou contigo. Calculo que também não tenha tocado em nada que respeite ao passado político. É um homem magoado. Lutámos juntos, conspirámos, arriscámos, tínhamos ideais. Não gosto de dizer ideais porque a palavra remete para a abstracção das utopias. O que nos movia eram coisas muito concretas. A injustiça, a arbitrariedade, a desumanidade disfarçada por uma capa filha da puta de bons sentimentos. Era tudo gentinha excelente. Praticava actos de caridade, rezava a Deus pela saúde dos pobres. Não é que tivéssemos ideais, portanto. Lutávamos por coisas concretas e sabíamos que não haveríamos de mudar o mundo. Nem queríamos mudar o mundo: esperávamos apenas conseguir mexer um cibo nos seus eixos. E incomodávamos. Isso é certo. Mas agora já tudo parece estranho, ridículo. A sacristia venceu-nos. E as pessoas esquecem. Sobretudo o que não chegaram nunca a aprender. O fascismo, por aqui, foi sobretudo silêncio. Não era nada de propriamente palpável, material. Era apenas silêncio. A guerra colonial era um pano muito largo de silêncio quando não era exaltação dos valores pátrios. A emigração era silêncio. A iniquidade era silêncio. A injustiça era silêncio. Fodeu-se tudo em deixa-andar. E quando se foi a ver já nem havia jovens e ficaram apenas os velhos como restos do rame-rame. Repara: até o grupo de futebol acabou. E o doutor Magalhães, claro, sempre incompreendido e a ficar do lado dos vencidos da vida. Porque nada mudou entretanto. O grande sonho desta gente toda passou a ser varrer para debaixo da mesa as migalhas da ruralidade como quem se livra de um incómodo ou de uma vergonha. O sonho passou a ser o comércio e o terciário: abrir um café ou arranjar um emprego nas finanças. E ter uma conta no banco e ter direito a crédito. Um dia esta merda vai dar um estouro que nem uma castanha. Mas ninguém liga. E o doutor desistiu. Com fama de empedernido, insensível, espalha-brasas. Já imaginas o quanto lhe custará falar destas fronteiras mesquinhas que o separam de um povo que tanto julgou amar e por quem se dispôs a arriscar tudo.

[13. Vasco]
É isso, depois de tantos anos, que procuro. O voo dos pássaros no princípio da manhã, os bois sonolentos atravessando a ponte do moinho do Cubo, a avenida de plátanos e seus muros de pedra solta, mulheres regressando à Vila com maçãs e nozes. Procuro o que não existe. A mata de carvalhos a meio do Padrão, as cobras d água caçando peixes nos remansos de Requeixe, as flores d Abril dos negrilhos, os amentilhos dos amieiros debruçados sobre os leitos estreitos dos rios. Como podemos viver tanto tempo com este peso insustentável das ausências. Pergunto. Ninguém responde. Procuro o vinho enterrado nas adegas frescas de saibro e paredes de granito, o choro e o riso, as feiras antes do plástico, os ourives de filigrana, os comerciantes de fazenda e os seus jogos simples de esconder e mostrar. Procuro as raparigas impacientes a galgar os atalhos com roupas novas, o salgueiro na curva da ribeira do Fontão e do mundo. Procuro, portanto, o que não existe nos intervalos de procurar o sinal ou o símbolo de tudo o que se perdeu. Alguém me segreda o nome de Carmen? Por sobre as pedras e a urze, por sobre o alecrim e o odor antigo da terra quando começa a chover, eis que chegam as máquinas e o comércio atravessando campos de cultivo, hortas e lugares. Por sobre as linhas do cadastro, como num movimento em falso, ergue o silêncio muros de cimento, nomes de traição. Chama-se Carmen, assim o dizem. Assim mo dizem a mim, eu que pela primeira vez, deslumbrante, a ergui nos braços contra a chuva e a sombra e contra o que ameaçadoramente regressa com a noite. Ou se perde com a noite. Não tenho lugar nem palavras para esse refúgio. Desde então, simplesmente, a procuro como se a procurasse em mim, em alguma parte de mim, eu que procuro apenas o que não existe. E por isso, em rigor, Carmen, assim se chama, não existe. Ela que, deslumbrante, ficou em casa do facultativo para assistir ao fim de todas as coisas. E para dar um nome a tudo quanto se perdeu. Às romarias, ao acordeon, à avoadinha e aos campos de poila, à banda de música no coreto de madeira, a quanto participa da invenção do mundo. Carmen. A que regressa do outro lado da fronteira para morrer sem rosto e sem nome, indecifrável, e sem fronteiras, do outro lado do mundo.

[14. João Ventura]
A chegada de Carmen foi de tal modo importante que já nem lhe sei dizer, assim à distância, se foi ela, a emigração, a televisão ou a guerra colonial o que mais transformou a Vila nos últimos anos até a deixar irreconhecível. Não falo dos camiões a descarregar vigas de cimento e perfis de alumínio e dos edifícios pacóvios ou dos loteamentos que avançaram contra os muros antigos das propriedades e as árvores de fruto. Não falo do ostensivo abandono da terra. Não falo da descoberta dos empréstimos bancários como modo de vida. Falo de algo mais profundo que parece ter começado a ruir a partir desse dia em que o doutor Magalhães abriu as portas a uma rapariga supostamente muito jovem e, assim o espero, deslumbrante. Porque, por esse tempo, a beleza era um crime. Carmen, que só muito raramente se deixou ver a atravessar a varanda ou no canto do pátio onde cresce a sempre-noiva, não permitiu nunca que alguém pudesse adivinhar-lhe o rosto escondido por um lenço, descaído até aos ombros, nem o desenho do corpo, diluído por entre roupas negras e largas. Repare como, de um modo geral, é ponto assente a pouca beleza da moça. Assim o fizeram correr as guardiãs da moral, as defensoras dos costumes, os paladinos das virtudes antigas. Carmen atravessara a fronteira. E a fronteira foi sempre uma vil e insinuante sombra derramada sobre os telhados da Vila. Era do outro lado da raia que chegavam os perigos ou a ameaça. Ou o que se desconhece. Foi por aí que chegaram os sete mil e quinhentos soldados de Napoleão que dormiram na Vila e seguiram caras ao Porto deixando atrás de si um rasto de medo e destruição. Foi por aí que chegaram homens e mulheres fugidos à ignomínia de Franco. Mesmo quando o futuro é que estava em jogo, e atravessar a fronteira significava fugir à desgraça, era ainda o choro de quem ficava que marcava os desígnios dessa esperança. Com a chegada de Carmen, como vê, tudo mudou. Desmoronou-se, sobretudo, o castelo impenetrável da moral. Ou, enfim, estilhaçou ligeiramente. A Vila, e só por isso já seria importante você ter começado por aqui com perguntas, voltou a acreditar nas palavras do Vasco. E começou a acreditar que a rapariga, afinal, talvez até pudesse ser deslumbrante. E que da beleza não vem propriamente mal nenhum ao mundo. Não é um crime. O que significa que, num certo sentido, a Vila pode voltar a acreditar em si mesma. Só é preciso que este mistério, contra as suas indagações e a má-língua do mundo, verdadeiramente permaneça.

[15. Doutor]
O Sousa garante-me que posso confiar na sua discrição. Pois bem. Esclareçamos de vez este mistério. Sente-se, a conversa será longa. Uma parte da história já você conhece. Numa noite chuvosa de mil novecentos e sessenta e sete, depois de ter atravessado a fronteira e correr caminhos de montanha quase desertos, Carmen, cansada e incógnita, chegou à Vila. Como terá oportunidade de ver, e apesar dos seus quase quarenta anos, é duma beleza perturbante. Tínhamos combinado que. Quer dizer: nós tínhamos sido apresentados por. Mas vamos por partes. Vasco, completamente bêbado, regressa a casa e encontra-a deitada no chão. Inconsciente. Nem sei como conseguiu trazê-la nos braços e mantê-la erguida à entrada da porta. Eu estava a dormir, não terei acordado logo. Foi então que. Mas sente-se. A conversa, como lhe digo, será longa.