quarta-feira, maio 30, 2007

O olhar

Difusas periferias.
Entre o desastre e os antigos
canais de rega, entre pomares abandonados
e paredes escalavradas,
entre a aluvião e o asfalto,
fasquias,
barracas de zinco.

E no entanto
se uma criança se aproximasse e dissesse
«isto é a minha casa»
compreenderias
que numa certa perspectiva
a periferia é o centro.

Uma fotografia

Muitos anos depois, muitos mais
do que na verdade foram, vês a fotografia
por acaso ao folhear um livro.
Era o começo do Verão. Ela
está sentada no muro do tanque
e segura nas mãos uma garrafa de cerveja.

A memória não devolve
unicamente os factos, os esbatidos
limites das imagens: agora compreendes
que tudo era diferente
do que está nos retratos.

É certo que um flash
apenas regista o tempo coevo do disparo.
Mas dispara para além dele
em direcção ao futuro.

segunda-feira, maio 28, 2007

Pássaro

O estilo é o que une o pássaro
e a sua abstracção. O estilo
é o que permite à ideia de pássaro
ganhar súbita leveza e aventurar-se
num voo real sobre os telhados
e as árvores. O estilo
é o que transfigura as palavras
em objectos sensíveis
ao tacto. O estilo
é uma cicatriz, uma incisão
nos pulsos protegidos pela tradição
e pelos muros altos das casas.

sábado, maio 26, 2007

Não é verdade

Não é verdade que o mar
e os teus olhos se confundam.
Isso diz-se nos poemas.

quarta-feira, maio 23, 2007

Em vez do silêncio [Actualizado]

Riscar aos poucos, uma
a uma, as imagens, as palavras.
Reduzi-las a um breve núcleo
substantivo. E depois apagar
de novo, uma e outra, uma
e outra. Até à ilusão
da nascente, à nuvem
das águas subterrâneas.

Por uma poesia
que não dissesse. Que não enunciasse.
Que apenas deixasse
nas folhas das árvores
o que se esconde por dentro
do obscuro rumor
indecifrável das palavras.

A arquitectura e a árvore:
um sistema filosófico
dividido entre a perfeição
da matemática e
a claridade iniludível
da experiência. Entre
a razão e a verdade.

Apagar as palavras, uma
a uma, até à ilusão
da primitiva vertigem
criadora. As raízes
da árvore erguendo-se
em vez do silêncio
e em vez do poema.

[Actualização]

jcb

ao pé de ti

domingo, maio 20, 2007

Ao pé de ti

Não discuto as alterações climáticas.
Estou ao pé de ti e compreendo
que a coisa não vai acabar
muito bem.

Água, lume

Dizê-lo de novo
como se fosse preciso
dizê-lo de novo:
água, lume.

Em vez da página.
Em vez do poema.
Em vez das duas tão
breves sílabas do teu nome.

Nenhum rumor

Nenhum rumor. Nenhum movimento. Nenhuma ave. Nenhum barco. Nenhuma onda. Nenhuma sombra. Nenhuma pedra nas vertentes declivosas. Nenhuma fogueira acasa nas clareiras. Nenhum fruto. Nenhuma água. Nem a indiferença.

sábado, maio 19, 2007

Se tu soubesses

jcb



Se eu te dissesse

jcb



Uma viagem antiga

jcb


Máscara

jcb



Cão, lua, sombra

jcb


quarta-feira, maio 16, 2007

[PUB]

jcb






Terra, ar, água e lume: os albricoques da Casa de Cacela.

[nas páginas dos livros]

Alguns dos melhores escritores portugueses estão a escrever sobre Vila Real de Santo António. Hoje, às 18 horas, A. M. Pires Cabral vai estar no Centro Cultural António Aleixo para falar disso - e dos seus livros, e do que realmente importa: o mundo, o riso, o silêncio, o «sentimento/ de que a vida não é prazo bastante/ para dar ao amor seu preço isento».

terça-feira, maio 15, 2007

Ou nem isso

Tão pouco poderias já levar-me
com tua lâmina:
um decassílabo, a memória dos
troncos das bétulas a caminho de Navoloki,
o rio Mente às seis e vinte da manhã,
uma açoteia, uma parede
de cal, as folhas do negrilho,
a mesa dos amigos
no primeiro dia
de março. Ou nem isso
me tiravas: por osmose,
no essencial, muito haveria
já de quedar-se
misturado com os ossos.

[Um poema de A. M. Pires Cabral]

OS CIGANOS


Dizem que vêm da Europa Central. Eu vejo-os vir
dos lados de Grijó em lassa caravana.

Debaixo da carroça trota a coelheira,
aproveitando a sombra débil e ambulante.
Sentado na boleia, as rédeas na mão morena
descuidadas, um homem cisma, confia
do caminho ao macho lento a decisão.
Outros homens a pé e mulheres novas
entretêm de riso a caminhada espessa.
Logo após, sobre os burros, os pertences.
Alguns velhos também, já cansados de tudo,
tiram partido do precário trote. As crianças
de peito sugam em sonolenta teima
as elásticas tetas sacudidas, mas alvas e redondas.
Os mais velhitos caminham repartidos
em pequenas e lúdicas manadas, dando
às hortas laterais breves saltos furtivos.

Toda esta gente é morena e tem fala cantada,
levanta para mim doces olhos castanhos.
Dizem que vêm
da Europa Central, de uma raça sem chão,
e aqui procura, de insultos rodeada,
cumprir a sua luta, seu degredo
e sua primitiva vocação.

Dizem que os ciganos desenterram animais defuntos
de alguma enfermidade menos limpa
e neles cravam dentes de fome milenária.
Dizem que as mulheres estão na intimidade
das estrelas e a troco de uns mil-réis
lêem nas mãos destinos coloridos.

Dizem que roubam quintais e assaltam capoeiras,
e os aldeões, em pânico secreto,
os expulsam com voz impiedosa e decidida mão
das cercanias do seu chão governado.
Dizem que enganam os crédulos campónios
em negócios sempre escuros de animais,
em que fazem passar por uma estampa
o mais escalavrado e cego dos cavalos.
Dizem que na vila, ao desfazer das feiras,
têm por costume, depois de embriagados,
trocar com as bengalas possantes e vistosas
pancadaria rija, de que morrem.
Dizem que vivem estranhos dramas passionais.
Dizem que não têm deus e que se casam
lançando ao ar jubilosos chapéus.

Dizem tudo isso dos ciganos. Eu não sei.
Vejo-os vir dos lados de Grijó
e estão todos de frente para mim
e parecem-me gente - nada mais.

segunda-feira, maio 14, 2007

Depois de tudo

Depois de tudo
do desejo do tumulto da guerrilha
regressar de novo às águas claras
das manhãs de junho
em Segirei

sábado, maio 12, 2007

Um estranho afecto

Um estranho afecto, inverosímil, a
une a este telemóvel velho de
que não se quer por nada
desfazer: o mesmo afecto que sentimos às vezes
pelas casas da infância, pela memória
de uma tão distante manhã de julho em que o amor
nos tocou nos ombros
nus, por um cão que ficou à nossa espera
meses e meses sentado no degrau do
fundo da escaleira.

Mais tarde

Minúsculo grão, finíssimo
veio de água, uma
palavra, um verso, uma sílaba,
uma página
onde nem a luz poisou: isso,
ou nem tanto, é certo,
iniludível,
permanecerá ainda.

quinta-feira, maio 10, 2007

Rhom

Chegavam como se viessem
de nenhum sítio a caminho
de sítio nenhum.

quarta-feira, maio 09, 2007

As fogueiras

As fogueiras nos largos iluminavam apenas
não os astros imóveis suspensos por fios divinos
mas o seu movimento constante
a intolerância
as evidências que as labaredas procuravam
ainda desmentir

Foi assim no séc. XVII
foi ontem no telejornal

sábado, maio 05, 2007

[Campanhas felizes]

Também eu não acabei os estudos.
Sirvo cafés num bar perto da estação dos comboios
e adorava ter um curso superior
como os meus amigos desempregados
que passam as segundas feiras
nos serviços da segurança social
sem problemas de iliteracia
a receber o subsídio
ou a preencher formulários
anexando o Diploma.

Nuvem, 2

jcb

Uma cidade do Sul

A matemática e a música são contemporâneas
uma deriva da outra
como a nuvem deriva da água e a água deriva da nuvem
num rectângulo inscreve-se
o valor do intervalo da terça menor da oitava
e os três sobre dois dão a quinta justa
e os nove sobre cinco dão a sétima menor

A emoção o desejo os alexandrinos os versos do amor
a sinfonia número trinta e oito em ré maior
uma cidade do Sul
a altura das empenas das casas da Praça
a frase que Borges repetiu de Cervantes que a repetiu
dum tratado antigo de geometria
as coincidências e labirintos do Número dois vírgula quatro
a raiz quadrada de dois mais um

tudo reverte da emoção e do desejo
que são contemporâneos da música e da matemática

quinta-feira, maio 03, 2007

[Ainda a Lesma]

«(...) certamente nostálgicos, mais do que de um regulador dos inconvenientes do livre pensamento, de um messias que os salve e que lhes indique o rumo.»

Texto completo, aqui.

terça-feira, maio 01, 2007

Nuvem

jcb

[Letra]

Memória digital


Eu vivo do momento
que passa e não regressa
se corro é contra o tempo
desculpem tenho pressa

Não quero as melodias
tão lentas do vinil
um ano são dois dias
e num cabem dois mil

Não quero o amor sereno
das cenas de hollywood
eu prefiro o veneno
prefiro a inquietude

Antes poder errar
que ter sempre razão
antes dois a voar
que um pássaro na mão

Memória digital
imagens virtuais
o tridimensional
é pouco e eu quero mais

Memória digital
imagens virtuais
o tridimensional
é pouco e eu quero mais

Viajo no futuro
contigo já se vê
basta no quarto escuro
ligar o meu PC

Mas não quero tocar-te
que o tacto compromete
só poderei amar-te
se for na Internet

Memória digital
imagens virtuais
o tridimensional
é pouco e eu quero mais