quinta-feira, maio 22, 2014

[Vilarinho Seco]

Inverno após inverno o coração a
preto e branco tece a monotonia desce
em fios oblíquos poisa enfim abandonado nestas
margens onde o próprio fulgor da idade

parou a descansar os ombros os braços a
voz inúmera e arável uma alegria que
o tempo foi esculpindo nos rostos e nas casas
uma serenidade tantas vezes próxima do

inquietamento e do milagre. Inverno após
inverno a preto e branco a inocência cresce
sobe às paredes mais altas desenha nas saias
e nos lenços o que só com o desejo

pode partilhar: o silêncio grande do largo
a casa fechada a monotonia dividindo com o corpo
os mapas e as razões para uma
última viagem sem pecado nem memória.

[Tílias]

[para o Pedro]



Não saberemos nunca de que lado
o seu olhar partiu em direcção ao rio
à curva do muro à sombra
também dos lódãos em setembro a caminho do azul

e outras águas. Raras vezes a manhã
terá morado assim as suas vozes no crepúsculo
devagar abrindo junto à casa
aos poucos degraus por onde cresce

o morangueiro o alecrim o pequeno sol da infância
a crueldade ainda do inverno
repetindo modos de perder as coisas.
Hoje as abelhas talvez apenas demorem mais

tempo na corola de fogo do seu nome
no telhado novo na laja da mesa
onde o esquecimento adormece com as mãos
dobradas em quatro sobre o pano da memória.

sexta-feira, maio 16, 2014

[A Redundância]

A máquina hidráulica repõe
nos canais de rega
a água e a luz remanescentes do inverno
um veio de silício que mistura a
obscura matéria dos astros e
a poeira incombustível das
folhas das árvores depois dos meses breves
de junho
a cal incinerada nos fornos de calcário
as mãos abertas em vez da intempérie
a página dos romances e

se respiras impões uma gramática
a Lentidão
a Redundância.

terça-feira, maio 06, 2014

[Não havia fronteiras]

Podias então dizer
tudo me pertence:
a luz de junho poisada
nos taludes ou nas folhas
minúsculas das cerejeiras
bravas, o mapa
das efémeras migrações
dos nomes, os territórios desenhados
nos cadernos de duas linhas
logo depois sujeitos
à voragem dos incêndios.
Não havia fronteiras:
em vez das bandeiras
espetavas na terra lavrada

uma vara de lódão.

quinta-feira, maio 01, 2014

[Os objectos comuns]

Eram objectos comuns
e no entanto os
seus nomes estabeleciam categorias
além dos nomes

que os designavam: vasos,
cântaros, vasilhas
de alumínio, púcaros
de água.

Só não regressas
a esses nomes
porque nunca te desligaste
deles. É

uma fidelidade
que a filosofia da contemporaneidade
não aprendeu ainda a inscrever
nos seus pressupostos

e que um dia emergirá
naturalmente
por entre diagramas e os gráficos
da crise.