terça-feira, abril 29, 2008

2.

No dia seis de Junho de mil oitocentos e noventa e um, numa casa a jusante da Ponte de Arame, nascia uma criança a que deram o nome de João. E deram-lhe um nome pela razão simples de que a um homem ou a uma mulher, sejam quais forem as circunstâncias que irremediavelmente lhe marcam logo à nascença o futuro curso dos seus dias, não se nega um nome. João, apenas. João, sem mais, sem patronímico, sem nenhum rasto ou vestígio da genealogia, como se a memória avassaladora do tempo pudesse apagar-se na recusa da única herança de que é legítimo esperar nesse momento mágico em que a vida e o mundo coincidem. Leonor, em circunstâncias nunca muito esclarecidas, morreu durante o parto. Desde que a gravidez se anunciara, desde o momento em que não podia mais ocultar o segredo do delito grave do amor, tinha sido afastada do convívio público; e dali, da Vila, a levaram seus pais a um lugar mais afastado do mundo. Aí ficou, meses, nessa casa com um pátio onde lhe era dado sentar-se à sombra de uma tília centenar. Não lhe ouviram uma lamentação; não deixou de sorrir: um sorriso enigmático em que pareciam misturar-se a tragédia e a melancolia. Leonor não poderia chegar a saber que o recém-nascido, nesse mesmo dia seis de Junho, seria entregue aos cuidados de um casal da Aldeia; não poderia chegar a saber, também, que o filho do seu encontro com o engenheiro das florestas haveria de nascer com uma mancha escura desenhada na palma da mão esquerda representando com nitidez os contornos, a nervura, os lóbulos sulcados duma folha de carvalho-negral. Um silêncio fundo, interrompido apenas por um ou outro breve rumor manifesto, haveria de guardar esses segredos ao longo dos anos.
Capítulo IX
.
(Onde se apresentam resumos do que é possível por agora dizer-se ligando fios dispersos e se acaba por seguir um caminho imprevisto)
.
1.
.
O engenheiro das florestas morreu nessa noite de dezassete de Novembro de mil oitocentos e noventa. Supõe-se que Fernando Lalice (nessa altura não era ainda Lalice) o surpreendeu no quarto com Fernanda, o arrastou à Colina da Raia, o dependurou num ramo do carvalho grande, suspenso por uma corda carral enrolada ao pescoço, e lhe queimou o rosto com um archote aceso até o deixar irreconhecível. À Vila demorou a chegar essa normalidade que apenas o Pai Ventura parecia anunciar, finalmente de paz consigo, com o mundo e com a memória dos cães afogados num gralheiro abaixo da Presa do Moinho Velho. Os trabalhos na floresta acabaram pouco tempo depois: ainda veio gente de Lisboa, ainda se chegou a imaginar que o plano antigo haveria de manter-se; mas a falta de colaboração de Fernando, primeiro, e depois a sua oposição ostensiva, revelaram-se decisivas e precipitaram o fim do processo. É verdade que se tratava de uma fase experimental. O mau, no entanto, é começar: o mais certo, conhecendo a gente os políticos como conhece, é que a continuação do programa de transformação da paisagem fosse apenas uma questão de tempo.

sábado, abril 26, 2008

18.

Encontrei Leonor várias vezes depois dessa noite. Um segredo juntáva-nos e delimitava um território que nos separava do mundo. Escrevo estas notas no dia 17 de Novembro de mil oitocentos e noventa. Cheguei à Vila (parece mentira) exactamente há um ano. Tudo, entretanto, mudou. A minha vida mudou. O mundo mudou, como muda sempre, à medida que as nossas vidas mudam e as mudanças das nossas vidas mudam o mundo em que vivemos. O Inverno trouxe a chuva, de novo, e o barulho da chuva caindo nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos; o Inverno trouxe a geada e esse silêncio quase mágico das coisas suspensas das folhas e dos ramos dos arbustos da serra; o Inverno trouxe a primeira nevada do ano, esse branco quase azul de tão branco que cobre as ruas e as casas, os taludes dos caminhos e os muros, as margens das ribeiras que descem dos montes entre o sobressalto e a quietação dos vales. Estava frio. Uma nuvem densa anunciava a tempestade. Eu tinha-me metido a caminho das pastagens por baixo do Voluntário. Era ao fim da tarde. Subi pelo carreiro do Lajedo, cheguei ao bosquete de carvalho-negral, segui arrumado à vedação do muro de pedras. E foi então que a vi. Ela sorriu; como se me esperasse; como se me esperasse desde o fundo do tempo. Sorriu. Eu disse «boa tarde». Embaraçado, confuso. «Como está, Leonor?» Não me respondeu. Tinha uma navalha nas mãos. Virou-se ligeiramente e esculpiu um coração trémulo no tronco branco de um vidoeiro. Só então me olhou de frente. Eu via a tarde a descer as encostas, uma nuvem de sombra a poisar na copa mais alta das árvores. Aproximei-me. E compreendi que esse coração trémulo haveria de ficar gravado na minha pele como uma cicatriz ou uma doença do corpo.

sexta-feira, abril 25, 2008

17.

Sentia-me confuso. Sinto-me perdido à medida que o tempo avança e aumenta o fascínio por um lugar que tarda em pertencer-me. Há uma contiguidade dos homens, dos seus gestos, das suas memórias, com a terra onde nasceram e ergueram as árvores, lavraram os campos ou abriram valas de rega. Há um fio que liga o coração e as raízes dos negrilhos. Eu vinha de fora. E, aos poucos, imaginei poder vir a fazer parte desta geografia. Eu vinha de fora com a missão de criar uma paisagem. O mundo acaba por pertencer-nos quando uma espiga nos entrega, múltiplo, o primeiro grão que semeámos. Imaginava as encostas desenhadas pelos meus cadernos de campo e pelos planos de plantação. Imaginava um território a que começaria a pertencer à medida que esse mesmo território, devolvido por um espelho de palavras, me fosse pertencendo. Mas cedo compreendi a extensão do logro. A paisagem é sempre a consequência do modo como os canais construídos regulam a circulação das águas da chuva ou de nascente; dessa relação antiga entre o lugar e a mão. Como se alguém dissesse: aqui um rio, aqui uma árvore. E só então o mundo fizesse sentido.

quinta-feira, abril 24, 2008

16.

É tarde da noite; entro no quarto; deito-me; custa-me adormecer; sinto-me perdido no mundo. E penso que só me faltava isto: Leonor; os seus olhos fundos; o modo como anda sem quase tocar as tijoleiras dos pátios, o saibro dos caminhos.
15.

Primeiro foi a chuva, e depois o vento, e depois a geada, e depois a neve e esse silêncio que, em vindo a noite, parecia ficar agarrado às estrelas por fios invisíveis. E depois a Primavera, com o colorido das encostas e a neblina, manhã cedo, a erguer-se vagarosamente dos vales. E depois o Verão. E já quase o Outono. Os dias revertiam desse calendário feito de luz e sombra, gelo, vento, calor e penumbra, chuva, claridade, névoa. Tudo arrumado: o gelo, a chuva, o vento; a névoa, a claridade; a luz, o calor; a sombra, a penumbra. Vive-se em função desse calendário meteorológico: as pausas e a vertigem, o arado, os enxertos (o garfo e o cavalo), o centeio estendido nas eiras, o aricar e o tender, o escafular, o uso da tarandeira, os merouços de palha. Alguma coisa mistura os frutos e os homens, as mulheres e as folhas e as raízes das árvores, as crianças e a cor dos matos das vertentes; até não haver nada que separe um caule e um gesto. É tarde. Tarde da noite. Revejo as memórias descritivas, as plantas à escala 1:2500, os levantamentos topográficos, os esquemas de plantação; e compreendo que algo separa irremediavelmente os meus planos e a realidade tangível.

segunda-feira, abril 21, 2008

14.

O que é o amor, o que é o desejo? Não há outros mistérios no mundo. Eu tinha visto Leonor uma única vez; quase logo a esquecera. Porque a aparição desse corpo a iluminar uma tarde de Primavera indecisa, deitado, nu, a confundir os seus contornos no desenho dos arbustos de arando, revertia da ideia de milagre; de impossibilidade. Mas ela, ao jantar, sentou-se a meu lado. Eu vi as suas mãos concretas a poisar na mesa os tabuleiros do forno; vi o seu riso e, a espaços, uma espécie de mágoa que parecia vir de longe; senti o ar movendo-se entre nós, tocando-nos, misturado ao seu odor, quando se levantava ou se sentava. O que é o amor, o que é o desejo? Nunca sabemos. Eu tinha apenas a certeza de que a imagem de Leonor ficaria agarrada à minha pele, como uma cicatriz funda, para sempre.

domingo, abril 20, 2008

13.

Esperava ser recebido com animosidade. (Talvez não: este povo já não me era estranho.) Américo Fontes tinha começado por nos levar ao fundo do pátio: «gostava que vissem a vinha antes de bebermos do seu vinho.» Seguimos depois a um telheiro onde nos sentámos a aproveitar a leve aragem do crepúsculo. Eu não sabia como encetar a conversa; Américo falava de tudo menos de pinheiros e plantações. Falava do vinho: das uvas colhidas em Outubro, do modo como eram pisadas no lagar de pedra, da trasfega, do engarrafamento num dia de Março ou Abril em que não houvesse uma nuvem no céu, do chão de terra da adega onde as garrafas eram enterradas para que o Verão, o mês de Julho, um fim de tarde como este, a leve aragem do crepúsculo, permitissem desenterrá-las e trazer esse ligeiro gasoso, esse breve rumor das bolhas de gás a rebentar ao contacto com o ar, e depois se descobrissem na boca os sabores misturados da luz e da água, do calor e do vento fazendo ondular durante a noite os arames das vinhas. Falava do presunto: do modo como, cevado o porco com a lavadura aquecida nos pátios, morto e desmanchado, tinha ficado a defumar, primeiro a um lume vivo de giestas, guiços, lenha miúda, depois a um lume vagaroso de brasas de carvalho, até que se retirava dos lareiros da cozinha e se pendurava na adega, suspenso das traves de madeira, protegido do terror da varejeira por uma rede de serapilheira fina. Falava dos cabritos: criados nos pastos «por baixo do Voluntário, senhor engenheiro, como saberá», do cabrito que haveríamos ainda nessa noite de comer, assado em tabuleiros num forno em «lenha de carvalho, claro». A noite passou a correr. Américo não falou uma única vez de pinheiros e plantações. E à saída, quase sem dar por isso, ao despedir-me num agradecimento confuso, prometi que as pastagens seriam preservadas do avanço das plantações e semeaduras. «Que estivesse descansado.» Fernando achou «que a noite tinha corrido bem». Não sei. Eu continuava ausente. E não me saía da cabeça a imagem da filha de Américo Fontes: Leonor. Os seus olhos, as suas mãos, o seu rosto. Não me saía da cabeça a imagem de Leonor; sentada a meu lado; a levantar-se para ajudar a mãe, diligente, a trazer mais vinho, cabrito, batatas assadas num forno em brasas de carvalho. Leonor: nunca mais a vira desde esse dia distante na Presa das Tílias, na margem esquerda do Terva, deitada, nua, protegida na tarde de Primavera indecisa por um maciço de arbustos de arando.

sábado, abril 19, 2008

12.

Fomos jantar a casa de Américo Fontes. A casa ficava na parte superior de uma vinha virada ao nascente descendo em suaves declives para as margens da ribeira do Fontão. Chegámos ao pátio e fiquei a olhar, ausente, as linhas dos arames iluminados pelo sol do fim de tarde. Um bosque de carvalhos, do outro lado da encosta, deixava as copas vigorosas das suas árvores a reflectir o dia caminhando para o demorado crepúsculo de Julho. Um rumor contínuo: o das águas da ribeira a correr vagarosamente nas pedras das poldras. E a luz, ainda: da urze, do rosmaninho, do tojo, do arando. O mundo está sempre a nascer: rendia-me às suas declivosas encostas, ao curso das suas águas, aos arbustos que desciam das cumeadas ganhando cor, do vermelho ao azul, nas suas flores minúsculas.
11.

E é então que Fernando me propõe um jantar em casa de Américo Fontes. Américo é a principal voz da contestação. Foi ele, Américo, quem juntou uma dezena de homens e obrigou à intervenção policial: não aceitava o avanço das plantações na encosta por baixo do Voluntário, nas pastagens que o carvalho-negral pontuava em pequenos maciços e nas bordaduras junto aos muros antigos erguidos com pedras irregulares de granito. Fernando considerava fundamental trazer Américo para o nosso lado; que era preciso «estratégia». Américo admitira receber-me; não apenas receber-me: fazia questão de que «o senhor engenheiro aceitasse cear com os pobres». Era no Verão. Tinham passado os meses de chuva, de geada, de vento, da neve a descer dos montes, a ficar poisada nos muros da Vila, a misturar-se na lama das ruas, a mudar a paisagem como num milagre sem nome. Os pessegueiros floriram e os frutos desenhavam-se nos seus ramos; as folhas dos freixos e dos vidoeiros entravam por dentro das tardes com o seu verde quase exuberante; a Veiga mudava de cor e uma estranha geometria impunha as suas formas como num mapa de fronteiras desenhadas a régua e esquadro. Ao fundo, nos montes, dos festos aos talvegues, desmatavam-se as encostas para que o futuro pudesse reconhecer o perfil dos pinheiros bravos e o odor da resina.

quinta-feira, abril 17, 2008

10.

O tempo corria de forma indefinida, em intervalos, ora voraz ora lento, descontínuo, como se não houvesse um fio que o fosse estendendo, hora após hora, dia após dia, na direcção do futuro; como se uma parte do tempo ficasse agarrado às raízes dos negrilhos, às candeias amarelas dos castanheiros jovens, às sombras densas do carvalho-negral, às paredes escalavradas das casas. Fernando comandava as operações de terreno: rasgaram-se estradões, desmataram-se encostas, abriram-se covas e valas, plantaram-se pequenos talhões de teste, semeava-se o penisco por áreas cada vez mais vastas. Os trabalhos, no entanto, decorriam com menos normalidade que sobressalto. Uma tensão ainda sem nome ia crescendo à medida que aumentava a área intervencionada. Algumas famílias fizeram frente ao avanço das plantações; a polícia foi obrigada a intervir. Eu mesmo começava a dividir-me; a vacilar. Nos baldios por baixo do Voluntário, na encosta aplanada, eu hesitava entre cumprir o plano de desmatação e deixar incólumes as zonas de pasto onde o carvalho-negral se erguia nas bordaduras ou em moitas densas.

quarta-feira, abril 16, 2008

9.

O frio do Inverno parecia aguardar que a chuva deixasse a abóbada do vale. Os dias eram claros e azuis, e as noites desenhavam no céu todas as estrelas do mundo. Ao fim da manhã, durante o início da tarde, o sol chegava a ser agradável. Mas logo depois, antes ainda do crepúsculo, o frio era difícil de suportar e as crianças iam abandonando as ruas. A sala contígua à taberna passou a ser o meu escritório. Aí comecei a receber as primeiras pessoas. Não obstante a hostilidade com que continuavam a olhar-me, sem intimidades nem um sorriso, começavam a aproximar-se, a saber das condições de trabalho. A escassez empurrava-os para a inevitabilidade de participação num processo que temiam acabar por voltar-se contra eles mesmos. Falavam pouco, escutavam o que era de ouvir, não chegavam a sentar-se. E foi então que ele apareceu. Fernando era um jovem de não mais que vinte ou vinte e um anos. Tínhamos falado algumas vezes. Sentava-se a meu lado; olhava com curiosidade as cartas topográficas; fazia perguntas. Pois nessa tarde atravessou a cortina que separava a taberna da sala contígua e, numa voz decidida, como se as suas palavras revertessem de muita reflexão e fundadas certezas, atirou-me de chofre: «o senhor engenheiro está a olhar para o seu futuro encarregado geral.» Nunca ninguém me tinha falado assim; num tom que não admitia réplica; olhando-me de cima, olhos nos olhos. E, ainda não refeito da surpresa, intuí de imediato que acabava de ganhar um aliado e que se iniciava uma decisiva fase do processo. Os homens, de facto, começaram a aparecer em catadupa, a inscrever os seus nomes, e depois a pedir um lugar para as suas mulheres e os seus filhos. Confiavam nele; na sua voz decidida; nos seus argumentos a favor do progresso; no modo como descrevia um mundo novo, sem miséria, sem crianças descalças a correr nos muros do cadastro ou nos taludes de saibro dos caminhos.

domingo, abril 13, 2008

8.

Era como se o Inverno deixasse a Vila entregue aos seus fantasmas. As pessoas quase não saíam à rua e havia uma sombra que delimitava o mundo conhecido: das cumeadas da Serra da Seixa à Raposeira, do Alto do Barco de Pedra à Colina da Raia. O mundo, subindo a Encosta dos Matos a caminho do Voluntário, parecia terminar nessas fragas erguidas contra a linha do horizonte como se mais nada existisse na imensidão da terra e do céu; como se a partir daí tudo fosse silêncio e vertigem. Os dias de chuva sucediam-se. É impossível esquecer esse rumor de fundo da água a bater nos telhados das casas e a correr nas bermas dos estradões. A noção de tempo, de passagem do tempo, começava a perder-se e a misturar as coisas do passado e do presente, do presente e do futuro. A chuva caiu durante meses seguidos, ou durante semanas seguidas, não sei. Mas um dia, de forma imprevista, o céu amanheceu sem uma única nuvem, claro e azul. Saí à rua; desci o caminho do largo do Toural, passei a curva do Noro, cheguei ao muro de pedra de Onde se Juntam os Rios, continuei na margem direita do gralheiro ao longo do Terva, cheguei finalmente ao açude da Presa das Tílias. E aí fiquei, rendido ao milagre do mundo que começava a nascer, a olhar a névoa a levantar-se da terra ainda molhada, a ouvir os pássaros que tinham regressado aos ramos das árvores, a ver a luz poisada nos caules das ervas e o brilho da água a correr no remanso a jusante da presa por entre os seixos rolados do fundo. E foi então que a vi. Ela estava na outra margem, protegida de quase todos os lados por uns arbustos de arando, nua, deitada sobre a própria roupa que estendera no chão. Os seios erguidos, as pernas ligeiramente flectidas, a mão direita poisada no sexo. Quase não se movia. Os olhos fechados, a cabeça inclinada para trás, o sol a iluminar o seu corpo como se mais nada à face da terra pudesse reflectir essa luz vigorosa. A aparição de um corpo nu deixou-me interdito. Habituado à sombra e aos modos rudes das pessoas, tendo ainda presente na memória o cheiro a merda que se misturava no ar daquela manhã em que cheguei à Vila, habituado à lama e à sujidade das ruas, a ideia de um corpo nu, belo, perfeito, rendido ao desejo, era quase inverosímil. Ela estava deitada e tocava o sexo com a mão direita, vagarosamente, movendo-se em gestos quase imperceptíveis, inclinando a cabeça para um dos lados, distendendo os músculos atados ainda à sombra espessa do Inverno que parecia ter terminado naquele preciso instante para que o mundo pudesse começar de novo. Fiquei durante algum tempo a olhá-la, escondido por detrás de um amieiro que subia contra o céu desde as suas raízes enterradas no leito do rio, excitado, interdito, suspenso dos seus mínimos gestos e da sua respiração que começava a ser descompassada. Fiquei a olhá-la; a olhá-la até ouvi-la gritar; a olhá-la até que foi regressando de novo a si mesma, até que se levantou e ergueu o corpo nu em todo o esplendor do desejo, até que se vestiu e seguiu pelo carreiro que leva à Encosta dos Matos. Esse mesmo carreiro que haveria de passar pela Colina da Raia, descendo depois ao Padrão, regressando enfim à curva do Noro e à entrada da Vila.
7.

Os dias sucediam-se entre o fascínio das deambulações pela serra, o abrigo dos serões à lareira e uma hostilidade quase generalizada. A sala contígua à taberna passou a ser o meu escritório. Revia os levantamentos topográficos, confirmava os carreiros da exígua rede de caminhos de cabras, escrevia memorandos para Lisboa. O planeamento dos trabalhos confrontava-se com o problema da distância e do isolamento, com as dificuldades de comunicação, com a aquisição de equipamento, com a gestão das plantas de viveiro e das sementes de penisco. Mas cedo compreendi que a grande questão haveria de ser outra: como recrutar trabalhadores e encarregados? O que parecia fácil, em vista da miséria desta gente que vivia como bichos, era afinal o maior obstáculo. Havia a desconfiança no desconhecido, claro: em mim e neste processo de transformação da paisagem que eu lhes garantia ser a base de um futuro digno, recompensador. Isso, essa desconfiança, era visível desde o início. Pensei que seria uma questão de tempo até que esmorecesse. E no entanto acentuava-se à medida que se ia compreendendo o verdadeiro alcance da minha missão. Porque a floresta pertencia a todos: e isso exigia a minha própria compreensão das coisas do mundo. A floresta estava em todas as coisas; em todas as coisas de todos os dias: nas portas e nas janelas das casas, nos bancos e nas mesas, nos caibros, nos armários, na masseira, no tendal, no calçado, na lenha da lareira, no arado, na forquilha, no engaço, na gadanha, no cabo da enxada, nos matos, nas pastagens, nas gamelas, na comida, nas colmeias, no berço, na cama, no caixão, nos ladranhos dos carros de bois, nas rodas dos carros, nos estadulhos, nas chedas, nos eixos, nas travessas, nos lareiros das cozinhas, na vara de aguilhada, na prensa do lagar, nas aduelas, nos cântaros de almude, nos cestos, nos rosários, no andor de Nossa Senhora. Eu dividia-me. Este era o mundo que um plano feito em Lisboa ameaçava ruir.

sábado, abril 12, 2008

6.

Fernanda tinha quê? quinze, dezasseis anos. Levantei-me, abri a porta do quarto e vi-a pela primeira vez. Estava escuro. A luz da vela iluminava apenas uma parte do seu rosto, uma parte do seu corpo. Pareceu-me uma criança assustada. Vinha chamar-me para a ceia. «Que estava na hora, senhor engenheiro.» Desci. Na sala separada da taberna por uma cortina havia três pequenas mesas quadradas e, ao fundo, uma mesa comprida, estreita, de castanho, duma única tábua. O Mendes sentou-se a meu lado, «se eu não me importava que ceássemos juntos». Continuava a chover. Chovia sempre. A água batia nos vidros da janela, ouvia-se o barulho da chuva a cair no telhado e nas coberturas de latão dos anexos. Estava frio, desconfortável; o Mendes esfregava as mãos; gritou para dentro: «então, a comida?» Levantou-se; acompanhei-o. Passámos a cortina e a porta por detrás do balcão da taberna e entrámos numa divisão interior. A lareira acesa: o lume dos corgos de ervideiro, as brasas dum vermelho incandescente. Fernanda, de roda do pote, tirava os grelos com uma escumadeira, colocava-os cuidadosamente numa travessa ao lado da carne cozida. Olhei em redor: as paredes e as telhas da cozinha muito escuras de fuligem, as malgas e os pratos alinhados num louceiro, a masseira, o tendal. E, arrumado a um canto, encostado à lareira, uma espécie de banco corrido e uma tábua suspensa na vertical agarrando-se à base por dois prumos: um escano. Nunca tinha visto um escano. Nunca tinha estado num lugar assim, à lareira, o lume dos corgos de ervideiro, as brasas dum vermelho incandescente. Perguntei ao Mendes se não podíamos cear ali. «Que sim.» Sentámo-nos e rodámos sobre a cabeça a tábua suspensa por dois prumos até que ficou assente nos paus laterais, a fazer de mesa. Fernanda servia-nos. Comemos carne de porco cozida, da banda, e grelos untados com a gordura da carne. Lá fora continuava a chover; chovia sempre. Ouvia-se o barulho da chuva a bater nos vidros da janela, a cair no telhado e nas coberturas de latão dos anexos. O lume dos corgos de ervideiro; as brasas dum vermelho incandescente. Sentados no escano; à lareira. Como se as coisas começassem a ser inventadas. Como se o mundo estivesse a começar. Como se alguém dissesse: aqui a água, aqui o fogo. O odor dos grelos e da carne cozida; o pão de centeio; o vinho palhete; o lume dos corgos de ervideiro; as brasas dum vermelho incandescente. Lá fora continuava a chover. E era como se o mundo estivesse a nascer; como se algumas coisas ainda nem tivessem nome.

sexta-feira, abril 11, 2008

5.

Eu vinha da serra da Seixa a caminho do Padrão quando começou a chover. O dia estava cinzento e o vento da barra anunciava a chuva que acabou por chegar assim, abatendo-se de súbito num manto único de cumeada a cumeada. A noite aproximava-se. E no entanto era como se uma rede muito fina deixasse ver ao longe, translúcidas, as árvores das encostas e as primeiras casas da Vila. E, ao longe, quase noite, uma misteriosa luz parecia envolver as árvores da encosta e as primeiras casas da Vila. Tudo começou nesse momento: essa sensação estranha que haveria de acompanhar-me ao longo dos meses: essa sensação estranha de pressentir que pouco separa o milagre e o lodo, a ruína e a exaltação. Chovia. Era quase noite. A água gelava-me o corpo. Meti-me ao caminho de regresso e cheguei à taberna completamente encharcado. O Mendes estava atrás do balcão, a arrumar uma estante, e olhou-me como se olhasse um fantasma, uma dessas almas penadas tão frequentes nos relatos que haveria de escutar ao serão ao longo dos meses. Que estavam preocupados, que «nem imagina, senhor engenheiro», que temiam já que tivesse desaparecido numa ravina da serra. Subi ao quarto. Acendi uma vela. Despi-me, sequei-me, fiquei algum tempo deitado na cama a ouvir o barulho da chuva nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos. Fechei os olhos e imaginei a água a cair sobre o carvalho grande da Colina da Raia, a escorrer dos troncos brancos dos vidoeiros, a engrossar o caudal do corgo do Pereirinho, a lavar a sujidade das ruas, a erguer uma cortina contra as desordens do mundo. Percorria-me uma confusa felicidade. Como se visse a chuva pela primeira vez e a chuva caísse pela primeira vez nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos. Sentia-me feliz. E devo ter adormecido. Porque ouvia o ruído distante duma pancada que se repetia a espaços e só então percebi que batiam à porta.

quinta-feira, abril 10, 2008

4.

Passei a tarde a correr as veredas da serra. Havia vento. Um vento frio a que chamavam da barra e que anunciava chuva. Cheguei a um lugar onde os salgueiros se erguiam na margem dum rio. E fiquei assim, fascinado, a olhar a encosta do outro lado, as suas sombras, os seus brilhos breves quando uma nuvem deixava por instantes que o sol iluminasse os montes. Nessa altura, nessa primeira tarde, não conhecia ainda os nomes dos lugares. Mas soube depois que estava na margem direita do rio Terva, junto ao moinho do Pardo, e que essas águas desciam da presa e avançavam depois num troço quase a direito até Onde se Juntam os Rios. A juzante, depois do gralheiro do Pontilhão e da presa das Tílias, as águas, essas mesmas águas, seguiam por um vale encaixado, deixando pelo poente o Alto do Tabulhão e as Pedras do Carvalhal, e pelo nascente a colina do Formigueiro. Abaixo de Torneiros, quando o estradão de Fiães atravessa o corgo do Pereirinho, parei por instantes, exausto. E depois desci até à Paredela e segui de novo até onde o pequeno ribeiro do Seixo desagua na margem esquerda. Fiquei assim, parado, mudo, rendido: a olhar essas águas iluminadas pela sombra leve de Novembro: até sentir que não havia luz nem sombra, nem tempo nem movimento, e que essas águas é como se tivessem acabado de nascer do fundo da terra.
3.

O fim do mundo só pode ser um lugar assim, perdido entre a tempestade do Inverno e a poeira dos meses de Verão. Há qualquer coisa de irreal nestas ruas, nestas pedras arrumadas a fazer de casas, nestas crianças muito sujas a correr descalças nos taludes das barreiras de saibro. E no entanto as pessoas olham-me como se eu é que fosse o elemento estranho, como se houvesse uma ordem que eu pudesse pôr em causa só de respirar ou mover os braços. Luís Raposo, o carregador que tinha justado em Vidago, seguia muito direito, não obstante o cansaço, quase orgulhoso de me trazer como um troféu a este lugar perdido e fora do mundo. E garantia-me que haveria de «ajeitar um lugar asseado, senhor engenheiro». Levou-me ao cimo da Vila e entrámos numa taberna escura. O ar era quase irrespirável e o cheiro da merda ia-se diluindo numa atmosfera de ranço e vinagre. Acomodaram-me num quarto: um espaço exíguo, sem um único vão a cortar a parede de taipa: duas velas de sebo, o lavatório de zinco, uma pequena cómoda de castanho sem adornos.

quarta-feira, abril 09, 2008

2.

O carregador, um ignorante boçal, ajeitou as malas em cima da mula, disse que faltava ainda uma légua bem medida até chegarmos à Vila e perguntou que coisa via eu que me fizesse sorrir, sendo certo que, olhando dali, do Alto de Pinho, para o nascente e o poente, para o norte e o sul, não se vislumbravam mais que «carreiros fodidos de andar e calhaus de pedra». Não lhe respondi que o que via era o progresso. Calei-me. E seguimos, portanto, pelo caminho de terra batida, agora quase sempre a descer até chegarmos à entrada da Vila. E foi então que uns cães raivosos apareceram a correr como desalmados pelas margens do rio. O carregador estava nervoso; pediu-me que desmontasse e prendeu as arreatas das mulas a uma amoreira fazendo tenção de se aproximar dos cães. Mas eu já não tinha paciência para o espectáculo e ordenei-lhe que regressasse. Chegámos à Vila por volta do meio-dia. E nunca mais poderei esquecer o cheiro a merda que se misturava no ar daquela manhã do dia dezassete de Novembro de mil oitocentos e oitenta e nove.

terça-feira, abril 08, 2008

Capítulo VIII

(Onde se transcrevem fragmentos do diário do engenheiro das florestas)
1.
.
O caminho de terra corria por vales sinuosos, subindo à meia encosta a desviar-se do declive das vertentes a pique sobre o rio Tâmega, descendo de novo, subindo depois à cumeada no Alto de Pinho. Parámos e fiquei por algum tempo a olhar os montes arredondados que se sucediam na distância. Estava fascinado. Distingui o carvalho alvarinho do carvalho negral, a madressilva do escalheiro, a urze do tojo, o medronheiro da aveleira. Uma luminosidade leve desenhava os contornos da serra, delimitava os volumes dos maciços arbóreos, deixava ver ao longe um bosque de vidoeiros, espalhava as sombras dos freixos numa zona aplanada onde se pressentia o remanso de um rio e depois uma vertente cortada a direito a encaixar de novo as suas águas. Sorri. Criar uma paisagem é como participar da criação do mundo. E imaginava já o pinheiro bravo a erguer-se de uma a outra encosta, a descer aos talvegues, a subir às linhas de festo, e o arando a dar lugar às feteiras, a gilbardeira ou a salsaparrilha a serem vagarosamente substituídas pelas giestas e os silvados. Montei de novo e dei ordem de partida.
Capítulo VII

(Onde Maria Teresa repete os seus argumentos sobre a impossibilidade da narrativa)
.
Maria Teresa fala desse desse dia mágico em que a camioneta da carreira chegou à Vila. Não conta a história de Aline; não conta a sua própria história. Ao longo da narração, nas suas imensas pausas, repetidas vezes insiste que uma história não tem princípio nem fim; que a história de uma única pessoa é já a história do mundo; porque uma única pessoa é já o mundo todo. «Penso ter-lhe falado da impossibilidade da narrativa», diz mais uma vez. É uma tarde de Verão; estamos sentados no terraço duma casa da Aldeia. E, de súbito, Maria Teresa levanta-se, caminha vagarosamente até à guarda de madeira, fica por instantes em silêncio, aponta um lugar indefinido na encosta do outro lado do rio, olha-me de novo; pergunta: «Sabe que estradão é aquele?» Também eu me levanto; também eu caminho até à guarda de madeira; também eu olho a encosta do outro lado do rio. «Aquele é o antigo estradão que ligava à Vila. Foi por ali», continua Maria Teresa, «numa madrugada de Julho de mil novecentos e dezanove, ainda escuro, que João Pequeno chegou à Aldeia, fugido do Posto da Guarda. Atravessou o rio nas poldras e rumou a esta mesma casa. Abriu a cancela do pátio, subiu a escaleira que vem dar ao terraço e bateu a esta janela. Uma história, como vê, não acaba nunca; pode sempre recomeçar. Quer que lhe fale de João Pequeno? Ou os fragmentos do diário do engenheiro das florestas, que Fernanda acabou por oferecer ao professor, continuam a suscitar-lhe curiosidade? Quer acabar a história neste preciso momento? Você é o autor do folhetim; você é que sabe.»

segunda-feira, abril 07, 2008

44.

Quando a manhã avança para o meio dia (conta Maria Teresa e eu acrescento um ponto), e a camioneta da carreira leva enfim atrás de si o tisne e a fuligem, e a luz regressa às folhas recortadas da sempre-noiva, e os gatos da Emília se estiram na pedra do jardim dos Correios, Lalice fica por algum tempo na pedra da entrada do armazém de mobílias a olhar os campos da veiga e a Encosta dos Matos, o polígono apertado da Vila e o céu muito baixo, mesmo quando o céu de Setembro se ergue leve e azul a uma distância sem medida, as ruas apertadas e sujas com galinhas a debicar na terra fresca da base dos muros, homens sem rumo com varas de aguilhada no ombro direito ou de chapéu rodado nas mãos a sair do edifício das Finanças ou da secretaria da Câmara, e sente que nenhuma razão o impele a mover os músculos, a erguer-se da cama cedo de manhã, a deitar-se, a gritar ou a correr pelos campos lavrados das Trindades. É certo que o armazém dista escassos quarenta metros da Pensão Americana e que a vê todos os dias, a ela, Fernanda, chegando-se à rua ou atrás dos vidros da janela grande a compor o cortinado, e que quase sempre almoça junto dela, e às vezes janta, e às vezes partilha o serão, e que é com Fernanda que faz amor quando se deita em casa da Rute numa esteira muito suja ou com uma puta desconhecida do Caneiro, e que tantas vezes ficam por algum tempo sentados à mesa a discutir os episódios do último romance francês da biblioteca de Carlos, o Alferes, que ambos lêem, um depois do outro, e que os aproxima no segredo de uma história feliz ou de uma traição, como se uma história feliz ou a traição das páginas de um livro fossem parte de uma outra história que poderiam ter vivido juntos. Mas não é a mesma coisa. Lalice perdeu a ilusão de que tudo poderia ser diferente, de que tudo poderia começar de novo: antes da chegada da camioneta da carreira, antes da tempestade. Não. Já nada poderia ser a mesma coisa depois dessa noite de há muitos anos em que topou com o engenheiro na cama de Fernanda, e o obrigou a sair da Pensão e a subir à Colina da Raia, e o suspendeu de uma corda carral, e o queimou com um archote aceso até o seu rosto ficar irreconhecível.

sábado, abril 05, 2008

43.

Este sol da meia manhã de fins de Setembro é um bálsamo. O doutor Magalhães olha o largo quase deserto. A camioneta da carreira partiu finalmente, Lalice regressa à oficina dos toscos, Luísa atravessa o largo a caminho da Pensão Americana, a saia quase à altura dos joelhos, um decote furqueiro, o cabelo apanhado num pregador colorido. «Há-de vir do Matias, de comprar louça fina para o cara de cu comer um escabeche.» Tudo começou, há já muitos anos, com a chegada do engenheiro das florestas. Foi preciso que morresse para que o Pai Ventura e a Vila regressassem à paz antiga e deixasse de se ouvir o ladrar dos cães engolidos na corrente invernosa da Ribeira do Fontão. E tudo regressasse, por algum tempo, à ordem natural das coisas.

sexta-feira, abril 04, 2008

42.

Dona Carmo. Carminha. Arnaldo Adão, o Lindinho, lembra-se de subir a avenida de Sangunhedo numa corrida; a puxar as golas do sobretudo contra a chuva imprevista. Era uma manhã de domingo; prometera ajudá-la na preparação do jantar dessa noite: nos arranjos de mesa, nos ambientes de luz, nos canapés, nas tartes de noz. «Bem vê, Arnaldo. É a primeira vez que o comité das senhoras reúne em minha casa; não gostaria de desmerecer.» A chuva imprevista, uma bátega de primavera indecisa. Chegou a escorrer água. «Meu Deus, tem que despir já essa roupa, secar-se.» Arnaldo não dizia uma palavra. Não movia um músculo. Carminha aproximou-se. Tirou-lhe o sobretudo encharcado, a camisola molhada. Um perfume leve inebriava-o. Um perfume estranhamente familiar desprendia-se daqueles pulsos muito finos, das suas veias azuis. Ficaram ambos parados. Olhavam-se como quem procura desprender-se de uma mágoa antiga. Carminha estendeu a mão esquerda, mordeu o lábio inferior, tocou-lhe na face muito devagar. Um dilúvio. O barulho da água no telhado, a adivinhar-se contra os vidros das janelas para além dos cortinados corridos, na Ribeira do Fontão, na Encosta dos Matos. Um diante do outro. O vestido de Carminha a cair a seus pés. Lá fora um dilúvio. Ela pegou-lhe na mão, levou-o para o quarto, entraram no quarto, na penumbra do quarto, a chuva puxada pelo vento da barra. Como se tivesse que ser. Como se estivesse escrito nas folhas dos negrilhos. O seu corpo nu a desprender um perfume leve, um perfume estranhamente familiar. O mesmo perfume da Joaninha Custódio, da roupa interior da Joaninha Custódio, recordou-se finalmente Arnaldo Adão, o Lindinho, distraído por instantes, antes de acabar de se despir e se deitar a seu lado.

quinta-feira, abril 03, 2008

41.

O engenheiro foi o primeiro hóspede da Pensão Americana, da velha casa de pasto do Mendes, estávamos em mil oitocentos e oitenta e nove, Fernanda era ainda uma criança, teria quê? dezasseis anos. Os cães ladravam sempre à sua passagem. Até àquela noite de Novembro, um ano depois de ter chegado. Encontraram-no morto, suspenso de uma corda no carvalho da Colina da Raia. Essa a que agora chamam a Colina do Engenheiro. Enforcado. Diz-se que tinha os olhos queimados: a pele arroxeada, escamada, fendida, como se um incêndio houvesse lavrado a noite toda no interior do seu corpo. Será verdade que o Pai Ventura o queimou, devagar, com um archote aceso na noite escura de Novembro, e que ele mesmo o dependurou da corda carral?
40.

O Lindinho tinha fama de maricas. Passava o tempo a ler romances ou a ajudar as senhoras em tarefas femininas: arranjos de flores secas, decorações de natal, centros de mesa, papéis recortados, vidrinhos de terra, pintura em cerâmica, ovos de páscoa, fustes coloridos, redacção de convites com volutas desenhadas a tinta-da-china, escolha de tecidos para cortinados, conseguir um ponto de caramelo, preparar um bouquet garni ou um clafouti de maçã reineta. O Agenor, por sua vez, espumava da boca, em público, a olhar um tornozelo. E quase todas as segundas-feiras, logo de manhã, chamando o Lindinho ao varandim das traseiras do edifício das Finanças, puxando de um cigarro, contava-lhe pormenores das aventuras de sábado à noite na casa da Rute. «Gostava de o levar lá uma destas vezes, Arnaldo. Aos sábados, menino, como é que lhe hei-de explicar? Mas você. Olhe que aquilo não morde.» E então olhavam na direcção da casa de Carminho, dona Carmo. À distância de trinta a quarenta passos, parcialmente encoberta pela ramagem de uma nogueira, adivinham-se-lhe as pernas até um pouco acima dos joelhos, o pescoço descoberto. Damásio Martins não vem há uns três anos à Vila. «Eu queria lá saber dos Estados Unidos do Brasil e da árvore das patacas. É como lhe digo: há gente que não sabe dar valor ao que tem.»

quarta-feira, abril 02, 2008

39.

No dia dezassete de Novembro de mil oitocentos e oitenta e nove, pelo fim da manhã, os cães do Pai Ventura começaram a ladrar, correram pelo perímetro do pátio espumando pela boca, acabaram por saltar o portão de ferro, seguiram pela estrada do Noro, rumaram ao lameiro das Águas de Lima, enfiaram-se na Presa do Moinho Velho, desceram ao gralheiro, morreram afogados na correnteza gelada. O engenheiro da floresta, do outro lado da margem, nervoso, assustado, tinha puxado da pistola automática. Lúcio Raposo conta: «os olhos dos bichos parece que luziam. Ficaram por um cibo a espernear na correnteza; depois desapareceram. Ladravam sempre. Debaixo de água, e ladravam. Ainda prendi a arreata da mula à amoreira grande e intentei chegar-me a eles. Mas o engenheiro apontou-me o pistolo e parou-me logo: que justara um carregador, que andasse. Eu estremeci: aquilo os animais só podia ser ao engenheiro que ladrassem. Estive para o mandar à puta que o pariu; mas temi.» O Pai Ventura, numa corrida, chegou à Curva da Amoreira Grande, olhou a corrente das águas. Durante muito tempo ouviria os cães a ladrar: o seu eco, talvez; o som a perder-se e a multiplicar-se na abóbada do vale; a embater na Pedra da Seixa; a regressar à curva do Noro; a perder-se depois na Encosta dos Matos; a regressar ainda, de novo, à linha sinuosa do talvegue. «O Pai Ventura estava como louco. Atravessou a ribeira, chegou encharcado à beira de nós, ficou a olhar-nos demorosamente. A olhar-nos, lembro-me; a olhar sobretudo o engenheiro e a perguntar quem era o cara de caralho que lhe punha assim os cães. Até que voltou à margem, correu ao juzante, passou a tarde à procura dos bichos: no remanso de Onde se Juntam os Rios, na Presa das Tílias, no Voluntário. No dia seguinte ouvia-se ainda o raio dos cães, ladravam ainda, o Pai Ventura quase enlouquecia, tapava as orelhas com ambas as mãos, durante uma semana não podia a gente sair à rua que os não ouvisse, ao correr das margens da ribeira do Fontão, da Pedra da Seixa à Curva do Noro, da Curva do Noro à Encosta dos Matos, do Alto do Barco de Pedra ao caminho dos Campos das Trindades. Diz-se que o Pai Ventura os ouviu durante muitos meses, todos os dias, como se os bichos estivessem ainda à espera que alguém os retirasse das águas ou como se houvesse ainda alguma coisa que era preciso cumprir.»

terça-feira, abril 01, 2008

38.

Nessa manhã, depois de coser um processo com fio do norte, antes ainda do rumor sobressaltado da carreira se anunciar a caminho do Toural, Arnaldo Adão, o Lindinho, segue o colega ao varandim das traseiras. «Olhe-me aquilo, Arnaldo». Dona Carmo estava sentada no alpendre de casa; a uma distância de trinta ou quarenta passos; com um livro nas mãos. Tinha a saia levantada acima dos joelhos e uma camisa leve quase decotada. Quando o Martins a trouxe do Porto e a passeou a seu lado pela primeira vez, numa noite de Junho, de braço dado, pensou-se que tinha enlouquecido. A Vila não estava preparada para uma puta que se expusesse em público. E Carmo não podia senão ser uma puta. Mas depressa se calou a boca do povo: Carminha fazia vida de casa; saía, quando muito, para ir à igreja e ao Comércio Central: vestidos escuros quase até aos pés, um véu de rendas, palavras quase só de cortesia. Alta, a cintura fina, os olhos fundos, a boca larga marcada por uma linha horizontal, os seios pequenos, as mãos muito brancas, os dedos esguios. «Você olhe-me aquilo, Arnaldo», dizia o Agenor. E via-se que passava a língua pelos lábios como se estivesse com sede.
37.

O doutor Magalhães só então acaba por sentar-se na cadeirinha de lona, enfiar os pés no ligeiro odor a enxofre da água das Caldas Santas, deixar que o sol lhe percorra as pernas e os braços. Olha, franzindo o olhar: o desconhecido avança para a entrada da Pensão Americana; é magro como um espeto. Com a chegada da camioneta da carreira haverá sempre alguém que chega de longe e alguém que parte, alguém que regressa, alguém que acrescenta um nome aos nomes conhecidos, alguém que faz uma pergunta nova, alguém que repete uma pergunta, alguém que responde. Tudo começou há muitos anos: com a chegada do engenheiro das florestas. Um desconhecido, pela primeira vez, não estava de passagem.
36.

Ana Ferreirinha abre a cancela do pátio. As manas Custódias dormem ainda. Acomoda a fazenda; esfrega o soalho; limpa o pó dos móveis, das molduras com retratos a sépia, do serviço das índias, das jarras de cristal; prepara o café das meninas. Uma nuvem de gases e poeira levanta-se no ar da meia manhã de Setembro; as manas correm à varanda; a camioneta da carreira sobe vagarosamente a rua Cinco de Outubro como se chegasse de uma viagem à roda do mundo.
35.

Arnaldo Adão, o Lindinho, ouviu o rumor sobressaltado da camioneta da carreira e vem à janela da repartição de Finanças. Do outro lado da rua, do outro lado de um rectângulo atravessado pelas grades, entre quatro ferros verticais, o rosto de Serapião Afonso recorta-se na penumbra húmida da cadeia civil. O Lindinho estremece: ninguém como ele conhece os segredos da Vila. Suspira e recolhe-se de novo aos livros, apura a caligrafia. O seu trabalho, que desenvolve com invulgar mérito, consiste em dar as entradas e as saídas de correspondência, classificando os documentos por assuntos e resumindo o teor numa letra cursiva que é já quase mítica. Os processos são poucos. Em alguns dias o movimento resume-se a um ofício assinado pelo chefe da repartição em tinta permanente. Ainda assim, aplicando-se sobre as páginas gigantes do livro de correspondência expedida, ligeiramente curvado e com o antebraço dobrado em ângulo recto no ressalto da estante, Arnaldo Adão concentra-se durante duas horas no seu mister até passar o mata-borrão sobre a última letra ou sinal gráfico e o Agenor se levantar da secretária e aprovar a obra-prima num lento e concentrado semicerrar das pálpebras.