sábado, março 15, 2008

3.

Comecemos, pois (conta Maria Teresa), por essa manhã de fins de Setembro de mil novecentos e vinte e um em que a camioneta da carreira chegou pela primeira vez à Vila. A manhã tinha nascido clara, sem uma nuvem, sem uma aragem a agitar as folhas das árvores. Lalice estava no torno e veio à pedra da entrada. Acendeu um cigarro. No ar, olhando na direcção do nascente, via-se agora uma nuvem de gases e poeira, de cinza e gasóleo queimado, de tisne e fuligem. E Lalice imaginava essa sombra a erguer-se, essa película espessa e peganhosa a revolutear, a alargar-se, a cobrir, aos poucos, a urze da encosta, o espinheiro-da-virgínia do Toural e o jardim dos Correios, os carvalhos da Rua de Cima, os vidoeiros do Noro, a sebe de sempre-noiva, uma nuvem de pó e gasóleo a espalhar-se pelo chão e pelas paredes do armazém de mobílias. «Hão-de foder tudo», dizia Lalice enquanto apagava o cigarro com as botas gaspeadas de couro e desaparecia de novo no armazém iluminado por uma janela larga rasgada ao nascente. «Hão-de foder tudo», dizia, como se a combustão dos gases quebrasse o ciclo do ozono, como se temesse que o gasóleo ou o ruído sobressaltado do motor da camioneta da carreira queimassem as folhas das árvores ou abrissem fendas nas paredes de taipa, como se a sua preocupação fosse o aquecimento global, ou a destruição da camada de ozono, ou o consumo insustentável de recursos fósseis, ou a poluição atmosférica, como se os ecologistas trouxessem do futuro os seus folhetos coloridos em papel reciclado e doutrinassem Lalice contra o ruído sobressaltado dos motores das camionetas. Não: Lalice concedia que o mundo fosse maior que o perímetro da bacia hidrográfica do Terva. Mas o seu mundo era esse: começava nas cumeadas da serra da Seixa, descia a encosta, prolongava-se até à Raposeira, continuava por alturas do Barco de Pedra e fechava, a poente, na Colina do Engenheiro. O resto era apenas um silêncio ameaçador, um rumor de promessas por cumprir. Temia o desconhecido, portanto, e não tanto a fusão dos gelos do Ártico.