quinta-feira, março 27, 2008

25.

Pelo rectângulo da janela atravessada pelas grades, entre quatro ferros verticais, vê-se uma fita estreita de azul, em não havendo nuvens, poisada nas telhas do edifício das finanças. O resto é sombra. Uma sombra húmida que vem do pátio interior e depois se arrasta pelo chão e pelas paredes das celas: o bolor, o poder da ruína, a água a escorrer do tecto, mesmo em Setembro, a meio da manhã, em não havendo uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu. Dias seguidos, um depois do outro, olhando pela janela contra o edifício das finanças, ou subindo ao lancil do pátio e olhando na direcção do que há-de ser a serra da Seixa, para além dos muros altos, Serapião Afonso não vê uma árvore. Não há uma árvore: uma árvore de fruto a que pudesse, em começando a abrir, ou quando a flor irrompe contra a memória da neve, derramar-lhe nas folhas um pouco de cal, de cal viva, de cal em pó, misturada no enxofre, muito cedo de manhã, com as gotas ainda do orvalho, ou depois da chuva, quando o odor da terra começa a levantar-se. Uma árvore: um freixo, um amieiro, uma tília; a prata dos álamos; o verde brilhante dos negrilhos jovens, um carvalho negral, o branco dos vidoeiros antes do Inverno.