sexta-feira, março 28, 2008

27.

Quando acordou pela primeira vez numa cela escura da cadeia civil, há vinte e seis meses exactos, Serapião compreendeu que estar preso é não ter uma árvore, não ter um rio, não ter uma encosta por onde descer a caminho do rio, não ter a luz da encosta a descer a caminho das margens do rio. Há vinte e seis meses exactos: Serapião Afonso está sentado na mesa grande da taberna da Emília. O ti Alcino vendera nessa manhã a parelha de vacas ao Vicente de Curros. É certo que o negócio estava apalavrado com o Cardoso. Mas o Vicente de Curros olhava os bichos de frente e de trás, mirava-os de cima, ajoelhava-se no chão e apreciava-lhes o ventre, passava-lhes a mão pelos lombelos: a cabeça larga e o focinho negro, o perfil côncavo, o pescoço breve, as nádegas anchas: a Marela de um castanho quase palha, a Joaninha acerejada: ambas com a cornamenta da estirpe, em forma de lira; ambas e duas com fitas coloridas nos chifres untados com azeite. «Sim senhora», repetia o de Curros, «sim senhora». Nisto chega o Cardoso: que o Alcino não tinha nada que vender as vacas sem lhe falar primeiro. «Mas se o negócio nem estava sinalizado, homem», defendia-se o Alcino. «Sinalizava-se», respondia o Cardoso. E sem mais aquelas levanta o pau de lodo e prepara-lhe a investida descendente direita à cabeça. Serapião, num pulo, agarra-lhe o braço, João Pequeno deita-o por terra, a Guarda toma conta da ocorrência; deixam o toural, seguem para o posto em fila quase indiana. Passa do meio-dia quando terminam as inculcas e desandam até novas ordens. Alcino já tem a fazenda descuidada, convida-os para o fim de tarde na taberna da Emília. «Bem o merecendes.» De maneira que assim foi. Sentados na mesa grande, revendo a aventura da manhã, comem iscas de bacalhau e bebem vinho de Anelhe. Emília está de rastos. Nos dias de feira é um corrupio desde o nascer do sol, os homens a matar o bicho com nozes e aguardente, a comer polvo cozido e chicharros de escabeche, a entrar e a sair até ao fim da noite, às vezes madrugada dentro. A taberna, aos poucos, vai ficando vazia; a serradura do chão numa pasta única. Alcino pede mais uma caneca de dois quartilhos de tinto. Chega-lhe com o dedo. Sai às onze da noite. Serapião ampara-lhe os primeiros passos a caminho da rua, diz «vá-me com cuidado, homem», senta-se de novo à mesa grande. Emília traz dois cálices de licor de cereja: «é adoçar a boquinha e putas-ao-sameiro». João pequeno ainda puxa do realejo, cantam depois a ribeirinha num coro desafinado, erguem-se de novo. Emília suspira, fecha o portão pintado de verde. Serapião e João Pequeno seguem agarrados a trautear a ribeirinha, ficam por algum tempo sentados numa pedra do muro, lavam a cara na água do tanque do Toural, sobem ao Alto da Ribeira. Param de novo, cantam ainda, seguem de novo. Nisto a patrulha da Guarda faz-lhes frente, dá-lhes voz de prisão, as espingardas em riste. «Ó mestre, isto há-de ser a brincar», diz o Serapião. «Caluda, e é seguir em frente.» Quando acordou pela primeira vez na cela escura da cadeia civil, há vinte e seis meses exactos, Serapião Afonso compreendeu que estar preso é não ter uma árvore, não ter um rio, não ter uma mata de carvalhos onde procurar a sombra dos meses de Julho.