quinta-feira, março 20, 2008

17.

Às vezes é como se a vida pudesse fazer sentido: o riso das crianças, o ruído sobressaltado de um motor, o sol a iluminar o voo das aves. Carlos, o Alferes, imaginou-se a descer a escaleira exterior da casa do largo, a passear na margem da ribeira do Fontão, a visitar os primos da Granja, a combinar as férias na Póvoa. Lembra-se de Margarida, num tempo em que os sonhos eram ainda possíveis, e de as suas mãos se tocarem; recorda as lágrimas de cada vez que partia de novo: as suas lágrimas e o seu riso quando lhe contava as tristezas e as grandezas da guerra. Lembra-se de Luísa: dos seus olhos de amêndoa, do seu sorriso rasgado, atrevido; das suas pálpebras em leque. Era uma tarde de Verão. As moscas zumbiam contra os vidros das janelas da Pensão Americana. A banda de música de Fermil subia com solenidade a rua do Toural; os andores da Senhora da Livração e de São Benedito; os anjinhos; o senhor bispo da diocese sob o pálio lilás; as velas acesas de promessas e graças concedidas. Era uma tarde de Verão; quinze de Agosto. Subiram o primeiro lanço dos degraus, parararam por instantes; continuaram até ao quarto dos fundos. Luísa despiu-se: os olhos de amêndoa, os lábios finos, as pálpebras cerradas. Carlos fechou a janela, correu as cortinas, aproximou-se devagar, deitou-se a seu lado.