quinta-feira, setembro 30, 2010

[a claridade é obscura]

a claridade é obscura.
a objectividade é obscura.
exige-se a mediação da abstracção reveladora
para que as imagens verdadeiras nos sejam devolvidas
além e para lá do que os nossos olhos vêem.

terça-feira, setembro 28, 2010

[peço encarecidamente a intervenção do fmi]

peço encarecidamente a intervenção do fmi
não me parece que esteja em condições de garantir
os meus compromissos financeiros
no jantar de aniversário
de sábado
da ana ruiz
no ruizinho

mesmo que o caderno de encargos
me impeça no domingo de ir ao futebol
ou comprar o último
livro do zé luís peixoto

na bertrand.

[a natureza dos milagres]

o meu maior amigo
tinha o problema dos muitos interesses
por isso nenhuma das coisas o
levava nunca a elevados graus de motivação.
desinteressava-se das coisas em que se metia
por lhe interessarem todas as outras
em que não estava.
gostava tanto de tudo
que ao longo dos anos
foi desistindo de tudo.
eu
pelo contrário

tive apenas a única obsessão dos petroleiros.
desde a infância que coleccionava
estampas de navios de longo curso
e fotografias das chaminés de combustão.
não posso lamentar-me.
o meu trabalho e a minha vida
têm sido sempre
os petroleiros

o convés e a casa das máquinas
a vigia e o leme
o mediterrâneo e o atlântico
o porto de sines e a costa da nigéria
e a liberdade imensa de um horizonte sem palavras
nem a intromissão das legendas.
no mês passado

consegui que o meu maior amigo
me acompanhasse numa das viagens
ao golfo pérsico.
claro que se desinteressou ao segundo dia
(eu já imaginava)
a falar dos seus novos interesses
e da nostalgia das sucessivas desistências

e adormeceu todas as noites
quase morto de tédio
e já muito arrependido de ter embarcado
no meu tão imperecível petroleiro

em cuja sala de convívio
neste preciso momento
escrevo um poema sobre os sonhos da infância
e a natureza dos milagres.

sexta-feira, setembro 24, 2010

[as casas da várzea]

há muito tempo que tenho uma história para contar
e tenho vergonha de contá-la por ser verdadeira
tão verdadeira como eu estar aqui
e saber que as pessoas em regra
não acreditam em histórias verdadeiras.
as pessoas em regra acreditam
na prosa das mentiras.

eu era então uma criança.
e é claro que quase todos nós tão rapidamente
começamos a aprender a deixar de ser
aquilo que somos
para passarmos a ser
aquilo que julgamos que os outros
a um espelho poliédrico
julgam que somos.
não admira por isso mesmo
que não acreditemos nas histórias das crianças
e não admira que quase sempre seja necessário
colocarmos máscaras no rosto
para regressarmos à identidade
que ao longo do tempo perdemos.
e está portanto explicada a razão
de ter uma história verdadeira para contar
e temer que ninguém acredite
na minha história verdadeira.

pois é dar-se o caso de eu em criança
apanhar a camioneta da carreira
no largo do toural das boticas
a caminho de chaves.
mas os milagres precisam de tempo
e deslocamento do fulcro onde se sustenta
o quotidiano concreto das coisas.
e talvez por isso mesmo
só na viagem de regresso
esse já entretanto pressentido mistério
começasse em rigor os trabalhos
fabulosos da revelação.

na garagem da auto viação do tâmega
onde funcionavam também os escritórios subindo-se
uma escaleira sem guarda
havia um cheiro permanente a gasóleo
e uma bruma que vinha dos filmes a preto e branco
e um ruído de fundo de motores
que só muitos anos mais tarde viria a saber
que revertia da insânia do levante.

e logo começavam os milagres
em saindo a camioneta da carreira dos largos portões
da garagem do canto do rio
com esse rumor contínuo
a acompanhar-nos a viagem toda
e a ficar nos ouvidos durante a noite
até se desvanecer enfim às primeiras horas da manhã
e ser apenas já um murmúrio ou a sua reminiscência
o que vibrava ainda nos vidros
das janelas do quarto.

mas saindo da cidade
e abrindo as curvas muito fechadas até
à tipografia gutenberg
que nesse tempo ficava do outro lado da estrada
num pequeno anfiteatro virado às águas do tâmega

eu via que os homens
de súbito
voavam.

os homens que voavam
pareciam vir do lado das casas da várzea.
voavam numa lentidão inverosímil
os braços muito abertos e as pernas a quarenta e cinco graus
como naves alienígenas
suspensas da rarefacção dos fins de tarde
dos meses de junho.

o meu pai nunca compreendia
a razão de eu querer ficar no banco corrido de trás
o mais desconfortável
e sujeito à oscilação de enjoo das molas oscilatórias
da camioneta da carreira:
mas só assim podia ainda quedar-me
de olhos colados ao imenso vidro traseiro
a ver os homens da várzea
a desaparecer na distância
voando sobre a veiga de chaves
tocando com as mãos na copa dos salgueiros
e dos amieiros
incendiados pela reverberação
das seis e meia.

eu próprio cheguei a duvidar
das imagens antigas da infância
e dessa memória que ao longo dos anos
repercutiu nos meus sonhos.

a verdade é que no passado dia vinte e três de agosto
numa segunda feira do ano de dois mil e dez
ao fim da tarde
quase quarenta anos depois do
episódio a que faço ingloriamente referência
por saber que ninguém no mundo em que vivemos
acredita em histórias verdadeiras

ia eu de carro a caminho de chaves
e vi claramente visto
com estes dois que só a terra haverá de comer
um homem e uma mulher
suspensos à luz rasa do crepúsculo
voando sobre os campos da veiga.

vinham ambos do lado das casas da várzea
e a mulher tinha um vestido de um amarelo tão intenso
que eu estou que o resto da minha vida
não será bastante
por longa que seja
para ofuscar na memória
o halo dessa tão intensa e concreta
revelação dos milagres.


[originalmente publicado aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/]

quinta-feira, setembro 23, 2010

[regresso da Guerra de Tróia]

regresso da Guerra de Tróia
e não sei que fazer
da merda deste Cavalo
que não me cabe em lado
nenhum.

[a flor da volúpia]

a flor da volúpia
(que mal a vemos hoje
que parece mal)
atravessou uma boa parte da literatura do século xix.
tem exactamente sete pétalas
e ninguém a reconhece como sua.
era preciso
(como custa repeti-lo)
um obscuro poeta das periferias
vir assim recuperá-la no nosso tempo
para que não ficasse escondida e incógnita
nos herbários dos museus
da Rua da Escola Politécnica.
é caso para perguntar
o que anda a fazer a crítica literária
deste meu
tão
pobre país
tão
culto.

[venho para te salvar]

venho para te salvar.
trago um velho helicóptero em segunda mão
e
(porque será preciso içar-te do rasteiro chão)
uma corda de esparto
da minha terra.
não te preocupes.
nunca deixei ninguém
em território inimigo
(independentemente da precariedade dos meios aéreos)
sempre que levei comigo
a corda de esparto
da minha terra.

quarta-feira, setembro 22, 2010

[«não espero nada do mundo»]

«não espero nada do mundo»
dizia o meu amigo poeta decadentista
muito displicente
muito dado à cerveja e à exaltação do comezinho
desde que leu a antologia
(que lhe emprestaram e não devolveu)
do Manuel de Freitas.
e alguém que perdesse tempo a explicar-lhe
que bem fodido estava o mundo
se esperasse mais dele
do que ele esperava do mundo.

[oiçam como eu suspiro]

oiçam como eu suspiro:
ai.
a minha poesia
em finais da primeira década do século xxi
haja embora opiniões contraditórias
é de um lirismo comovente.

[no país dos narcóticos]

no país dos narcóticos
lembro-me de pedir um copo de água
e ficarmos todos ganzados.

[rendo-me à subjectividade]

rendo-me à subjectividade.
de que outro modo escrever relatórios
num país de poetas?
quando digo pedra todos compreendem nuvem
quando digo nuvem todos compreendem pedra.
rendo-me enfim à subjectividade:
escrevo nuvem porque quero dizer pedra
sabendo que todos lêem pedra
quando escrevo nuvem.