sábado, dezembro 29, 2007

Os perigos

Ninguém se perde
no estrangeiro ou nas cidades
dos livros. Ninguém se perde
nos labirintos de creta. O problema
é chegar a casa saindo
das ruas do largo
com as chaves no bolso.

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Os outros

O problema sempre foram
as más companhias: são os outros
que corrompem. Por
nós, cada um de nós, o mundo
não teria uma nuvem de cinza ou um único muro
erguido a desenhar com alvenarias
as fronteiras
e a intolerância. O problema
do mundo sempre
foram os outros.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

Natal

jcb


Boas Festas.

sábado, dezembro 22, 2007

As páginas dos romances

Fazíamos o salto mortal com pirueta à frente
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa. As obras
da escola eram a nossa perdição: as fasquias de alumínio,

o ondulado de luzalite das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados à tarde
erguíamos muros no combarro com tijolo de quinze,

marcávamos com estacas de pinho o perímetro
exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira a olhar
em sobressalto os movimentos oscilatórios do balde.

Penso que era assim. Às vezes pergunto o que fica
dos livros, o que pertence e não pertence à literatura,
o que acrescentaram à nossa vida as páginas dos romances.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Do que nunca existiu

Os amigos juntam-se e falam do passado, da música
que já não se ouve na rádio, do inverno em que choveu
semanas a fio e o rio saiu das margens para desenhar
nos troncos das árvores os círculos imperfeitos

da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres que se renderam
para sempre às palavras do amor, das perdizes
caindo de asa nas encostas iluminadas da urze,

das corridas memoráveis do vinte e cinco
de abril, das tardes de domingo que haveriam
de envergonhar a uefa se a televisão estivesse presente

nas finais dos torneios dos bombeiros voluntários.
É disso que os amigos falam: do que a vida poderia
ter sido se não fosse a filha da puta de vida que foi.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

Pouco mais

jcb

O que deitámos fora
ou nem chegámos a ter
por indiferença ou lentidão: pouco mais
ou nem tanto
desejamos agora.

terça-feira, dezembro 18, 2007

Dezembro

foto: A. C.


A chuva diminui a distância
entre nós e as coisas. Um muro, de súbito,
é como se fosse o primeiro e único muro
da infância. E podemos sentir uma estranha melancolia
a olhar os velhos postes de electricidade
com os seus fios
a atravessar as ruas e as casas.

Seis filmes

Seis filmes? Aí vai:

Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson.
O Meu Tio, de Jacques Tati.
Belarmino, de Fernando Lopes.
Amarcord, de Federico Fellini.

Recordações da Casa Amarela, de João César Monteiro.
In the Mood for Love, de Wong Kar-Wai.

Amanhã escolheria outros?...

segunda-feira, dezembro 17, 2007

O que seremos

jcb


O que seremos no futuro, enquanto país, dependerá em grande parte do que soubermos guardar daquilo que mais profundamente nos pertence.

Do que se fala aqui é apenas duma opção que mais tarde nos haverá de envergonhar. Mas nessa altura, como de costume, será tarde.

domingo, dezembro 16, 2007

Elas mudavam de lugar os objectos

Elas sabiam que aos filhos
os haveria de levar nas águas de novembro
a deriva. Não diziam
a Palavra com medo
dos desastres.

Elas bordavam ao domingo
as toalhas das mesas.
Elas mantinham o lume aceso
durante a tempestade até
chegarem os seus homens. E erguiam
pequenos muros
frágeis de tijolos
refractários.

Elas mudavam de lugar
os objectos e penduravam
papéis coloridos nos arames de roupa
do pátio
onde escreviam um nome.
Elas ficavam assim
a olhar os astros.

Depois os filhos saíam de casa e elas
desciam ao pátio a procurar
na trémula caligrafia
os limites da passagem do Tempo
e cada uma das suas
irrevogáveis
sílabas.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Nos domingos

Nos domingos de junho dos princípios
dos anos 70 as crianças quebravam
o gume do silêncio sucessivo a ensaiar nas varandas
de cimento os princípios
da levitação.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Gardunho

A flecha é a parte mais funda das árvores reflectidas
no açude e as raízes
parecem descer ao longo do fuste aproximando-se
do céu e simultaneamente
fugindo dele. O declive
das encostas cortadas a pique esconde
as cumeadas. Doze
salgueiros erguem uma espécie
de sebe ou guarda-vento.
A casa fica na margem direita do pequeno
vale desenhado de ambos
os lados do rio.

Se alguém chegasse à escaleira da entrada
e gritasse
o eco da sua voz repercutia-se numa abóbada
de silício.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

As frases

Vem de muito longe o pó
na tijoleira das entradas das casas. Os mortos
saem dos retratos a sépia
pendurados nas paredes
e parecem tocar-nos
no ombro.

Uma frase desmoronava as barragens
dos desastres. Não era ainda
a noite. Ele deixava as mãos muito levemente
sobre a água
do tanque a experimentar
a imponderável ondulação dos significados.

domingo, dezembro 09, 2007

Outra vez

Outra vez o chamado mundo rural ou o direito à indignação.

No tempo das colheitas

No tempo das colheitas
como o ar quente a loucura ascendia
e desenhava uma nuvem
se as mulheres
despiam as saias e tiravam
das gavetas das cómodas
a pérola do lume. Nas varandas
nem a memória ficava do silêncio em vez
da roupa de cor estendida nos arames
tensos.

A dádiva aproximava das hastes do trigo
a água das nascentes.
Alguém subia aos ramos
quase apodrecidos das macieiras
do cedo e dizia assim
eu tivesse o poder
de curar com as mãos.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Arqueologia

As paredes de pedra e os vidros
da janela separavam do mundo
o crepitar doméstico
do fogo da lareira e o odor
do pão ainda quente.
Na mesa do escano
a criança desenhava os diques.

A ameaça
é um dissimulado rumor
que não exige defesas.
Crescendo nas margens
em vez do dilúvio
a água começava por delinear nos troncos
das árvores os iluminados círculos
dos anos.
Na mesa do escano
a criança desenhava os diques.

O olvido e a tormenta
queimam em seu redor o oxigénio
até ao deslaçar imperceptível
das palavras. No enxofre do vácuo
em partes desiguais a tempestade
e as pétalas cor de zinco
das rosas do inverno
ardem.

O que fica é o breve
e quase inexplicável espólio de quatro
pedaços de cerâmica e um
desenho nas suas linhas trémulas
a lápis.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A rotação dos astros

As mulheres correram
a tirar dos arames os adjectivos
quando os relâmpagos bateram nas pedras
de xisto dos pátios. As mulheres
guardaram os adjectivos nas gavetas da cómoda.
As mulheres misturaram a água
e as palavras nos púcaros.
As mulheres fecharam à chave
as portas sucessivas.

Mas o inverno trazia
do fundo dos poços da infância
o mapa dos remansos. O inverno
desmoronava as barreiras de saibro.
O inverno espalhava os eléctrodos
entre a nuvem de silêncio
e a hélice das sementes do ácer.
Oinvernotropeçavanosdegrausdecasa.

E era quase a noite.
E uma criança abriu a gaveta dos adjectivos
e jurou que as marés ou a rotação dos astros
revertiam no cântaro da cozinha
do breve rumor das águas
subterrâneas dos relâmpagos.

domingo, dezembro 02, 2007

Letra de canção enviada pelo comentador anónimo

O amor às vezes esbarra em coisas
tão pequenas:
desatenções, um esquecimento,
preciosismos.
No nosso caso, acredita,
foi apenas
não te conteres e exagerares
nos galicismos.

Tanto batom e tanto ruge
não se aguenta.
Tanta chauffage, tanto charme,
tanto chique.
No restaurante era o menu
em vez da ementa
e em vez das lojas tu compravas
na butique.

Pela manhã ganhavas horas
na toalete,
em cada táxi interpelavas
o chauffer.
Ele era o louvre, a notre-dame
e la villette,
era o malraux, o victor hugo,
o molière.

Já enjoava os croissãs
quase vencido,
os sucessivos bibelôs,
os dossiês.
E ainda agora tanto tempo
decorrido
fico doente só de ouvir
falar francês.

quarta-feira, novembro 28, 2007

Um dia

Um dia disse: estou farto de poemas. Ninguém o levou muito a sério. Tinha começado o Inverno, tinham chegado os primeiros dias frios, a lareira acesa.

Ver

Uma árvore é um universo
em expansão afundando as suas raízes
em direcção ao passado e os seus ramos
em direcção ao futuro. Olhaste tantas vezes
a gleditsia da ponte vindo de casa a caminho
do padrão e nunca verdadeiramente
viste nenhuma das suas folhas e nenhum
dos seus espinhos e nenhuma
das sua vagens. As mais das vezes
conhecemos as coisas pelos seus nomes
e nunca chegamos a vê-las.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Cartaz moderno

jcb

quinta-feira, novembro 22, 2007

quarta-feira, novembro 21, 2007

Noite

jcb

domingo, novembro 18, 2007

Letra de canção (outra)

Há tantas coisas
que passaram
já de moda
o um de maio
os rebuçados
de mentol
o gira-discos
a disquete
a arte nova
a anorexia
o casamento
o rock and roll

Há tantas coisas
que pertencem
ao passado
a pedra pomes
os exames
do liceu
o sabonete
a limonada
o frango assado
as persianas
o amianto
o coliseu

Mas entretanto
é outro o tempo
o dia-a-dia
o jornalismo
de polícia
as adopções
pão integral
a paridade
a ecologia
o ecoponto
a reciclagem
os vidrões

Há tantas coisas
que pertencem
ao que vês
o baixa-a-bola
a opção táctica
dum trinco
o almerindo
o ponto.com
o corte inglês
a banda gástrica
a asae
o ornitorrinco

Predador

O predador deve ter frio
porque sobe sempre as golas
dos casacos.

sexta-feira, novembro 16, 2007

Não: é verdade

Não é verdade que os amigos não morrem.
Os amigos morrem quando a morte
os leva com a sua faca de cortar o gelo no diamante
dos lagos da península. Os amigos morrem
e não é verdade que regressam
na memória de os lembrarmos
ou nas fotografias e nos papéis amarelecidos
dos seus nomes. [Não

sei: ao dizer que os amigos não morrem
enquanto nos lembrarmos deles
talvez procuremos mais que um refúgio
para nós mesmos: às vezes
é necessária a certeza de que tudo está certo
mesmo que seja preciso
mentir para dizer a verdade.] Não

sei: os amigos não morrem quando a morte
os leva com a sua faca de cortar o gelo no diamante
dos lagos da península.

terça-feira, novembro 13, 2007

Quando o vento

é assim quando
o vento (ou o esquecimento) começa
a percorrer
as pág nas dos livr s
e v s

l

v ç



a

segunda-feira, novembro 12, 2007

e


j l ç

d

s v
h m ho m porq e
nã con ig sup rt r
est s canet s com ti ta
de evaporação
rápida.

domingo, novembro 11, 2007

somos

nenhum espelho ohlepse muhnen
evloved son nos devolve
a imagem megami a
somos euq od do que somos
verdadeiramente etnemariedadrev

sábado, novembro 10, 2007

Os brinquedos

No futuro que objectos haverão
de substituir-se às rodas dentadas de
madeira e aos automóveis de plástico
da feira dos santos com as suas quatro rodas
deslizando nas mesas de castanho? Autómatos?
Hologramas movidos no espaço
por comandos de funções múltiplas? O mundo
corre contra o passado e o seu
dédalo de fios imperecíveis. E assim
é que está certo. Quando envelhecemos
ficamos atados aos brinquedos de madeira
de pinho com rodas dentadas
a mover-se desajeitadamente nos
carreiros de saibro dos pátios.

sexta-feira, novembro 09, 2007

A paz insustentável

Na infância nenhuma máquina
ou artefacto se comparava a um helicóptero.
Nem o caterpilar com a sua pá imensa.
Os helicópteros voavam sobre os lancis ou ficavam
imóveis movendo apenas as hélices
quase silenciosas nas linhas de separação
dos passeios de cimento. Nas revistas
de banda desenhada os helicópteros por esse
tempo sobrevoavam as matas densas
do vietname. Na televisão a preto
e branco os helicópteros movimentavam
as tropas de um para outro
cenário de guerra em territórios lusos
do ultramar. Vivíamos fascinados com esse vórtice
e simultaneamente desiludidos
com a paz insustentável que se vivia na vila
entre duas linhas de fronteira
desenhadas nos passeios de cimento.

quinta-feira, novembro 08, 2007

Fotografias de viagem, 2





jcb

Fotografias de viagem, 1





jcb

Teoria

Eu disse-lhe a tua poesia assim não
pára sequer na irrisão: à demasiada prosa
dos teus versos falta densidade e sobressalto.
Eu disse-lhe a displicência deve decorrer
nunca do ofício mas
da respiração sem adornos: a prosa
ressente-se da excessiva artificialidade
dos teus elaborados versos.
Eu disse-lhe não escrevas
sobre bicicletas se temes o juízo
dos contemporâneos e a história.

quarta-feira, novembro 07, 2007

Quietude

A estranha nostalgia de um tempo
e de um lugar onde nada acontece. Um cântaro
com água reverbera o silêncio das nascentes
ou das raízes obscuras das folhosas.
Uma criança corre desamparada no terreiro
do largo e tudo fica suspenso desse voo contra
a inverosímil quietude dos nomes.

segunda-feira, novembro 05, 2007

A invenção da bicicleta

Tudo o que fizemos no domínio
dos transportes desde a invenção da bicicleta
só contribuiu para melhor compreendermos
como a bicicleta é útil e bela
e comovente. E é mais bela e útil
e comovente quanto mais
os corredores aéreos enchem os mapas
dos controladores de voo e quanto
mais os viadutos se cruzam
e sobrepõem para dar vazão às filas
de automóveis nas pontes
dos feriados. As crianças
conhecem os segredos do vento numa
roda pedaleira. As bicicletas
e os bosques abrem no verão em simultâneo
os pequenos açudes luminosos
da infância. Depois do vidro e da roda
a bicicleta foi uma das mais
belas e úteis e comoventes
invenções da história do homem.

A mesa da varanda

Joguei crapô durante três verões
porque ela gostava de jogar crapô.
Passávamos tardes inteiras sentados
à mesa da varanda do pátio. Na adolescência
o amor pode ser a raiz venenosa
do loendro crescendo por dentro
das tijoleiras das casas. Jogávamos crapô
porque sobre todas as coisas
ela gostava de jogar crapô.
Hoje não sei o que seria capaz de fazer
pelo amor. Mas sei que não passaria
três verões na mesa da varanda
do pátio a jogar crapô.

Os subterrâneos da cidade

Num sonho visitei os subterrâneos da cidade.
Somos outros depois de conhecer ainda
que em sonho os subterrâneos da cidade.
Quando lavamos os dentes ou a meio
da noite acendemos o candeeiro
da mesinha de cabeceira não
imaginamos que a água e a electricidade
chegam a casa percorrendo os
labirintos subterrâneos da cidade.
Quando ligamos o esquentador ou puxamos
o autoclismo com a displicência
de quem voga dois
palmos acima do terreno mundo
não imaginamos que o gás e o esgoto
não obstante em sentido diverso
correm nas tubagens e nas manilhas
dos subterrâneos da cidade.
Ao movermos o rato para navegar
na internet ninguém imagina
que os ratos verdadeiros e a fibra
óptica partilham as mesmas condutas
nos subterrâneos da cidade.

O teu nome

Para não cortá-los eu
pedi na casa de tatuagens
que me gravassem o teu nome
nos pulsos.

terça-feira, outubro 30, 2007

As garrafas de água

Há pessoas que metem gasolina nas garrafas
de água. Há pessoas que metem chá verde
nas garrafas de água de litro e meio.
As pessoas metem quase tudo nas garrafas de plástico
se não for água de nascente. Metem água rás. Metem aguardente.
Eu sei de uma pessoa que gostava de mostrar ufana
que pela sua garrafa de água do luso
nos piqueniques servia aniz escarchado
caseiro aos amigos.

segunda-feira, outubro 29, 2007

Letra (com refrão e tudo)

Caídas em desuso
há tantas expressões
o linho, a roca, o fuso
as privatizações

o comité central
a anop, o proletário
a intersindical
o amor no calendário

as cartas do correio
os fios do telefone
travões de servo ao freio
telex, gramofone

Há tantas situações
que passaram de moda
as contas com cifrões
os bailinhos de roda

o comunismo, a AD
a cerveja marina
a laranjina C
a pública latrina

os emplastros leão
o trato por você
o sporting campeão
na ardósia o abc

As letras com refrão
o verão quando é o verão

As letras com refrão
o verão quando é o verão

Cicatriz

os desgostos
não
se discutem

quinta-feira, outubro 25, 2007

Algumas regras

Não perder o pé. Nestes primeiros anos que já não
vão sendo tão poucos como isso
do século vinte e um a lírica
ainda compensa. Não vem nenhum
propriamente mal ao mundo literário quer dizer
aos seis críticos literários de serviço
e quase me atrevia a acrescentar o manuel senão é
ver se por exemplo o rui não entrou na antologia
em deixar a gente escapar-se-lhe
a descrição da serração antiga ou a emoção de topar-se
de súbito num imprevisto fim de tarde com
as encostas frias onde a bétula teima em erguer-se.
Mas com parcimónia bom será de ver. Porque
um elevado grau de abstracção
decorrendo directamente de questões filosóficas
ou a concisão ou a perturbação
descritiva que rejeita nexos lógicos
ou sobretudo uma poesia assumidamente urbana
ou uma poesia com permanentes
referências cultas que pode mesmo
abusar da sinestesia num delírio surrealizante
já sem relações algumas com o objecto de partida
é outra loiça. Depois há o óbvio: não enxamear a coisa
de adjectivos ou mesmo reduzi-los ao osso
não falar do corpo ou falar que a
metáfora não faz mal a ninguém mas então não
escrever a palavra corpo
e sobretudo não escrever a palavra pele
e as questões sociais por amor de deus.
As qualidades claro não é devagar que se perdem
mas o poeta ou tem um ofício
ou então que vá mas é com mais previsível
proveito trabalhar nas obras.

terça-feira, outubro 23, 2007

Os destroços das anémonas mortas


para o Hugo Cavaco


Sei hoje, Thereza, quão pouco e precário é o poder de quem governa os impérios e os reinos ou os lugares da terra. Sei hoje que só ilusoriamente nos pertencem as mercês que não vêm do povo a que pertencermos. Sei hoje que o nosso pecado maior, e o nosso erro maior, é procurarmos em Deus a pequena parte de Deus que nos serve para justificar o exercício do domínio e do arbítrio.

Deixa-me ficar contigo mais uma noite, Thereza. Deixa-me tocar de novo os teus ombros nus, os teus joelhos breves, as tuas mãos trémulas, o teu corpo igual a esta noite de Junho quando a manhã começa a anunciar-se em terras de Castela e depois avança, vagarosamente, erguendo-se na linha do horizonte numa luz tão leve que fica sobre as águas da baía dos mares de Monte Gordo como se o mundo só então estivesse a nascer e só então as coisas começassem a ter um nome.

Eu conheci a glória, Thereza. Fui capitão de Alcácer Seguer e Sainal, de Azamor e Mazagão. Mas conheci também a cicatriz da conquista, as lágrimas e o ultraje, o logro de submeter pela espada, o sonho e o seu reverso nos campos de batalha em que ninguém venceu, em que ninguém poderia ter vencido. Nós avançávamos protegidos pela bandeira de um Deus que julgávamos ser nosso dever impor aos infiéis. Era essa a ilusão dos que, como eu, estiveram nas margens do Umme Arrebia ou na foz do rio Sebou, ou que, muitos anos antes, acompanharam D. Afonso em Alcácer Seguer com as mãos manchadas de sangue e se dirigiram assim à mesquita convertida de súbito em igreja cristã sob a invocação de Santa Maria da Misericórdia.

Deixa-me ficar contigo para sempre, Thereza. Deixa-me ficar a ver-te adormecer nestas noites em que apenas as estrelas desenham o mundo, em que o mar parece de súbito apaziguado pela nossa presença e da memória do levante ficam apenas os destroços das anémonas mortas no areal. Deixa-me ver-te respirar enquanto dormes, enquanto o quarto crescente começa a iluminar os medos de areia que vão de Cacela a Santo António de Arenilha. Deixa-me ficar contigo, aqui, em Monte Gordo. Deixa-me ficar contigo e com a tua gente rude que desespera o poder instituído, neste lugar de gente livre cuja honra foi transformada em insídia pelas posturas da lei.

Em Mamora, em nome de Deus, perdemos cem navios num único dia. Muitas vezes penso como terá reagido D. Manuel ao saber que quatro mil dos seus homens haviam sucumbido na foz do rio Sebou. Que Deus era este que levávamos desenhado nos estandartes, que desígnio era este de nos expandirmos em nome da fé? Terá a indecisão, a dúvida, a descrença, tocado por um instante o coração magnânimo de sua majestade? Do outro lado, do outro lado de Deus, outros homens lutavam em nome de Deus. Davam-lhe um nome diferente, claro, e lutavam em seu nome. A verdade é que os sonhos de conquista de D. Manuel iam provocando nos mouros uma reacção violenta que passou a ancorar-se mais num crescente fundamentalismo religioso, numa guerra santa, do que na simples necessidade de defesa dos territórios. De que lado estava a intolerância? Não sei. Sei que regressei ao reino, investido como senhor de Santo António de Arenilha por mercê de D. João III, e que só agora compreendo, junto do meu povo, quão pouco e precário é o poder de quem governa os impérios e os reinos ou os lugares da terra se as mercês não vêm desse mesmo povo a que pertencemos.

Aqui, em Monte Gordo, sinto-me finalmente livre. Aqui, Thereza, sinto-me livre pela primeira vez. Entre gente rude, é certo. Gente de faca e sovelão, de estoque e adaga, de alevantamentos e distúrbios. Gente que desrespeita os decretos e as normas do reino. Gente que procura apenas o seu próprio destino num mundo em que Deus e as leis não deveriam ter uma única face.

Também por isso abdico da glória e das mercês. Também por isso quero apenas ficar aqui contigo, Thereza, nos areais e nas cabanas precárias dos areais de Monte Gordo. Fora do mundo. Olhando assim a noite, como hoje, como nesta noite em que só as estrelas desenham o universo e as águas do mar parecem ter ficado paradas para que o silêncio seja a única testemunha do preciso momento em que toco as tuas mãos, os teus ombros nus, o teu corpo adormecido no meu corpo.



in Jornal do Baixo Guadiana, Outubro de 2007

segunda-feira, outubro 22, 2007

[PUB. Impossível perder]

No DOCLISBOA, hoje, o já tão premiado filme de Sofia Trincão e Óscar Clemente: «Praia de Monte Gordo». Impossível perder. A comovente – mas sobretudo intensa – história dos pescadores que viram desaparecer os seus barcos e, em mais que um sentido, partes das suas vidas.



Hoje, na CULTURGEST,às 16.30 h, no Grande Auditório; no dia 24, às 14 h, na sala 2 do Cinema Londres.

domingo, outubro 21, 2007

As Indecisões do Príncipe Perfeito, 3 [versão 2]


J. C. Barros, acrílico sobre papel, 80x60 cm.

As Indecisões do Príncipe Perfeito, 2



J. C. Barros, acrílico sobre papel, 80x60 cm.

sábado, outubro 20, 2007

O pó

O pó das argilas vinha da água
a casa crescia irredutível
todos os inumeráveis nomes da infância revertem
dessa primeira coluna imemorial
incólume.

Da infância

no poço da morte
morríamos
de susto

Poema antigo (tantas versões...)

Quando acordamos dum sonho
que sonho
sonhamos ainda?

sexta-feira, outubro 19, 2007

No monopólio

No monopólio eu procurava incessantemente
mais que a rua de santa catarina ou o rossio
adquirir as quatro companhias
das águas. Perdia sempre. Outros
tempos. Hoje
estaria rico.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Os cinco elementos, 3

jcb

Ainda os cinco elementos

Um rosto que vem de longe: das ilhas
dos romances, dos continentes onde nascia o vento
antes da luz
transformada
em terra azul incandescente.
Um e outro nome,
um e outro devorados pela vertigem
do crepúsculo: o mar ou a manhã,
a tarde ou a água iluminada
nas sombras pretéritas
desse rosto: nenhum lugar,
nenhuma gramática
ensinada nos livros.
E só depois o corpo. E só depois
o lume.

quarta-feira, outubro 17, 2007

Os cinco elementos, 2

jcb

Os cinco elementos

a água retira ao fogo incandescente o ar. a terra retira ao ar o fogo da água. amo-te. o fogo retira ao ar que se respira a água. o ar. a terra. o fogo. a água. amo-te. ao fogo incandescente. a água retira ao fogo incandescente o ar.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Ama

jcb

Partes do mundo, 1

jcb

sábado, outubro 13, 2007

13 de Outubro

jcb

segunda-feira, outubro 08, 2007

Cacela, 7:38 PM

jcb

sábado, outubro 06, 2007

O Sábado

Os cordeiros ficavam suspensos
de paus espetados nos intervalos das pedras
da parede para que melhor
depois de soprados à cana
se lhes tirasse a pele e as enxúndias viessem
inteiras na precisão do corte. As primeiras moscas
do ano seguiam os movimentos da navalha
e poisavam nos panos ou rondavam
os alguidares das vísceras. À distância
ouviam-se os gritos metálicos e trémulos
e lancinantes dos bichos. Mas
havia que estar presente e
ter seis anos e ver o sangue
a escorrer em fio na pedra de granito inclinada
do pátio de tão abundante e
inverosímil. O meu tio
sorria então a olhar-me e a limpar num
pano de cozinha as mãos
cumprida com mestria a função de esfolar
e amanhar os cordeiros da páscoa.
E nas assadeiras e nas mesas festivas
não haveria já no dia seguinte
memória nenhuma do sangue
escorrendo na pedra do pátio.

sexta-feira, outubro 05, 2007

Nenhuma máscara

Não sabemos ainda como
perdemos as asas: se
nos lancis dos terraços
em voo sobre os pomares de amendoeiras, se
nas sobrevoadas cumeadas
dos bosques de bétulas em novembro, se
nos olhos de água, se
na puta da vida emitindo recibos
e avenças. Sabemos apenas
que nos olhamos hoje
e nenhuma máscara
nos cabe
no rosto.

A questão energética

(dedicado ao anónimo da caixa de comentários)

Há uma lâmpada que ficou acesa
para sempre. O último a sair
tinha um sentido de responsabilidade
filho da puta.

quarta-feira, outubro 03, 2007

Nas ruínas, 2

As caixas de comentários têm momentos deliciosos. Como este, por exemplo, a propósito do poema anterior (Nas ruínas):

«Presumo que o último a sair esqueceu-se de a apagar.»

segunda-feira, outubro 01, 2007

Nas ruínas

nas ruínas de Cartago
uma flor uma obscura lâmpada iluminada
permanece ainda

No fundo do mar

dizes uma única palavra
e os sismógrafos desesperam
entre richter e mercalli
como se as tempestades ou a chuva pudessem nascer
em vez dos sismos
no fundo do mar

Em vez da sede

em vez da sede
a escassa e inúmera água do deserto
nos teus lábios breves

Meu amor

eu amava sobretudo meu amor
e tanto
as tuas imperfeições

domingo, setembro 30, 2007

As fases da lua, 2

jcb

As fases da lua, 1

jcb

quarta-feira, setembro 26, 2007

As Indecisões do Príncipe Perfeito, 1


J. C. Barros. Acrílico e pastel sobre tela, 60x60 cm, 2007.

O que fica

de um poeta inovador de meados do séc. XX
culto e atento às coisas do seu tempo
escreve agora um crítico literário de
vinte e quatro anos acabado
de sair da faculdade de letras
definitivo a dissecar-lhe a vasta obra
que «é um poeta datado»

e pronto

Carris, 1989


J. C. Barros. Acrílico sobre papel, 21x29,5 cm, 2007.

Um fim de tarde no bosque de carvalho alvarinho, 3


J. C. Barros. Acrílico sobre tela, 60x60 cm, 2007.

Um sonho de Eduardo Gageiro no Alentejo em 1981



J. C. Barros. Acrílico e pastel sobre tela, 60x60 cm, 2007.

Um fim de tarde no bosque de carvalho alvarinho, 2


J. C. Barros. Acrílico sobre tela, 60x60 cm, 2007.

[Fragmentos, 3]

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[Fragmentos, 2]

jcb

[Fragmentos, 1]

jcb

segunda-feira, setembro 24, 2007

Um fim de tarde no bosque de carvalho alvarinho

jcb

Amo-te

«amo-te»
dizias tu a olhar
pelo retrovisor

Fim de tarde, 2

a água das nascentes
vem
do fim de tarde

sexta-feira, setembro 21, 2007

Fim de tarde

jcb

quinta-feira, setembro 20, 2007

Lugar, 3

Um dia as mulheres da casa fecham os armários
à chave e um caderno de deve e haver fica esquecido
na cómoda. O inverno espalhará as suas sombras
nas varandas viradas ao nascente.
A humidade e a insídia entram nas gavetas
até não se distinguirem os rostos
das fotografias.
É sempre tarde. Os filhos
nunca regressam.

terça-feira, setembro 18, 2007

Lugar, 2

Somos estrangeiros quando chegamos
e nenhuma criança vem a correr ao nosso encontro
com os seus archotes de vela
de navio. Somos estrangeiros quando
uma fina película de oxigénio
separa os nomes das coisas
e a memória de cada uma das coisas
nomeadas.

Lugar, 1

Vinha de longe como se viesse do futuro.
E misturava no ar as substâncias desconhecidas: o gasóleo
e a fuligem, o tisne, a pedra volátil.
As mulheres ficavam à porta, deixando por algum tempo
a lida de casa, a olhar a camioneta da carreira,
a poeira levantada dos caminhos de saibro.
Há sempre um instante preciso
a delimitar a fronteira
entre dois mundos: é o fim de uma manhã de setembro
e um milhafre desenha-se sobre a cumeada
enquanto a camioneta da carreira
faz estremecer de um modo quase imperceptível
as folhas minúsculas do espinheiro da virgínia
do largo.

segunda-feira, setembro 17, 2007

A protecção

Nos seus pesadelos
os monstros vêem a meio da tarde
os nossos olhos a perfurá-los por dentro

e esperam a noite
a protecção das sombras
um relâmpago

Ainda e sempre os monstros afáveis





jcb

domingo, setembro 16, 2007

Ainda a luz de Setembro

jcb

O mundo, 2

O mundo
é como vês o mundo.
A pedra é o que vês
olhando a pedra.
A água existe
porque mergulhas as mãos
na água.
O vento faz mexer
as folhas das árvores
porque vês as folhas das árvores
a ondular
quando o vento corre.

O mundo

jcb

quinta-feira, setembro 13, 2007

O que muda

A luz é a mesma.
Tu é que, caminhando,
a vês de maneira diferente.

segunda-feira, setembro 10, 2007

A luz de Setembro

jcb




[Quase nada, 3]

Nenhum poema

Tu, Dolfo, cavador
de enxada, quanto me ensinaste
da vida que não vem
nos livros. E em tua casa,
na cozinha de terra
batida, que vinho
haveria de suplantar
esse que bebemos do jarro
em bouquet, em coloração,
em extracto etéreo, em substâncias
voláteis? E o que dizemos
sobre o mundo
visto assim a olhar
a floração da urze ou
os talvegues que descem
a caminho da veiga,
Dolfo, que outra sabedoria antiga
contrapõe? E amanhã
estaremos juntos de novo
e isso nenhum poema
conta
verdadeiramente.

sábado, setembro 08, 2007

[Quase nada, 2]

Um leilão em Cacela

O porte, claro. A curva
do pescoço, a cabeça, a coloração,
o tamanho da pupila,
a aerodinâmica, as últimas
três penas da asa. Mas sobretudo
a linha antecedente: a
genealogia, o nome, o livro, o saber-se
de onde vem há quantas
gerações. E nem mulheres
de filme os deixariam assim: embevecidos
a olhar os pombos.

sexta-feira, setembro 07, 2007

10 livros que não mudaram a minha vida

Em resposta ao desafio do António Manuel Venda (a proposta inicial é de Manuel A. Domingos e o assunto tem dado pano para mangas: aqui, aqui, aqui e aqui, só a título de exemplo) escolho aquilo que supostamente serão dez grandes livros. Critério: títulos sobre os quais criei ou me criaram imensas expectativas e no entanto me deixaram indiferente ou de pé atrás. O mais certo, portanto, é que se trate de grandes livros que apenas não encontraram em mim o leitor que o seu mérito literário justificava ou merecia.

- «A Fogueira das Vaidades», Tom Wolfe
- «A Misteriosa Chama da Rainha Loana», Umberto Eco
- «A Cruz de Santo André», Camilo José Cela
- «A Cidade das Flores», Augusto Abelaira
- «Big Sur», Jack Kerouac
- «Pedro Páramo», Juan Rulfo
- «As Rosas de Atacama», Luís Sepúlveda
- «José e os seus Irmãos», Thomas Mann
- «Os Duros não Dançam», Norman Mailer
- «Olhai os Lírios do Campo», Erico Veríssimo

Gostaria que continuassem o desafio: o Fernando, o Luís, o Diogo, M e a Isabela.

segunda-feira, setembro 03, 2007

[Quase nada, 1]

Os incêndios

Eu assim também
lia o oráculo: esta mata
vai arder. Não era preciso
um fósforo
ou o horóscopo
ou um rastilho aceso.
Mais que certo:
os pinheiros bravos
destinados
aos incêndios
do Verão.

domingo, setembro 02, 2007

[Ainda as caixas de comentários]

Como outros se lavam
recatadamente há os que
escolhem conspurcar-se
em público abrindo

a boca escorrendo-lhes
baba ou deixando em blogs
alheios o seu próprio
ranço nas caixas

de comentários
em mau português. E quase
nunca é propositado

mas apenas quase
sempre a falta de sexo
ou de ternura ou

a ignorância acrescida
de nunca terem tido
um espelho onde pudessem
vagarosamente olhar-se

nem livros na infância.
E é enfim o pretexto
para nos lamentarmos
a meio de conversas

sobre o campeonato
de se ter demitido
por razões pedagógicas

o sistema de ensino
de baixar a bola
a refractários deste calibre.

sexta-feira, agosto 31, 2007

L.

agora sabemos que às vezes é preciso morrer
para que algumas coisas fiquem vivas para sempre:

a manhã de novembro em que caiu a neve
e foste a minha casa oferecer-me agasalhos;

as tuas mãos nas minhas mãos quando
quase adoeceste por me ter assaltado a febre.

havia tantas coisas que era preciso esclarecer:
falámos ao telefone e combinámos um encontro.

mas foi preciso que morresses para compreender
que as coisas decisivas ficam sempre por dizer.

Pai

Pai:
nunca escrevi
sobre ti:

nunca
saberia
o que dizer:

nunca
a flor do junco
haveria

de juntar
a sua inúmera
flor

e o gesto
de fazer dela
o amor.

quinta-feira, agosto 30, 2007

Esse lugar

o lugar que separa
os venenos dos seus perigos
aí adormeces

segunda-feira, agosto 27, 2007

Noite

que a maré desça
quando tiras o vestido
pela cabeça

Nascente

um rio que subisse
até encontrar
o teu nome

Dos malefícios da música pimba

a baía de Cascais
passava bem
sem os Delfins

Quando chove

nos teus olhos a água
nem uma nuvem
nem uma lágrima

Três imagens

jcb


[Fala a namorada do lutador de sumo]

vales
quanto pesas
meu amor

O teu nome

o teu nome
as tuas sílabas
em tudo quanto cintila

domingo, agosto 26, 2007

A porta do quarto da entrada [pormenor]

jcb



Em vez do sono

em vez do sono
as tuas armas
brancas

Camaleão

jcb






Aparecem de vez em quando. Mas, mestres na arte do disfarce, nem sempre os distinguimos por entre os arbustos e as árvores. Este, hoje, escolheu um jacarandá. E iluminou as suas folhas recortadas.