7.
Lá terá as sua razões (continua Maria Teresa) o doutor Magalhães. Que não nasceu ontem. Que já lhe tirou as medidas. Que já viu este filme, que é como quem diz. Olha o desconhecido e senta-se na cadeirinha de lona. Tem o sobrolho carregado e enfia os pés na bacia de porcelana. E sente essa turva exalação do enxofre da água das caldas santas. E deixa que o sol lhe percorra as pernas e os braços. Que a luz inicie os seus trabalhos de lenta depuração. É alérgico à sombra: doença filha da puta. A sombra não o deixa em repouso durante a noite. A sombra a dilacerar-lhe a pele. Noite após noite. Um formigar em hélice. A pele a escamar, a fender, a encapelar. Depois estica o pescoço e vê o desconhecido a entrar na Pensão Americana. E imagina já a Fernanda a estender-lhe a mão, a cumprimentá-lo, talvez a apreciar o seu rosto esquálido, os seus modos estrangeiros. E recorda o dia longínquo em que tocou o corpo de Fernanda. Em que ela se despiu diante de si. Em que a tocou a medo. Como se tivesse medo do seu próprio corpo. Lembra-se. Lembra-se de ter corrido as portadas até a penumbra os envolver em intimidade e silêncio. E de um incêndio, uma espécie de incêndio, de súbito, encher o quarto. E de ver assim esse corpo que desejava tanto a erguer-se numa labareda. A iluminar as paredes quase nuas. A transformar em fogo a última ceia emoldurada em pau de cerejeira. A irromper numa espiral de vertigem. Lembra-se. Lembra-se ainda de ter ousado tocar esse fogo. De quase ter tocado esse fogo. Esse lume leve. E de sair depois numa corrida. Como se ardesse. E de pensar por um instante breve que talvez fugisse de si mesmo e que talvez fugisse para sempre da luz do amor. Da luz em espiral do amor. E depois disso é alérgico à sombra. E precisa da luz. Há doenças do caralho, que parecem de romance, e é bem certo.