terça-feira, maio 31, 2005

O mundo


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O mundo, visto pelos olhos das crianças, é como se estivesse permanentemente a nascer: nos frutos, nos caules minúsculos das ervas, nas folhas das oliveiras, nos círculos desenhados à mão em ramos cortados em Outubro, nos ocres da terra lavrada, no arame das vinhas, no voo das aves, na água dos tanques. E é como se a cada instante se renovasse, como se nascesse de novo pela primeira vez quando as manhãs avançam até ao azul das cumeadas que se erguem na distância. E é como se tudo isso não tivesse nome. Ainda não tivesse nome.

segunda-feira, maio 30, 2005

Num jardim


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Num jardim procuramos sempre o que mais perdemos: uma praia, uma floresta, um nome ou um rosto.

domingo, maio 29, 2005

A ponte


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O dia, cedo de manhã, parecia indeciso entre a ameaça da chuva e a humidade apenas persistente a espalhar-se na terra sob um céu de cinza. Lá mais em baixo, na praia, não se pode dizer que estivesse uma jornada adequada ao aluguer de toldos, nem que a cerveja apetecesse nas esplanadas. O que é lamentável, em havendo uma ponte. Mesmo com o défice como se sabe. Mas posso jurar que há sempre alguém que se preocupa pouco com isso; que tem outras prioridades; e que vira a cabeça na direcção contrária, medindo a altura do pasto.

Coral


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Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha

[Sophia de Mello Breyner Andresen]

sábado, maio 28, 2005

As casas


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Não há um instante preciso em que possas dizer: acabaram as obras. Se viste a casa a crescer desde os alicerces, se viste as primeiras pedras do que viriam a ser os muros de pedra, se viste as primeiras árvores do jardim ainda enraizadas nos vasos - não há um instante em que possas dizer: acabaram as obras. Porque uma casa é também o rumor do vento a bater nas portadas que é preciso fechar, a luz demorada de julho na tijoleira das açoteias onde é preciso enrolar as esteiras de esparto, a sombra nos corredores das pessoas que se movimentam entre a cozinha e o pátio. E isso continua, dia após dia, enquanto as árvores crescem, enquanto nas paredes e nos muros se demoram as águas que já poisaram no tanque, que já subiram pelas raízes das alfarrobeiras, que já desceram de novo sobre os campos lavrados, que de novo se erguem até ser nuvem ou a memória do vento.

sexta-feira, maio 27, 2005

A noite


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Só a noite guarda os segredos e as promessas. Só a noite guarda a memória do tempo, os recados do amor.

Depois do levante


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Depois do levante, olhando na direcção do poente, é como se o rumor das águas subterrâneas levasse consigo a mais ligeira ondulação, a mais imperceptível inquietação, o mínimo sobressalto, o desassossego, o vago estremecer das folhas das amendoeiras jovens. E o dia fechasse as suas vozes para que tudo pudesse começar de novo, desde as raízes, desde as primeiras sílabas dos primeiros nomes.

quinta-feira, maio 26, 2005

As suas sílabas


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Das tangerinas, em fins de Maio, permanece a memória de uma luz que vem ainda do Inverno, desenhada na cal.

quarta-feira, maio 25, 2005

O levante

O rumor do levante, de novo. Um ligeiro estremecer da terra. Como se as águas subterrâneas viessem à superfície. Como se subissem pelas raízes das árvores e fizessem estremecer as suas folhas. Como se essa vibração atravessasse depois a península. Como se o ar, por instantes, ficasse também ele sujeito à ondulação do sudeste. E no entanto não houvesse um único movimento para lá do movimento das águas do mar; essa ondulação que durante a noite apenas se pressente pelo rumor subterrâneo das nascentes.

terça-feira, maio 24, 2005

O tempo


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Agora que os últimos albricoques foram colhidos, talvez seja bom recordar o que eram os frutos antes de serem frutos: uma flor minúscula, perfeita e efémera, sabendo já que tudo é tempo, a passagem do tempo.

O sino de S. Romão

O bater das horas no sino do campanário, de acordo com a legislação em vigor, é uma actividade ruidosa. Sujeita a coima e contra-ordenação. O representante da lei aclara os termos do decreto. As pessoas juntam-se, uma senhora insiste «qual barulho qual quê, o sino até nos faz companhia». Mas como explicar que o mundo rural está permanentemente sujeito a coima e contra-ordenação? Que a memória e os costumes parecem estar permanentemente sujeitos a coima e contra-ordenação? Como discutir isto com alguém que tem a lei pelo seu lado? Como discutir isto com o queixoso – que, é um supor, comprou casa na envolvente e, em estando bom tempo ou havendo ponte, lá de tempos a tempos, vem passar um fim de semana ao Algarve e «exige sossego»?

segunda-feira, maio 23, 2005

O orgulho


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As nespereiras impõem o seu domínio numa luminosidade intensa. Mesmo se a manhã começa apenas a erguer-se, vagarosa, nos muros dos tanques; mesmo se já anoiteceu. Mas esse domínio é mais visível ainda nos dias claros, a meio da tarde, quando a luz própria das nêsperas parece decorrer sobretudo do orgulho.

O lume


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Os pessegueiros são jovens. Este ano produzem pela segunda vez. Os frutos amadurecem devagar a esta luz ainda leve de fins de Maio. A pele ligeiramente porosa que apetece tocar até sentir esse lume na ponta dos dedos.

domingo, maio 22, 2005

Cada coisa a seu tempo

Aqui se há-de também contar a história de como um projecto de agro-turismo não recebe os apoios comunitários previstos na legislação em vigor, pela razão simples de que os Serviços do Estado português não aprovam a parcela de projectos a que o próprio Estado legalmente se obrigou a aprovar, e que permitiriam o apoio, no Algarve, ao turismo sustentável. A história repete-se. Porque o agro-turismo não acrescenta betão ao betão pré-existente. Porque não determina pressões sobre os recursos hídricos. Porque prevê a manutenção e a valorização dos valores da Paisagem. E isso não é bom.

Mas cada coisa a seu tempo.