quarta-feira, março 30, 2011

[regressar]

regressar
como se fosse possível desaprender

como se cada objecto pudesse ocupar de
novo o seu lugar próprio

como se pudéssemos desligar de
cada uma das coisas antigas
os nomes que agora
lhes damos

regressar
como se o conhecimento não tivesse movido
o que chegou a pertencer-nos
para um espaço que agora é exterior
a nós mesmos

regressar
como se pudéssemos ainda ambicionar a ignorância

tocar a água fria dos tanques
e não saber de onde vem
a água

[segirei, 2]

o fumo da lareira já nem sai dos telhados
são onze da noite
não há um único movimento nas
ruas e nos quelhos

a neblina subiu do rio
parece suspensa de fios invisíveis um
pouco acima das
pedras irregulares
do largo

se alguém gritasse
se alguém corresse na encosta com um archote
se alguém viesse à janela a
estender a colcha da infância
talvez o tempo retomasse
vagarosamente
o seu novelo espesso
de labirinto

[segirei, 1]

jcb

[era no inverno]

era no inverno
lá fora o granizo espelhava-se no pavimento
dos pátios
embrulhávamos as pedras aquecidas nas
folhas do primeiro de janeiro
pedaço de fogo guardado nas mãos
contra a obscuridade
das manhãs frias

era tudo ainda tão recente
o império desenhado nos mapas das
províncias ultramarinas
as linhas dos caminhos de ferro
os nomes das serras
os rios da metrópole que nasciam
em espanha

nos jogos do recreio
as meninas queriam ser enfermeiras
ou hospedeiras
de bordo
os rapazes queriam ser tropas
o benfica ganhava os jogos quase todos
do campeonato
nacional

era no inverno
levávamos para a escola as
pedras aquecidas
era no tempo dos emigrantes
e dos aerogramas

quinta-feira, março 24, 2011

[primeiro/ depois]

primeiro achou que não era com ele

depois tirou um retrato
e reparou que o retrato
era igual a todos os retratos

depois olhou-se ao espelho
e viu com sobressalto
que o seu rosto
era igual
a todos os rostos

quarta-feira, março 23, 2011

[uma teoria]

Um doutorando da universidade de oxford
defendeu em 2006 a tese
de que o declínio das civilizações
está muito directamente associado
às quantidades de lixo
que produz.

Era uma teoria
em que acreditava tanto
que perdeu a bolsa de investigação
por se recusar a preencher um impresso
na secretaria dos serviços académicos
explicando não haver alternativas

os formulários electrónicos
produziam um lixo
ainda mais nefasto.

Não o vejo há muito
éramos velhos amigos

sei apenas que regressou ao yorkshire
para viver numa quinta
que era dos avós

sem mail
nem caixa postal.

segunda-feira, março 21, 2011

[porque a ciência não é mais do que pensamento]

porque a ciência não é mais do que pensamento
temiam os números e a prova
temiam a evidência de uma lei que
pudesse demonstrar a ausência de nexo
entre a chuva imprevista ou um dia de sol
e o livre arbítrio
do poder

por isso espalharam cinza sobre as ruas e as praças

e passou o tempo
e já quase não há memória do tempo em
que se praticava o estudo das ciências naturais
e se escreviam poemas nas paredes
a fazer
perguntas.

domingo, março 20, 2011

[no sul/ a arquitectura]

jcb




a criança ficava a olhar
a luz misturada aos ramos das árvores
ao verde e ao castanho da terra
a poisar exausta nas açoteias das casas
a subir os degraus como se finalmente os
dias e as noites
pudessem equivaler-se

no sul
a arquitectura é a luz desatada a
meio da tarde nos troncos das amendoeiras jovens
a sombra que a ilumina pelo lado de dentro
em vez das palavras

a criança ficava a olhar
estendia os braços a procurar na parede
o espelho das imagens verdadeiras.

sábado, março 19, 2011

[outra vez a terra]

outra vez a terra
o imperscrutável som do puro veio da água
isso que parece afluir aos dedos como cinza ou
obscura semente
isso que mistura
o antes e o depois da música

éramos crianças e subíamos aos muros das propriedades
delimitávamos o mundo em
linhas a direito nos campos lavrados
uma árvore
esse reduto defensivo imune ao
correr do tempo
a essa sombra nos acolhíamos nas tardes muito
quentes dos meses de junho
apenas para respirar

outra vez a terra
o som do puro veio da água
a memória vem do único lugar onde nunca soubeste
adormecer.

sexta-feira, março 18, 2011

[era no tempo]

a procissão
os tabuleiros das carnes assadas
os anjinhos com os moncos dependurados e
as asas presas aos ombros por alfinetes de dama
o baile
a música dos altifalantes

era no tempo do júbilo
era num tempo de escassez
era no tempo antes da Crise
os risos verdadeiros desenhados para os retratos
a preto
e branco.

[a/ linha estreita]

olhava indistintamente a
caixa das sementes ou as estrelas
a mesma matéria feita de
um lume que continua a arder
depois da rarefacção
do ar

às vezes ficava à varanda a olhar a noite
era no inverno
puxava com as mãos a
linha estreita que separa a terra e o céu
o mesmo rumor

a mesma voz indecifrável
como se viesse das páginas
dos livros
de romance.

[alguma coisa]

alguma coisa batia com força
nos tampos de madeira das carteiras
nas continhas do ábaco
no branco do giz sobre o quadro de ardósia

o tempo é essa matéria vil
que nos separa da memória do
cheiro dos livros das primeiras letras
do rumor do vento nos
vidros pequenos das janelas da escola

alguma coisa batia com força no mais fundo da infância
aí procuramos ainda hoje o poema
uma razão para não temermos a sombra ou a tempestade
o arame onde estender a roupa que
nos fica apertada nos braços.

quarta-feira, março 16, 2011

[os objectos antigos]

olhar os objectos antigos
sem que a memória devolva os seus usos
como se acabassem de ser construídos
como se não houvesse ainda uma função que
lhes estivesse destinada

como se conhecêssemos já um gesto e
tivéssemos que procurar a mão
que haverá de fazê-lo.

sexta-feira, março 11, 2011

[pedia que nos afastássemos]

pedia que nos afastássemos
trazia a vara das nascentes
puxava as mangas da camisa acima dos cotovelos
concentrava-se
não há outro mistério
outro milagre
à face da terra

a vibração da vara das nascentes
a desenhar o mapa dos terrenos de herdeiros
o veio subterrâneo
da água.

[misturávamos/ as uvas]

misturávamos
as uvas
e as bagas do arando

ficávamos em silêncio
a escutar o rumor dos arames das vinhas
deixávamos erguer-se sobre as mesas
o odor dos frutos vermelhos
dos bosques

as tardes de domingo
suspensas de quase nada

um gesto
uma palavra
o voo de um pássaro podiam
fazer ruir
as paredes das casas.

[os anjinhos]

os anjinhos das procissões
cansados
cheios de sede
pareciam apenas
crianças
verdadeiras.

quinta-feira, março 10, 2011

[quadra ao gosto popular]

olho a fotografia de grupo
onde nunca apareceste
e é como se apenas tu
estivesses no retrato.

quarta-feira, março 09, 2011

[lembro-me/ das tuas camisolas]

lembro-me
das tuas camisolas todas

eu chegava a ter frio
só para que pudesse
vesti-las.

[imagina/ que escrevias]

imagina
que escrevias um poema de cinco
em cinco minutos
e que morrias disso
não propriamente do coração
não propriamente das transaminases
mas de um problema de métrica
de uma rima excessiva
que crescesse dentro de ti
como uma pedra
nos rins.

[às vezes/ o tempo apaga]

às vezes
o tempo apaga todas as imagens
a tua bicicleta vermelha comprada no miranda
a noite em que uma estrela cadente
ficou poisada nas tuas mãos
durante quase uma hora

e ninguém acreditava

a filarmónica tocava no coreto
havia quem dançasse ao ritmo certinho da música
como se mais nada existisse
como se o mundo não estivesse a nascer
no lugar exacto
em que as mãos de um
tocavam as mãos
do outro.

[os dias separavam]

os dias separavam as palavras
e os gestos
o que dizíamos
e o que queríamos dizer

mesmo que trouxesses os teus cadernos
e os lápis de cor
era como se os desenhos
ficassem sempre
por fazer.

[trazias a água]

trazias a água num cântaro
era no tempo em que os assessores
ainda não tinham fechado
as escolas primárias
nem os centros de saúde
nos lugares mais afastados
da província

a fotografia mostra as duas casas
a seguir ao tanque
deves lembrar-te dessa tarde de verão
em que subimos a escaleira
a correr

no pátio havia uma torneira

mas não era dessa água
que queríamos beber.

[as mulheres traziam coisas à cabeça]

as mulheres traziam coisas à cabeça
coisas inexplicáveis
um cântaro iluminado
a flor da urze
um rumor que parecia vir das nascentes

equilibravam-se como se saíssem de
um quadro de vermeer
de um fotograma
de um relâmpago
que ainda hoje
nos cega.

[deixar/ que sejam as palavras]

deixar
que sejam as palavras
a levar o vento
a estender nos arames dos
pátios os segredos do inverno
a espalhar as fotografias nas mesas da cozinha
a misturar as certezas e os enganos

deixar
que sejam as palavras
a esconder o teu rosto por
detrás de camadas de poeira sucessivas
ou por detrás das cortinas das janelas
quando o verão irrompia
como se fosse
o último.

[os rios só existem]

os rios só existem nos mapas das províncias
nos quadros de ardósia
da escola primária
onde se misturavam estuários
e afluentes

lembro-me de desenhar um rio
e esse rio ter o teu nome

e eu acreditar que não havia outro rio
a cruzar os continentes.

[nas colinas]

nas colinas
havia o palco de um teatro
estrados e máquinas de luzes
panos de correr

treinávamos durante o inverno
líamos os textos
ensaiávamos
chegámos a acreditar no estrangeiro

mas quando chegavas
esquecia-me sempre
das frases.

[escrevíamos a lápis]

escrevíamos a lápis
podíamos mudar as versões
dessa história
bastava apagar as palavras
uma linha
depois outra

e no entanto
era como se o teu nome
ficasse marcado na parte de trás das folhas
dos cadernos

como quando
escrevíamos com medo que a caligrafia
traísse o que queríamos dizer
ou desenhávamos um barco

mesmo que apagássemos os desenhos
ficava sempre
essa marca
imperecível
como uma memória
dos erros.

[lembro-me]

lembro-me
de haver um fio que juntava
a água e o coração

lembro-me de chover
dias inteiros
para que o inverno ficasse na memória dos livros
para que as nascentes se aproximassem das casas
e pudéssemos beber
em vez de morrermos de frio

lembro-me
de haver um fio
que ligava o corpo
às suas próprias
mentiras.

[hoje sei]

hoje sei
que estivemos tão perto
de ter quase tudo

que era possível ainda regressar ao largo
deixar a mão poisada na superfície plana
da água do tanque

e esperar
os milagres.

terça-feira, março 08, 2011

[já nem pergunto]

já nem pergunto
por ti
aos amigos

chego a pensar que nunca exististe
que esta cicatriz junto ao coração
não foste tu
que a desenhaste
só de respirares a meu lado

se hoje te visse
a descer a caminho do largo
talvez nem acreditasse
que um dia foste tu
que disseste o meu nome
a tremer
de frio.

segunda-feira, março 07, 2011

[ainda hoje]

nunca digas
«para sempre»
meu amor
como disseste uma vez
já nem te lembras

a manhã entrava
pela janela do quarto

estávamos tão próximos das despedidas
e a luz era tanta
que ainda hoje
nos cega.

[há coisas/ tão difíceis]

há coisas
tão difíceis de compreender
o modo como perguntámos
«dás-me um cigarro»
quando o amor
parecia ainda imperecível

o modo como nos despedimos
de tudo o que chegámos a imaginar
que nos haveria de pertencer
para sempre.

[se pudéssemos]

Se pudéssemos desviar de nós
por um momento
os cuidados do amor
essa atenção quase permanente que o amor exige
se pudéssemos por um momento
deixar ao amor apenas o tempo
que ao amor pertence
um perfume
um passeio nas florestas de bétulas
um copo de vinho em tabernas afastadas do mundo
a camisola que trocamos no inverno
os mapas onde desenhamos todas as viagens

se pudéssemos por um único instante
desviarmo-nos do que o amor exige
para nos concentrarmos apenas
no que é do amor
sem a exigência
de sermos puros.