segunda-feira, abril 25, 2011

domingo, abril 24, 2011

domingo, abril 10, 2011

[o espectáculo e os bens comuns]

era no tempo em que
o espectáculo e os bens comuns
se misturavam numa rede feita do novelo dos interesses
era no tempo em que
a propaganda e a encenação
traziam os estrados e os palcos decorados para
as praças
e os largos

era no tempo da cenografia
uma ave saía das mãos abertas do
mestre de cerimónias
num exercício de prestidigitação antigo
a música incitava à ênfase

as pessoas olhavam
deslumbradas
e olhavam de novo
e de cada vez que olhavam era
como se o verniz dos púlpitos
fosse estalando
até se ver o tabopan e a fórmica
de que
na realidade
eram feitos

sábado, abril 09, 2011

[pareces-me um gajo porreiro]

A nossa história, feita de cruzamentos e desencontros, começou na sala dezanove do Liceu. Na primeira aula do primeiro trimestre. Penso que éramos as únicas novidades numa turma onde toda a gente se conhecia dos anos anteriores. Ela vinha de uma escola nãoseidonde, eu vinha do ciclo de Vidago. E quis o destino que ficássemos juntos, a partilhar a mesma mesa com tampo de fórmica de um amarelo debotado. Meti conversa no intervalo grande da manhã. Sentados no parapeito da janela em frente à sala de aula. Eu com aquele ar de aprendiz de artista de cinema a dizer-lhe como a achava fabulosa e a perguntar-lhe o nome. «O meu nome foi dito na chamada. Se o não recordas é porque não te interesso.»

Acabara de cumprir dezassete anos e o meu insucesso com as mulheres era de uma evidência que cheguei a temer que estivesse inscrito na testa, ou nas faces, em letra de imprensa. Mas andava nos treinos, começava a esboçar umas tácticas. Não estava era preparado para lances tão decisivos e dramáticos, para cortes tão radicais. Atrevi-me, ainda assim, como naqueles momentos em que acreditamos que é tudo ou nada. E disse-lhe: «Claro que me interesso. Nunca vi uma rapariga tão bonita na minha vida.» Ela ficou em silêncio. Sorriu apenas. Como se sorrisse para dentro dela. E entrámos, ao toque, para a aula de Ciências Físico-Químicas.

Só ao chegar a casa, já noite, já depois de apanhar a camioneta da carreira no Jardim do Bacalhau, já depois de passar Curalha e Casas Novas, já quando bebia uma imperial no Jeremias com o Zé Manel, encontrei o bilhete no bolso do casaco. Só podia ser dela. Só mo podia ter deixado durante as aulas. Dizia apenas: «Amanhã 17 horas Adega Eiffel.»

O dia seguinte passou a correr. Às cinco em ponto entrei na Adega do Faustino. A pista parecera-me fácil: havia a conhecida história que atribuía a Eiffel, ou à sua escola, o projecto do Faustino. Ou, pelo menos, da deliciosa estrutura do tecto, desenhado numa teia elegante de ferro e madeira. E, de facto, ela lá estava, com a Teresa, ao fundo, num entusiasmo ruidoso que só não era superior à inépcia demonstrada no lançamento das pequenas malhas do jogo do sapo. O orgulho, no entanto, deixou-me ao balcão, apenas lhes acenei num cumprimento vago, pedi um branco traçado. Tinha a certeza de que ela não tardaria a aproximar-se, a desnovelar conversa, a retomar o fio do mistério que começava a alvoroçar-me. Mas não. Passaram-se uns cinco minutos, uns dez minutos quando muito, e já elas saíam, rindo, cúmplices, quase sem se dignarem olhar-me. Eu não contive um «filha da puta» em voz alta. Mas elas já não podiam ouvir-me. E os meus parceiros de balcão não esboçaram um gesto que demonstrasse terem achado desusada a terminologia. Pedi a conta. E, com os trocos, recebi um envelope. «Pediram-mo que lho entregasse.» A caligrafia era a mesma do bilhetinho inicial: «Para o José Carlos.» E, no interior, um novo recado em papel-manteiga fez-me regressar o sobressalto: «Mereces-me se adivinhares o nome da minha mãe. Tem doze letras. ‘Anagrama’ é a palavra-chave. Disporás de sete pistas. Talvez descubras antes da última. Não fales comigo até me dizeres as duas palavras desse nome próprio com doze letras.»

E foi assim. Durante quase dois meses, a intervalos irregulares, recebi sete mensagens nas situações mais inverosímeis: duas chegaram-me por correio normal; uma foi-me entregue num pavilhão do Tabolado, na feira dos Santos, por uma moça que fazia os trocos das fichas dos matraquilhos; uma outra deu-ma a Adelaide do Jeremias com a explicação de que a tinha deixado ao meu cuidado o viajante dos finos; e as restantes foram-me aparecendo na mochila de ginástica e nos bolsos dos casacos. Da sétima mensagem dei-me conta já em casa, ao deitar-me, no último dia de aulas antes das férias do Natal.

Tinha, portanto, sete pistas para decifrar um enigma. Os recuos iam sendo mais que os progressos; mas o desânimo não chegou nunca a ultrapassar os repetidos momentos de júbilo sempre que avançava na desmontagem das cifras.

A primeira pista remetia de forma óbvia para um topónimo: «As árvores das amoras são um dos lugares»: Amoreiras, claro. A segunda também não foi difícil de resolver: «Um SEREME invertido no concelho de Valpaços» invocava, naturalmente, a igreja de Santa Maria de Émeres (eu lia umas merdas). «Os cachorros de Leocádia» permaneceu durante muito tempo imune à decifração. «Um campanário no Calvo Grande» deu alguma luta; mas, com a ajuda do meu amigo Luís Moura, cada vez mais entusiasmado com os enigmas e seduzido pelo mistério em que eu o tornara cúmplice, cheguei a outro topónimo: Calvão. Havia mais uma pista fácil: «Com mais um S era um Osso» só podia significar Oso, embora isso não nos dissesse coisa absolutamente nenhuma. E foi ainda o Luís Moura, muito calhado com a história da cidade, que me explicou que «É a igreja que foi do Bispo Idácio» só poderia significar uma referência à Igreja Matriz de Chaves, ou de Santa Maria Maior. «Perdizes de São Miguel», enfim, era pista com que não atinávamos: tempo de colheitas, riqueza cinegética?

Mas na noite de consoada, à mesa cheia de copos do café do Jeremias – com o fogo lá fora a subir as labaredas à altura dos fios dos telefones e a pô-los em risco –, o Luís Moura, às tantas, bateu com violência no tampo da mesa, virou-se para a Adelaide e disse, quase num grito: «Cerveja para todos.» Puxou da folha A4 onde, há vários dias, íamos alinhavando nomes e frases. Eu quase não respirava. Sentia o desassossego de quem se aproxima do único segredo do mundo, da revelação, de um corpo que não tardaria a pertencer-me.

Eis as notas que era possível compor:

1) Amoreiras. 2) Santa Maria de Émeres. 3) Leocádia [igreja de Santa Leocádia? Ver se a igreja tem cachorros ou gárgulas]. 4) Calvão [ver se a igreja de Calvão tem um campanário singular]. 5) Oso [ver…]. 6) Igreja de Santa Maria Maior. 7) Perdizes?/São Miguel?/Vilar de Perdizes/Igreja de São Miguel?

Não queria acreditar. «Meu Deus, parece definir-se um padrão: igrejas.» «Claro», respondeu o Luís Moura, já calmo, um sorriso a rasgar-lhe o rosto. «Maria Mantela. Estas pistas parecem remeter para a lenda de Maria Mantela. É só um momento.» E desapareceu. Uma hora depois lá estávamos, de novo, de roda das pistas e de um artigo do padre Lourenço Fontes. «Não conheces a lenda de Maria Mantela?» Eu que não. E então o Luís explicou-me.

Pelos primeiros anos do século XIV um abastado sujeito da Vila de Chaves, passeando com a esposa, encontrou uma mulher com dois filhos gémeos que lhes pediu esmola. Fernão Gralho, assim ele se chamava, condoeu-se da pobre. Mas Maria Mantela, a esposa, colocou em dúvida a honestidade da mulher, porque nenhuma mulher de um só homem poderia gerar de uma só vez mais que um filho. Acontece que, alguns meses depois, Maria Mantela, na hora do parto, teve, um após outro, sete filhos. Com o marido ausente numa caçada, e aflita lembrando-se do que dissera à pobre mãe de duas crianças gémeas, encarregou a ama de lançar às águas do Tâmega seis dos filhos que acabara de parir. Estava a ama a meio das poldras quando apareceu Fernão Gralho e descobriu o que se passava. Ordenou à ama que regressasse a casa e informasse a senhora do cumprimento das ordens. Fernão pegou nas seis crianças e confiou-as, em diferentes aldeias, a diferentes amas. Dez anos depois solicitou à esposa que preparasse um lauto banquete para festejar o Ano Novo com seus especiais convidados. À mesa, quando Maria Mantela chegou com o banquete, estavam sete jovens todos iguais em feições. «Qual deles é o teu filho?», perguntou Fernão.

«Maria Mantela. As pistas remetem para a lenda de Maria Mantela» – insistia, eufórico, o Luís. «Estas sete crianças tornaram-se padres. E cada uma delas acabaria por fundar uma igreja com a invocação de Santa Maria: Santa Maria de Moreiras, Santa Leocádia, Santa Maria de Calvão, Mosteiro de Oso, Santa Maria Maior, Santa Maria de Émeres, São Miguel de Vilar de Perdizes.»

O resto das férias passou vagarosamente. Desesperadamente devagar. É claro que faltava decifrar o segredo final: o nome da mãe da minha apaixonada. Mas isso parecia agora o mais fácil. Como dizia o bilhete do Faustino, ‘Anagrama’ era a palavra-chave. O segredo final só poderia ser um anagrama de Maria Mantela. Peguei num lápis. Papel. Risquei letras, alinhavei palavras. E depressa cheguei ao único nome possível: doze letras: Mariana Telma…

No intervalo da primeira aula do segundo trimestre, no primeiro intervalo da manhã, puxei a minha apaixonada para um canto. «Decifrei o segredo. A tua mãe chama-se Mariana Telma.»

Ela olhou-me semicerrando os olhos. Como se a tivesse surpreendido. Como se não esperasse a minha capacidade de decifração dos enigmas. E respondeu:

«É verdade. Acertaste. Mas vens tarde. Fernão Gralho escondeu o segredo durante dez anos. Tu demoraste vinte dias a descobri-lo. É um avanço. Mas há uma semana que o teu amigo Luís Moura me revelou a resposta. Acertou primeiro. Temos estado juntos. Passámos juntos o fim de ano. Somos namorados. Talvez me venha a arrepender, não digo que não: tu pareces-me um gajo porreiro.»




publicado originalmente aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/

quarta-feira, abril 06, 2011

[era preciso que alguém]

era preciso que alguém descesse
ao mais fundo de um poço
que alguém tirasse da cintura a adaga dos interesses
e a espetasse nos corações mais
puros

para que a divindade
se cumprisse
era forçoso que a imperfeição
pudesse redimir um homem

era preciso que judas traísse
misturando no vinho dos cálices
a flor de cinco pétalas
do adorno

e houvesse uma maçã e uma serpente
e um jardim
como símbolos
de tudo

[a história da arte ocidental]

a história da arte ocidental
tem início
nos símbolos
desse mural de uma cena de caça
em que a representação do real
está pela primeira vez
contaminada
pelo que sabemos
ou pela inquietude
do que procuramos saber
além das evidências

segunda-feira, abril 04, 2011

[nos países democráticos]

nos países democráticos
a cultura levou a
que os jogos substituíssem as guerras

os danos
hoje
são irrisórios
a propagação da estupidez quase não tem efeitos
colaterais

também por isso
o futebol é um dos melhores exemplos
do avanço
da civilização

no iraque morreram milhares de homens
na líbia é o que estamos vendo

hoje
na luz
deu-se a ocorrência em relatório de oito detenções
e parece que não mais de catorze ou
quinze adeptos
foram parar às urgências
do santa maria
com escoriações
ligeiras

sábado, abril 02, 2011

[não guardes os medos]

não guardes os medos e o coração na mesma gaveta
não deixes o ruído de uns
intrometer-se onde
no outro a luz é quase de água
não escolhas entre duas verdades
não deixes acesas durante a noite as lâmpadas
tão difusas
dos provérbios

às vezes é preciso queimar as páginas dos
livros dos usos
às vezes é preciso olhar de frente a luz
da flor da dedaleira

essa que dizem que cega
só de nos aproximarmos
dela

sexta-feira, abril 01, 2011

nota

[Seis poemas inspirados na reunião da máfia norte-americana que teve lugar em Havana, no Hotel Nacional, entre 22 e 29 de Dezembro de 1946.]

[um hotel em havana: dezembro de 1946]

1.

Não é consensual o inusitado elogio
na conferência inaugural
ao sistema democrático:
«a eleição livre de San Martin
é uma espécie de caução.» Mayer
Lamsky explica pacientemente
que não há lugar a um revólver
onde a regra instituída puder
substituí-lo com vantagem
dos interesses.


2.

Vito Genovese tinha acabado de fazer
quarenta e oito anos e era cada vez mais óbvia
a assimetria do seu rosto. A recepcionista
do Hotel Nacional olhava-o fascinada
a imaginar até onde poderia levá-lo essa quase
afável metade esquerda sem um vinco
e sem o arqueado da sobrancelha
que do outro lado parecia erguer-se em permanência
na direcção dos desastres. Às dezoito e quinze
do dia vinte e quatro de dezembro
de mil novecentos e quarenta e seis
Lucky Luciano veio impaciente do terraço da suite 212
a blasfemar contra os atrasos.
E foi o próprio Mayer Lamsky que ligou
aos gritos para a recepção a perguntar se alguém
vira por acaso Vito Genovese. Mas a menina
que atendeu não saberia como explicar
que talvez a reorganização mundial dos mercados
de narcóticos e jogo clandestino
tivesse que esperar mais um pouco
até a colega sair da salinha das bagagens
onde procurava a gritar de prazer
os segredos da face esquerda
de um rosto.


3.

Um jovem fascinado com as glórias
do mundo afastou-se do grupo
e saiu pela porta de serviço
do piso inferior.
Atravessou os jardins
e virou à direita a caminho do Malecón.
O silêncio e uma calma imprevista começavam
enfim madrugada adentro
a desenhar-se depois da música e dos risos
voláteis da noite. O jovem encostou-se
ao paredão a fumar um cigarro e a deixar
os olhos correr atrás da espuma
da ondulação de um barco a deslizar
vagarosamente sobre as águas
na direcção do Castillo del Morro.
Quando regressou ao Hotel Nacional
viu Lucky Luciano num dos sofás da entrada
com a cabeça enterrada nas mãos
e imaginou que por um instante poderia
atravessá-lo a nostalgia da invisibilidade
passeando sob um céu estrelado da Sicília
nos campos de oliveiras envolventes do pequeno
povoado de Lercara Friddi
como se até os assassínios de Masseria
e Maranzano participassem já de um
mesmo plano de regresso
a um lugar que deixou de pertencer-nos.
Mas Franck Sinatra estava com
sono e subiu ao quarto e deitou-se
a pensar nas glórias do mundo
e a reflectir sobre coisas tão abstractas
como o sentimento da honra.


4.

Era de supor que a conciliação
ou a procura de bases mínimas
de consenso não exigiriam esforços
num grupo de conferência de interesses comuns
fechado à chave contra o ruído
das regras. Mas Joe Bonanno
está exausto e vem por instantes
sozinho aos jardins a procurar
um intervalo na mediação
a que é chamado em permanência por
uma antiga tradição de consensos.
É o penúltimo dia do encontro
e será preciso ainda mediar
os conflitos que parecem levar
Luciano e Genovese a
uma irremediável dissensão.
Ao fundo emergem como um espelho
as águas do Atlântico. Joe
Bonanno fecha os olhos e depois regressa
ao interior do hotel com a sensação estranha
de que a transparência dessas águas
o persegue ainda a caminho
do salão de banquetes como
as luzes de um casino
onde não houvesse
cartas marcadas.


5.

Em Havana há sinais de que
a oposição a Trujillo parece irradiar
como um vírus. Como se os países deixassem
de ter uma fronteira delimitada nos mapas antigos
e se estendessem pelos vales
e pelas cordilheiras
definindo novos territórios. Como se Cuba
ou Bolívia ou Porto Rico
fizessem parte de uma mesma
inverosímil geografia. Isto defendia um jovem
universitário do segundo
ano preparando-se para controlar
a Federação de Estudantes.
Mas em nenhum momento
o nome quase desconhecido de Fidel
de Castro Ruiz foi pronunciado
durante as várias
sessões da conferência
em que se discutiam casinos e narcóticos
e as potencialidades nunca verdadeiramente
relevadas da indústria dos têxteis.


6.

Yoani explicou às amigas
que Albert Anastasia lhe pareceu
um homem igual a todos os outros.
Que provavelmente o poder
e a desumanidade
não serão relevantes
nas coisas
do amor.