quarta-feira, março 26, 2008

23.

Ainda antes desse ruído sobressaltado se anunciar na curva do Alto do Barco de Pedra, e depois descer num clamor a caminho dos Campos das Trindades, Margarida adivinha a chegada da camioneta da carreira: no imperceptível estremecer das folhas do salgueiro; no bater das asas de um milhafre que se levanta sobre a cumeada; na ondulação ligeira da água do tanque. São dez da manhã. Não há uma nuvem. Margarida acordou cedo, a luz ainda indecisa na colina: se pode chamar-se dormir a esses minutos breves em que uma pequena paz lhe permite cerrar as pálpebras. Durante a noite, durante a noite toda: o ruído da madeira das traves da cozinha, da hera a crescer nas paredes da casa, das águas de lima, da luz do quarto minguante poisada nas telhas e no chão de granito da eira, da nascente da mina: durante toda a noite, dia após dia, ano após ano, Margarida não dorme. É assim há três anos: ouve o mais leve ruído a crescer do interior da terra, da superfície das águas, da folhagem, da ramagem, do voo das aves. Um alarido às vezes insuportável. Há três anos que praticamente não consegue dormir.