sexta-feira, março 28, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 17: antes do acordo ortográfico

não queres nada
o ramo de ser o melhor no dia das colheitas da
flor-de-púrpura-das-sete-pétalas-desencontradas
o prémio de atirar mais longe no malhão a pedra-do-prémio
não queres nada
não queres vencer no terreiro do largo do meio-da-aldeia
não queres a
memória gloriosa das mulheres que traziam cântaros castanhos à
cabeça com os seus contornos irregulares contra
a luz excessiva
não queres sucumbir ao poder da aliteração
não queres o disfarce das máscaras dos domingos depois dos
horários litúrgicos
não queres as flores dos panos de linho em cima da cómoda
não queres a página do jornal com o círculo desenhado a tinta-da-china
não queres os líquidos aquecidos nos jarros de cerâmica
não queres a ardósia ilusória dos alicerces das casas
não queres nada
queres o vaso minúsculo da água-das-fontes
queres a flor desarmada da urze-branca dos primeiros meses
queres a toalha estendida na mesa-dos-encontros
queres a luz de ser ainda o outono e de caírem as folhas das
árvores vagarosamente nos limites mais próximos dos meses de novembro
não queres nada
vem de tão longe o desejo de erguer nas varandas o
nome dos primeiros meses
o incombustível desígnio das nascentes iluminadas pelo lado de dentro
a leveza das coisas
o incêndio dos telhados vagarosos
não queres nada
não queres a vantagem dos nomes acabados de dizer em voz alta
não queres o álbum das fotografias dos casamentos e
dos baptizados antes do acordo ortográfico
não queres abdicar da etimologia
não queres abdicar do pão a levedar no forno das pedras incandescentes
não queres abdicar da água-dos-herdeiros
não queres nada
queres que se percam no interior de si mesmos
queres que um dia os senhores dos impostos nem saibam fazer as contas
quando for o tempo da contabilidade
dos desastres inumeráveis

terça-feira, março 11, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 16: a hélice invisível

o mecanismo é o mesmo
nas golas dos açudes
à superfície
é quase invisível o círculo a transformar-se em elipse
mas depois a força helicoidal da massa de
água puxa os corpos para o buraco da descarga de fundo
como a acção de um íman sobre objectos metálicos minúsculos
o mecanismo é o mesmo
pensamos sempre que vemos o que não vemos
é uma tarde vagarosa com
a luz a atravessar os objectos
mas o buraco está debaixo de água e
é imune aos discursos das boas intenções
é refractário à sintaxe
é assim nas golas dos açudes
a hélice invisível puxa-te até ao fundo
primeiro parece apenas uma ligeira rarefacção do ar
depois sentes que a respiração é cada vez mais difícil
no último instante compreendes que
o buraco tem espaço suficiente para passar a cabeça
mas que é impossível
passar o resto
do corpo