quarta-feira, dezembro 18, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 5: os outros

é uma revelação
descobrir as modalidades do jogo de atirar as pedras
não há riscos
protege-nos a inimputabilidade
o segredo é estarmos do lado certo
e mudarmos de lugar quando o lado certo muda de lugar
atiramos as pedras com a legitimidade de quem nunca teve culpa de nada
porque a culpa é sempre dos outros
são os outros os culpados de baixar o ranking da república
são os outros os responsáveis pela electricidade estática
são os outros os culpados de nos ramos dos pinheiros fazer ninho a processionária
e as fotografias ficarem desfocadas nas festas dos aniversários
são os outros os responsáveis pelas baixas pressões
e pela proliferação das algas nos areais
nós limitamo-nos à ética
nós limitamo-nos a atirar as pedras justas nas modalidades diversas
a modalidade dos títulos nas primeiras páginas dos jornais
a modalidade das salas com acústica adequada à reverberação das sílabas ágeis
a modalidade das conversas nas mesas dos cafés
a modalidade do comentário equitativo
a modalidade do editorial a exigir a transparência
é quase uma revelação
descobrir como é fácil o jogo de atirar as pedras
contra os outros
os culpados de tudo

sexta-feira, dezembro 13, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 4: as colinas e os rios

olhar as pedras disparadas a capear a água das represas
e reflectir sobre o peso insustentável das coisas
a ausência a fazer sombra nas varandas dos inúmeros meses de novembro
a distância a esticar os arames das vinhas até à vibração interior
as despedidas a trazerem a humidade às fotografias guardadas nas gavetas das cómodas
o rosto a que nos encostávamos em agosto para não morrermos de frio
as colinas e os rios dos romances
os mapas das cidades que rasurávamos para nos podermos afastar das ruas conhecidas

um dia compreendemos que não temos mais nada senão o que perdemos
senão o que nem chegámos a ter
e procuramos de novo
o rosto dos primeiros versos
os cadernos de caligrafia
os trabalhos domésticos
uma criança a correr e a ideia de um sistema de justiça como um espelho que devolvesse as imagens puras
uma criança a olhar o azul dos montes e a ideia de um país que privilegiasse o mérito

e procuramos de novo um pouco da luz que julgávamos ter chegado a pertencer-nos
por uma espécie de direito consuetudinário
em que a hipocrisia dos poderes
apenas tinha a lenha abundante
onde havia de queimar-se

quarta-feira, dezembro 11, 2013

Louvor de Nadir Afonso

Nunca havemos de esquecer o fascínio
das contas de madeira do ábaco da escola
furadas para correrem em prumos metálicos horizontais:
era um pequeno ábaco e provavelmente
é possível decifrar uma parte do mundo
movendo-as com recurso às técnicas
de análise combinatória.

Todos os mistérios do universo se escondem
na matemática. Borges ensinou
que é possível escrever o Quixote
recorrendo a uma parte insignificante das
combinações possíveis das letras
do alfabeto. E Deus não O é senão
de conhecer o segredo de mover de uma só vez
as contas todas do infinito ábaco da orbe.

Assim uma árvore existe além dos ramos e das folhas
crescendo nas tardes quentes de Julho
por ter na geometria inscritas as suas pretéritas formas.
Há uma regra anterior ao crescimento do tronco
das alvíssimas bétulas de Segirei
ou dos freixos das margens do Tâmega:
apenas a essa regra e ao seu domínio subtil
responde o erguer desses cilindros perfeitos
contra o olhar e a cultura e
os coincidentes erros de percepção.

Era no tempo do Liceu de Chaves e pela primeira vez
nos perturbava a ideia de que a Arte
revertia da compreensão de fórmulas
intemporais. Sabemos hoje que a natureza e a paisagem
procuram ainda na geometria as suas próprias leis
e que o fascínio da raiz do codesso
vem de compreendermos que antes da luz e dos sais minerais
que antes do colo e da coifa
um quadrado ou um círculo se inscrevem por dentro dos seus nomes
pelo lado mais intangível e íntimo e profundo.


Abril 2009

NADIR 1920-2013

Nadir Afonso. Ponte d' Auteuil, 1962.

terça-feira, dezembro 10, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 3: a lenha do inverno

juro que não vou morrer de um ataque de coração
pode trair-me o fígado
podem os rins deixar de funcionar
pode um micróbio atacar-me o cérebro indefeso
porque de resto marco no chão a raia do distanciamento
olho a luz do fim da manhã poisada nos muros do cadastro
olho a sombra invertida dos planos de água inscrevendo nas paredes uma cronologia imune à fita regular da passagem do tempo
amanhece
anoitece
e tudo isso é superior a tudo
aos discursos dos assessores que medem a eficácia das palavras em folhas de cálculo
às manchetes do expresso e do correio da manhã
tão idênticas a procurarem diferenças onde há mais a unir do que a separar
deixo passar os automóveis nas avenidas largas
deixo passar o ruído dos comícios e as frases dos comentadores a abrir os noticiários
afasto-me de quem regressa à política para defender a legitimidade de se comprar um zeppellin de acrobacias
afasto-me da oposição que se opõe a tudo quanto se opuser à narrativa
afasto-me dos poderes que enchem balões com hélio comprado a prestações nas feiras de salvados
afasto-me de tudo
deixo que as cortinas dos bordados antigos separem o deve e o haver
corro as gelosias        
procuro no telheiro a lenha do inverno
o pão e o vinho
não espero os pareceres do tribunal constitucional
não me interessam as previsões do governo para o comportamento da economia no próximo semestre
limito-me a fechar a porta
a afastar-me do barulho
a afastar-me de tudo
a adormecer
a deixar que apenas o vento ou a chuva me sobressaltem ao ponto de me levantar do escano
a confirmar que o portão do pátio não ficou aberto
a rodar nos gonzos
durante a noite

sábado, dezembro 07, 2013

As Coisas que é preciso dizer. 2: as linhas das fronteiras

é quando os homens se dividem nas linhas das fronteiras e erguem bandeiras indecisas
uma pátria é às vezes um lugar onde se adormece nas noites da mudança da hora
às vezes é preciso desenhar nos mapas uma nacionalidade
um território onde seja possível dizer as palavras antigas em voz alta sem que cheguem do estrangeiro as ambulâncias voláteis da respiração assistida
às vezes é preciso recomeçar
bater com as barras de néon no discurso difuso dos orçamentos
acreditar que uma pedra pode ser uma ave
acreditar que uma sombra repete no chão o movimento vagaroso de uma nuvem
é quando nas fronteiras os homens se agasalham para não desistirem com a boca tapada por fios de arame
e ainda assim avançam contra os caminhos que parecem vir de longe em sentido contrário
se pudéssemos recomeçar um país
se pudéssemos reinventar uma linguagem
um rio seria o lugar do mundo onde mergulharíamos as mãos e as levaríamos ao rosto
para que amanhecêssemos mais perto das
nascentes da água

As Coisas que é preciso dizer. 1: o lume e o gelo

o amor de uma mãe por um filho
o momento preciso em que um filho regressa da guerra e entra no pátio da casa da infância
a carta que um filho escreve do estrangeiro a dizer que não há novidades e que as coisas apesar de tudo parecem encaminhar-se
o primeiro dia em que a mesa tem um lugar vazio
a chuva a escorrer dos vidros das janelas nos últimos meses de novembro como se repetisse as lágrimas de um filho ausente
a marcação da reunião das partilhas
as tardes imensas de domingo
a luz da água dos açudes derramada nas varandas
um riso
um choro
o lume e o gelo
um filho acabado de nascer
um filho que aprende a andar de bicicleta
o amor de uma mãe por um filho
uma árvore a crescer e as nervuras das folhas a erguerem-se nítidas como as linhas dos eléctricos das cidades antigas
desenhadas no chão