sexta-feira, janeiro 31, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 11: era uma civilização antiga

aguenta-se até ao gume mais afiado da faca do silêncio
aguenta-se sempre
aguenta-se até ao coração de pedra a
bater por dentro dos pássaros das migrações
aguenta-se até à ignomínia de compreender que
sucessivamente se alteram as regras a meio do jogo e
se esconde o mapa dos labirintos
aguenta-se sempre
de longe vem a narrativa dos sonhos desenhados em papel de cenário
de longe vem a narrativa da abundância
as crianças corriam nos panfletos de papiro com sorrisos de água
os homens dos senados moviam as pás dos moinhos com a máquina vibratória da
ocultação dos interesses
a retórica era uma das disciplinas mais avançadas dessa civilização antiga
mas a verdade é que se aguentava sempre
e aguentou-se até à memória de uma geração perdida nos
bosques indefinidos dos desencontros
até que o império começou a ruir a partir dos seus alicerces frágeis
altas colunas de mármore a desmoronarem-se nas arenas do circo
até as caravanas levarem os últimos grupos
e nos caminhos do império ficar apenas silêncio
e nuvens de poeira
que não assentaram ainda
que vão demorar séculos a assentar

segunda-feira, janeiro 27, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 10: o afastamento

há quanto tempo não regressavas aos campos alagados onde cresce a
flor das sete pétalas
e a luz exígua do inverno fica poisada nos muros de
pedra arrumada como se pudesse tocar-se
às vezes é indispensável o afastamento do mundo
às vezes é preciso um lugar onde seja possível regressar à voz inicial
às nascentes da água
ao lento tear dos fios deslaçados no ramo escuro das enxertias
às vezes é indispensável o afastamento do
ruído e dos resíduos de uma civilização que faz do luxo a
mais alta torre dos sonhos
que sustenta um sistema moral no
princípio da acumulação de materiais
um regresso ao que ainda podia ser
para que por um instante se juntassem o lume e a nuvem
e as palavras começassem a arder na
vagarosa oscilação dos símbolos
como se fosse ainda possível esse espaço de claridade a
partir do silêncio antigo das florestas
e as agências de agiotagem tivessem que fechar as portas
por falta de adesão
à realidade

quarta-feira, janeiro 22, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 9: a assimetria

no silêncio esconde-se às vezes o
barulho insuportável das sirenes das ambulâncias
um tremor de terra com epicentro nas condutas de água das
casas das famílias que rezam as orações da paciência
as pedras dos açudes a
ruírem pelo lado das reformas da idade
um céu difuso a reflectir o mapa da constelação dos interesses
a assimetria é sempre insuportável
é pior que o medo
é pior que um muro de escalada
é pior que ter frio
a assimetria faz erguer as palavras à altura dos símbolos
e isso é
como ter perdido tudo e
acreditar que é possível regressar a casa
às varandas da infância
ao que não tem ainda uma forma concreta
e no entanto permite dizer uma a uma as
sílabas dos
primeiros nomes do
mundo

quinta-feira, janeiro 16, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 8: castelos de areia

magnífica e terrível metáfora
a dos castelos de areia
erguê-los e saber que o vento ou a maré a subir
não deixarão torres nem ameias
não deixarão intacto nenhum dos panos das muralhas
e no entanto alguém ergueu um castelo
alguém desenhou numa tarde de verão a mais improvável das metáforas
a de um reino condenado à efemeridade e ao sonho de
ser erguido de cada vez que ruir
até a ruína e o poder se confundirem
como se uma realidade fizesse parte da outra
e fosse indispensável erguer sucessivos castelos de areia
até alguém olhar da praça e ver o seu retrato por detrás dos
vidros das janelas dos palácios
a sua imagem reunida nos pedaços dispersos das
torres levadas pelo vento ou pela água das marés do equinócio
até coincidirem as palavras e os gestos
até nada haver que separe a água e a nuvem
o pensamento e a consequência
até um castelo de areia ficar como a representação perfeita
do que não pode ruir
por se saber que alguém o há-de reerguer
de cada vez que ruir

As Coisas que é preciso dizer. 7: o natal

acreditemos por uns dias que é possível regressar ao coração desabitado dos bosques
à página em branco onde podemos escrever as
primeiras frases como se inventássemos uma gramática a
partir da desmaterialização dos conflitos
acreditemos por uns dias que é possível erguer nas praças a árvore dos significados
em vez do relógio difuso dos interesses
acreditemos por uns dias que é possível desviar as águas dos costumes
e acender o pequeno lume dos encontros
nasceu uma criança e é como se nos nascesse uma ferida no corpo
porque custa olhar o espelho que nos devolve o rosto sem as máscaras
porque custa olhar a
evidência da possibilidade da redenção quando já não acreditamos em nada
a não ser nas taxas de juro e
nas agências de rating
a verdade é que nasceu uma criança
e por alguns dias podíamos acreditar que é possível regressar às
nascentes da água
à página em branco dos livros da infância
ao coração desabitado dos bosques dos milagres

sexta-feira, janeiro 10, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 6: os sonhos

andamos tão perdidos no tempo
que nem os sonhos parecem resistir à terraplenagem devastadora das identidades
à arrematação de selos e telégrafos
ao mísero cálculo de probabilidade dos anos de júbilo
um sonho
a caligrafia trémula de uma carta entregue em mão nos
pátios das afastadas casas da província
as velas erguidas dos barcos dos desenhos das crianças
as ruas de kiev invadidas por jovens que
recusam a contabilidade sob condição das promessas de um império
coisas simples como a folha de um álamo branco
coisas simples como rasurar o ódio e decretar o privilégio das diferenças
de longe vem a metáfora dos nossos tempos tão errados
na época das anémonas de néon
e das lâmpadas acesas nos caminhos de serrim dos presépios
jang song thaek foi expulso de uma reunião do politburo
e depois executado
por ter ousado «sonhar sonhos diferentes»