sábado, março 29, 2008

29.

É escuro ainda; um escuro atravessado pelo silêncio do vale. No escuro da noite, no escuro atravessado pelo silêncio do vale, Ana Ferreirinha levanta-se, veste-se, lava as mãos e a cara no lavatório de zinco. Depois senta-se no escano. Depois espera. Depois a luz começa a entrar em casa, a definir os contornos da masseira, da mesa de comer, da cama de dormir. Depois a luz começa a espalhar-se pelo chão de terra; depois sobe pelas paredes de pedra arrumada; depois um feixe de luz poisa nas suas mãos, entrando pela janela minúscula da parede do fundo, e traz de longe, descendo a Encosta da Mina, subindo pelo talvegue até Onde se Juntam os Rios, seguindo pela vereda da Encosta dos Matos, e depois pela Colina do Engenheiro (a que antigamente se chamava a Colina da Raia), e depois pelo caminho do Toural, e depois descendo de novo até entrar pela janela minúscula da parede do fundo: depois a luz traz de longe o aroma do alecrim. Só então o dia começa. Só então os dias começam verdadeiramente: quando um aroma forte, um aroma intenso, entra com a alba pela janela minúscula da parede do fundo; ou pelo intervalo entre duas telhas levantadas; ou pelas frinchas da porta: só então o dia começa. Porque só então, dentro de si, alguma coisa estremece, alguma coisa lhe diz que está viva, alguma coisa que chega de longe como se as águas subterrâneas se movessem de súbito e o mundo estremecesse numa exalação invisível do ar.