terça-feira, março 25, 2008

22.

Américo Matias passa a língua pelos lábios secos. Embrulha vagarosamente as peças, uma a uma, cuidadosamente, dobrando em trapézio as pontas do papel com flores estilizadas. Luísa não usa corpete e não é certo que uma cinta apertada lhe modele as ancas levantadas. Américo recorda: um dia, uma noite de Novembro, ficou até tarde no serão de dona Fernanda. Chovia que deus-e-a-dava. Soprada pelo vento da Seixa, oblíqua, a água entrava por debaixo da portada; a lareira acesa protegia-os da tempestade e do mundo. Luísa adormecera no maple corrido, a cabeça muito perto do seu ombro. Dona Fernanda pediu licença por um minuto, subiu ao primeiro andar a verificar as janelas, «esta chuva que não há meio de parar». Chovia como se chovesse desde sempre. Ficaram sozinhos: Américo e Luísa. E Américo Matias deixou que a sua mão direita se perdesse na cintura de Luísa. Ouvia lá em cima os passos no soalho, uma porta a fechar-se. O vestido tão fino que era possível sentir, passando a mão aberta, vagarosamente, quase sem tocar, mais que a pele, os minúsculos poros da pele. As pernas de Luísa, a curva dos joelhos. Não podia ser que dormisse. Respirava de um modo diferente. [Não sorria (diz Maria Teresa): foi assim que me contaram. Eram outros tempos, claro, a linguagem era outra. Enfim, continuemos...] Chovia que deus-e-a-dava. Soprada pelo vento da Seixa, a água da chuva. Como se chovesse desde sempre. Dona Fernanda desceu. Era tarde. Agora, hoje, uns quatro ou cinco anos depois dessa noite de chuva, na penumbra da loja, lá fora o sol da meia manhã de Setembro, Américo Matias embrulha vagarosamente as peças, uma a uma, cuidadosamente, dobrando em trapézio as pontas do papel com flores estilizadas. O odor do alecrim quase embebeda. Chega da encosta do outro lado do vale, pára por instantes no largo, sobe a rua Direita e seu pequeno labirinto de curvas e veredas adjacentes, desce os três degraus do Comércio Central, cola-se irremediavelmente às estantes envernizadas, ao balcão de castanho, ao papel pardo dos embrulhos, ao fio do norte, às mãos agitadas de Américo Matias. Luísa sai da penumbra da loja sem pressa. As suas ancas iluminam como uma aparição a manhã de Setembro.