terça-feira, fevereiro 25, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 15: no sul

outra vez a terra
o imperscrutável som do puro veio da água
isso que parece afluir aos dedos como cinza ou obscura semente
isso que mistura o antes e o depois da música
uma criança corria nos muros estreitos das propriedades
delimitava o mundo em linhas a direito nos campos lavrados
ficava a olhar a luz misturada aos ramos das árvores
ao vermelho e ao castanho da terra
a luz a poisar exausta nas açoteias das casas
a subir os degraus como se finalmente os
dias e as noites pudessem equivaler-se
no sul a
arquitectura é a
luz desatada a meio da tarde nos troncos das amendoeiras jovens
a sombra que reflecte o espelho das
imagens verdadeiras numa parede de cal
a água das cisternas
o azul que ficava do lado do mar quando a
criança desenhava uma linha no chão
e descia dos muros das propriedades
para que
pudesse
começar
a anoitecer

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 14: uma vez

uma vez uma senhora
exigiu a factura dos dois quilos de carne de porco
que estava em promoção no pingo doce
e saiu-lhe um automóvel de luxo no sorteio da administração tributária
não havia mais nada no mundo que
a senhora desejasse
nada que pudesse fazê-la sentir-se mais útil ou solidária
nada que pudesse fazê-la mais feliz
nada que lhe fizesse mais falta
um automóvel topo de gama
um automóvel de alta cilindrada para no fim de
semana
correr as grandes superfícies
em busca das melhores promoções de costeleta de borrego
ou de massinha de cotovelo
sem estar sujeita às filas intermináveis
e aos horários cada vez mais imprevisíveis e espaçados
dos transportes
públicos

terça-feira, fevereiro 11, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 13: um rosto estrangeiro

não chegavam a olhá-los de frente
olhos nos olhos
com receio de que uma qualquer forma de afecto acabasse por aproximá-los
limitavam-se a dar-lhes água e a inventar uma desculpa
para se fecharem de novo e
ficarem a olhá-los por detrás dos vidros das
janelas das casas enquanto eles vagarosamente se afastavam
era assim que estava escrito
nenhum sentimento nos deve ligar aos que estão de passagem
nenhum sentimento nos deve ligar aos que desconhecemos
por isso não os olhavam de frente e não faziam perguntas
até a esse dia em que alguém decidiu ficar por mais tempo na rua
e olhou de frente um rosto estrangeiro
até ao sobressalto de compreender que
havia alguma coisa nesse rosto que pertencia ao seu próprio rosto
que havia alguma coisa nos seus gestos que
era já parte dos seus próprios gestos
e fumaram juntos e falaram de lugares diferentes do mundo
como se ambos fossem estrangeiros e
assim começassem aos poucos a deixar de sê-lo
ou pelo menos a deixarem de
ser estrangeiros um do outro
como se ambos andassem há muito tempo perdidos
e agora se encontrassem para a possibilidade fabulosa de
caminharem juntos
e se perderem juntos
nos caminhos do mundo

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

As Coisas que é preciso dizer. 12: os processos de deriva

já nem procuras a luz dos faróis que separam as enseadas e
as escarpas íngremes
como se aceitasses o princípio de que o
futuro depende dos processos de deriva litoral
como se nada valesse a pena
como se tudo fosse o resultado da vontade dos outros
até que alguém te dirá «talvez não seja tarde»
mas já não sabes os segredos de puxar as
estrelas cadentes com fios de ráfia
mas já não sabes respirar debaixo de água nos
açudes das penínsulas
mas já não sabes tirar o pão do forno enquanto as
pedras estão incandescentes
mas já não sabes em outubro adormecer nas avenidas à
espera da primeira e única folha dilacerada do ácer
mas já não olhas os desenhos das encostas de caducifólias a
procurar estabelecer o roteiro das perguntas difíceis
preferes desistir
secaram nos jardins os caules dos gerânios
desapareceram no horizonte o anil e a púrpura da luz tão
vagarosamente a evaporar-se
as crianças correm em desequilíbrio nos muros estreitos dos loteamentos
os velhos sobem às açoteias e olham para o lado de
dentro da idade à procura de respostas
e é tarde
já nem procuras
o passado não existe