sexta-feira, junho 15, 2012

[Os Rurais]

Primeiro treinamos o disfarce de sermos cosmopolitas
e depois procuramos livrar-nos dos disfarces
de fazer de conta que o somos: tiramos as máscaras
com a ilusão de que assim nos disfarçamos melhor
e de que assim nos é possível fazer de conta
que não trazemos merda agarrada aos sapatos.
Nas grandes cidades chegávamos a dar-nos

bem: Paris ou Copenhaga não são muito
diferentes de uma aldeia de montanha
no que respeita ao modo como os outros nos olham
e olhamos os outros. Quer dizer: a cumplicidade
ou a distância que entre as pessoas se estabelece
nos pequenos lugares não é substancialmente
diferente da que o anonimato proporciona
nas praças e nos largos das urbes. E ser rural

chegava a deixar de ser esse peso de falarmos
ou fazermos um gesto e descobrir-se
à distância a pesada pronúncia ou o cheiro
da urze entranhado na pele. O problema
são os espaços sociais de média dimensão:
um jantar com amigos de amigos num restaurante
caro ou uma conferência num anfiteatro
sobre a imortalidade da alma: o nosso inglês
mesmo que seja perfeito vê-se que foi aprendido
a custo nos livros de um liceu
da província; os nossos fatos têm sempre
desusados vincos e parece que foram
feitos para alguém um pouco mais gordo
ou um pouco mais magro do que nós; os nossos
argumentos filosóficos descambam inevitavelmente
no senso comum e risível dos provérbios;
e nunca acertamos os talheres ou os copos
com as protocoladas necessidades deles.

Compreendemos um dia que não adianta
colocar uma máscara e outra máscara
sobre o rosto ou retirá-las todas na ilusão
de que assim nos é mais fácil disfarçar
a ruralidade que somos como se não pertencêssemos
ainda e para sempre aos lugares afastados
onde nascemos e onde ficámos mesmo quando de
lá saímos muito cedo. E portanto resta-nos

ser rurais e trazer a merda agarrada
aos sapatos com a arrogância e a displicência
com que os cosmopolitas à mesa manobram
os talheres bastando-nos a nós o disfarce
de não sentirmos vergonha quando não sabemos
se é de faca e garfo ou com uma colherzinha
de entre tantas facas e tantos garfos e tantas colherzinhas
que nos devemos meter ao petit gateau de chocolate.

Claro que não é isto que pode salvar-nos.
Mas a partir de certa altura já quase
nos basta ter uma máscara que nos disfarce
até sermos exactamente o que somos.

terça-feira, junho 12, 2012

[Uma Viagem]

Quando este poema for publicado on-line, falando
de lugares mágicos, espero estar aí, nesses
lugares, a dormir nas margens de um rio
com a ilusão de que, em parte,
me é permitido regressar a uma parcela ínfima
dos sonhos que ao mundo não foi ainda
dado roubar-nos. Há um caminho,

primeiro, a percorrer. Antes de chegar
ao Mousse. Antes de chegar ao Mente. Antes
de chegar às margens de um rio onde os
amigos haverão de dormir sob um céu de estrelas
ou ameaçadoras nuvens. E seis árvores, precisamente
seis, haverão de confirmar-nos que poucas
coisas mudam no mundo, e só vagarosamente
mudam, quando nos conformamos
com os milagres do mundo. Haverei, a

caminho, de parar em Mairos. Para
confirmar que uma horta que é um jardim,
ou um jardim que é uma horta, ou uma horta
e um jardim que são simultaneamente
a mesma coisa, continuam acertados com a
meteorologia e as estações, ou acertados
com a imprevisibilidade delas. Talvez aproveite
para beber cerveja neste café a que se chega
por um corredor estreito de cimento. Mas apenas
porque me apetece ficar um pouco sentado cá fora
a olhar um cacto gigante e uma couve, um campo
de milho ou uma sebe de buxo e alecrim, e essa
arte tão antiga de domesticar as plantas
e misturá-las para nos darem um fruto, uma
sombra mais alargada, uma luz no outono
ou o prazer dos fenómenos. Haverei, então,

de virar à esquerda, a noventa graus. E depois
entrar na capital da batata, no planalto ecológico,
nessa vastidão de campos que são já
da Galiza sem deixarem de ser da Terra Fria,
que são já fronteira sem deixarem de ser
continuidade e aproximação. E aí, em
Travancas, no Café Central, é provável
que beba cerveja. Mas apenas para me sentar
na esplanada e continuar a olhar a cerejeira
que cresce rente a um muro, do lado
direito, na estrada que em seguida me levará
a Argemil e a São Vicente da Raia. E em

São Vicente, depois de acompanhar o rio
serpenteando sem derivações bruscas, antes
de se olharem, do alto, os vales com os
seus quadriculados amarelos e verdes,
as encostas erguendo-se em modulações
entre o verde e o castanho, é provável
que pare por alguns momentos
e beba cerveja. Mas apenas porque
me há-de apetecer ficar sentado a uma
mesa de pedra, sob uma latada
ampla, a olhar o ondulado das cumeadas
sucedendo-se na distância. Descerei

então em apertadas curvas deixando Aveleda
à esquerda arrumada num pequeno vale
com o xisto quase improvável a sair dos montes
para as paredes das casas. E, enfim, chegarei
a Segirei. Não seria necessário continuar
até Segirei: porque deveria virar à direita
antes de chegar a Segirei. Mas é preciso regressar
às memórias antigas de um café que
já fechou há muito, e às memórias antigas
da cozinha e do pátio e da adega da casa
do Ramiro. Por isso não chego a parar. Sigo
devagar, faço inversão de marcha no espaço
mais alargado da ponte da praia fluvial,
e rumo em sentido contrário, deixando
novamente Segirei e o tempo suspenso da
revelação dos seus nomes. É

esta a viagem: chegar a Pejas. Encontrar
os amigos que me esperam na margem
de um rio. Olhar as seis árvores, precisamente as
seis árvores onde procuro a demonstração
de que o mundo quase não muda, e muda
muito vagarosamente, quando apenas
nos bastam os milagres do mundo. Sentar-me-ei

então em redor de uma mesa de madeira.
E talvez não beba cerveja. Mas vinho. Para
que o vinho possa deixar durante muito tempo
a memória dos encontros, a memória
dos milagres, a memória desse
momento de aparição em que por um instante
breve nos é revelado o mistério de estarmos
vivos em nós mesmos e no coração
dos que não podem deixar de amar-nos para sempre.



[publicado originalmente aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/800324.html]