quinta-feira, março 20, 2008

16.

Uma nuvem de gases e poeira (conta Maria Teresa) levanta-se da rua, espalha o tisne e a fuligem pelos móveis da sala, pelo chão encerado do átrio, pela mobília dos quartos do primeiro andar. Fernanda, dona Fernanda, vem à janela: o doutor Magalhães acaba de subir à varanda da casa do largo, não tardará a sentar-se na cadeirinha de lona e a enfiar os pés descamados na bacia de porcelana. Fernanda levantou-se cedo, a luz ainda vacilante na colina. Desce ao salão, abre o louceiro de carvalho, olha com minúcia, uma peça e depois outra, o serviço de jantar. É preciso ir às compras. Levantou-se cedo; não há uma nuvem de água ou neblina entre a terra e o céu; o espinheiro-da-virgínia do Toural ergue-se contra o céu de fins de Setembro como se o mundo começasse a nascer com a manhã ainda indecisa. Como se alguém dissesse: aqui uma árvore, aqui um muro alinhado, aqui o caminho do monte, aqui um ribeiro e suas águas sesserigas, aqui uma pedra, aqui uma fonte. Como se o mundo só então pudesse começar. Como se alguém dissesse: aqui uma pedra, aqui uma fonte; e agora a luz a descer a colina, a estender-se no vale e na encosta de carvalhos, a descer o ribeiro e suas margens, a descer o caminho do monte. Como se tudo pudesse começar; como se nada existisse ainda entre a terra e o céu.