sábado, dezembro 29, 2007

Os perigos

Ninguém se perde
no estrangeiro ou nas cidades
dos livros. Ninguém se perde
nos labirintos de creta. O problema
é chegar a casa saindo
das ruas do largo
com as chaves no bolso.

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Os outros

O problema sempre foram
as más companhias: são os outros
que corrompem. Por
nós, cada um de nós, o mundo
não teria uma nuvem de cinza ou um único muro
erguido a desenhar com alvenarias
as fronteiras
e a intolerância. O problema
do mundo sempre
foram os outros.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

Natal

jcb


Boas Festas.

sábado, dezembro 22, 2007

As páginas dos romances

Fazíamos o salto mortal com pirueta à frente
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa. As obras
da escola eram a nossa perdição: as fasquias de alumínio,

o ondulado de luzalite das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados à tarde
erguíamos muros no combarro com tijolo de quinze,

marcávamos com estacas de pinho o perímetro
exterior do pavilhão, ligávamos a betoneira a olhar
em sobressalto os movimentos oscilatórios do balde.

Penso que era assim. Às vezes pergunto o que fica
dos livros, o que pertence e não pertence à literatura,
o que acrescentaram à nossa vida as páginas dos romances.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Do que nunca existiu

Os amigos juntam-se e falam do passado, da música
que já não se ouve na rádio, do inverno em que choveu
semanas a fio e o rio saiu das margens para desenhar
nos troncos das árvores os círculos imperfeitos

da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres que se renderam
para sempre às palavras do amor, das perdizes
caindo de asa nas encostas iluminadas da urze,

das corridas memoráveis do vinte e cinco
de abril, das tardes de domingo que haveriam
de envergonhar a uefa se a televisão estivesse presente

nas finais dos torneios dos bombeiros voluntários.
É disso que os amigos falam: do que a vida poderia
ter sido se não fosse a filha da puta de vida que foi.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

Pouco mais

jcb

O que deitámos fora
ou nem chegámos a ter
por indiferença ou lentidão: pouco mais
ou nem tanto
desejamos agora.

terça-feira, dezembro 18, 2007

Dezembro

foto: A. C.


A chuva diminui a distância
entre nós e as coisas. Um muro, de súbito,
é como se fosse o primeiro e único muro
da infância. E podemos sentir uma estranha melancolia
a olhar os velhos postes de electricidade
com os seus fios
a atravessar as ruas e as casas.

Seis filmes

Seis filmes? Aí vai:

Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson.
O Meu Tio, de Jacques Tati.
Belarmino, de Fernando Lopes.
Amarcord, de Federico Fellini.

Recordações da Casa Amarela, de João César Monteiro.
In the Mood for Love, de Wong Kar-Wai.

Amanhã escolheria outros?...

segunda-feira, dezembro 17, 2007

O que seremos

jcb


O que seremos no futuro, enquanto país, dependerá em grande parte do que soubermos guardar daquilo que mais profundamente nos pertence.

Do que se fala aqui é apenas duma opção que mais tarde nos haverá de envergonhar. Mas nessa altura, como de costume, será tarde.

domingo, dezembro 16, 2007

Elas mudavam de lugar os objectos

Elas sabiam que aos filhos
os haveria de levar nas águas de novembro
a deriva. Não diziam
a Palavra com medo
dos desastres.

Elas bordavam ao domingo
as toalhas das mesas.
Elas mantinham o lume aceso
durante a tempestade até
chegarem os seus homens. E erguiam
pequenos muros
frágeis de tijolos
refractários.

Elas mudavam de lugar
os objectos e penduravam
papéis coloridos nos arames de roupa
do pátio
onde escreviam um nome.
Elas ficavam assim
a olhar os astros.

Depois os filhos saíam de casa e elas
desciam ao pátio a procurar
na trémula caligrafia
os limites da passagem do Tempo
e cada uma das suas
irrevogáveis
sílabas.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Nos domingos

Nos domingos de junho dos princípios
dos anos 70 as crianças quebravam
o gume do silêncio sucessivo a ensaiar nas varandas
de cimento os princípios
da levitação.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Gardunho

A flecha é a parte mais funda das árvores reflectidas
no açude e as raízes
parecem descer ao longo do fuste aproximando-se
do céu e simultaneamente
fugindo dele. O declive
das encostas cortadas a pique esconde
as cumeadas. Doze
salgueiros erguem uma espécie
de sebe ou guarda-vento.
A casa fica na margem direita do pequeno
vale desenhado de ambos
os lados do rio.

Se alguém chegasse à escaleira da entrada
e gritasse
o eco da sua voz repercutia-se numa abóbada
de silício.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

As frases

Vem de muito longe o pó
na tijoleira das entradas das casas. Os mortos
saem dos retratos a sépia
pendurados nas paredes
e parecem tocar-nos
no ombro.

Uma frase desmoronava as barragens
dos desastres. Não era ainda
a noite. Ele deixava as mãos muito levemente
sobre a água
do tanque a experimentar
a imponderável ondulação dos significados.

domingo, dezembro 09, 2007

Outra vez

Outra vez o chamado mundo rural ou o direito à indignação.

No tempo das colheitas

No tempo das colheitas
como o ar quente a loucura ascendia
e desenhava uma nuvem
se as mulheres
despiam as saias e tiravam
das gavetas das cómodas
a pérola do lume. Nas varandas
nem a memória ficava do silêncio em vez
da roupa de cor estendida nos arames
tensos.

A dádiva aproximava das hastes do trigo
a água das nascentes.
Alguém subia aos ramos
quase apodrecidos das macieiras
do cedo e dizia assim
eu tivesse o poder
de curar com as mãos.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Arqueologia

As paredes de pedra e os vidros
da janela separavam do mundo
o crepitar doméstico
do fogo da lareira e o odor
do pão ainda quente.
Na mesa do escano
a criança desenhava os diques.

A ameaça
é um dissimulado rumor
que não exige defesas.
Crescendo nas margens
em vez do dilúvio
a água começava por delinear nos troncos
das árvores os iluminados círculos
dos anos.
Na mesa do escano
a criança desenhava os diques.

O olvido e a tormenta
queimam em seu redor o oxigénio
até ao deslaçar imperceptível
das palavras. No enxofre do vácuo
em partes desiguais a tempestade
e as pétalas cor de zinco
das rosas do inverno
ardem.

O que fica é o breve
e quase inexplicável espólio de quatro
pedaços de cerâmica e um
desenho nas suas linhas trémulas
a lápis.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A rotação dos astros

As mulheres correram
a tirar dos arames os adjectivos
quando os relâmpagos bateram nas pedras
de xisto dos pátios. As mulheres
guardaram os adjectivos nas gavetas da cómoda.
As mulheres misturaram a água
e as palavras nos púcaros.
As mulheres fecharam à chave
as portas sucessivas.

Mas o inverno trazia
do fundo dos poços da infância
o mapa dos remansos. O inverno
desmoronava as barreiras de saibro.
O inverno espalhava os eléctrodos
entre a nuvem de silêncio
e a hélice das sementes do ácer.
Oinvernotropeçavanosdegrausdecasa.

E era quase a noite.
E uma criança abriu a gaveta dos adjectivos
e jurou que as marés ou a rotação dos astros
revertiam no cântaro da cozinha
do breve rumor das águas
subterrâneas dos relâmpagos.

domingo, dezembro 02, 2007

Letra de canção enviada pelo comentador anónimo

O amor às vezes esbarra em coisas
tão pequenas:
desatenções, um esquecimento,
preciosismos.
No nosso caso, acredita,
foi apenas
não te conteres e exagerares
nos galicismos.

Tanto batom e tanto ruge
não se aguenta.
Tanta chauffage, tanto charme,
tanto chique.
No restaurante era o menu
em vez da ementa
e em vez das lojas tu compravas
na butique.

Pela manhã ganhavas horas
na toalete,
em cada táxi interpelavas
o chauffer.
Ele era o louvre, a notre-dame
e la villette,
era o malraux, o victor hugo,
o molière.

Já enjoava os croissãs
quase vencido,
os sucessivos bibelôs,
os dossiês.
E ainda agora tanto tempo
decorrido
fico doente só de ouvir
falar francês.