quinta-feira, novembro 17, 2011

12.

Isto já vinha de princípios do ano. Mas as determinações da administração é muito vagarosamente, e não raro de um modo difuso, precedidas em regra de sinais contraditórios, que chegam ao terreno e produzem efeitos concretos. Na praia de Monte Gordo poucos sabiam que o ouro do Brasil abundara e começava a escassear e que o muito que chegara à metrópole havia sido desbaratado em abastança pacóvia, lausperenes e indulgências; poucos sabiam que um poder reformador se preparava para devolver à Fazenda Real o que lhe era de direito e que os diplomas legais se sucediam em favor desse interesse público que em regra é foda ou canelada para os interesses individuais de cujo somatório seria suposto que resultasse; poucos sabiam que D. José, com enfado, nos intervalos do torno, assinava despachos de organização administrativa que começavam a dificultar as folgas aos funcionários dos impostos e, do mesmo passo, impunham ónus crescentes aos armadores de Castela; poucos sabiam que D. Carlos III não se ficara e taxara a valores proibitivos a importação de pescado dos mares portugueses; poucos sabiam que, em resposta, medidas fiscais foram promulgadas de modo a impedir que a sardinha galega fosse vendida no norte do território nacional; poucos sabiam que a diplomacia entrara em guerra, disparando de um e outro lado da fronteira; poucos sabiam que o Marquês de Pombal decidira, como agora em tempos da troika não seria mau decidir-se, transformar a crise em oportunidades: isentou-se de taxas a comercialização interna do pescado algarvio; revitalizou-se a indústria da salicultura, a economia das marismas; e Frei João de Mansilha foi chamado por Sebastião José para que, em segredo, e acenando com privilégios, aliciasse (que é um modo de dizer) a burguesia nortenha para o negócio das pescas do Reino do Algarve: em Monte Gordo podiam eles instalar os seus telheiros e salgas e cada um deles, em nome do interesse público, enriquecer ancorado numa política que os defendia sem pôr em causa o bem comum da pátria.

Poucos, nestas partes afastadas do mundo, sabiam das movimentações diplomáticas, das guerrilhas de secretaria: mas os efeitos, aos poucos, chegavam aos areais da praia: os catalães viam-se obrigados a mudar de rumo; António Martins Mascarenhas ria-se por dentro e achava que verdadeiramente começava a chegar o seu tempo.

Mal sabia ele que este pequeno fio de água se avolumava, crescia em torrente, desaguaria em breve na baía do Monte do Ouro com estrondo e espalhafato.
11.

Faça-se um intervalo (antecipando o que há-de vir) apenas para dizer-se que quase sempre os grandes amores, senão sempre, nascem das coisas mais prosaicas. Uma delas é a circunstância. O corrente, para depois justificarmos um encontro que parecia desenhado nas estrelas, é invocar elementos tão abstractos como o destino: isso que serve para justificar tudo o que acontece e tudo o que não chega a acontecer. Pois que grande habilidade quando Leonardo viu a pele muito branca da filha de António Martins Mascarenhas e o seu perfume se insinuou depois de tanto tempo em que as poucas mulheres que vira era como se não tivessem pele e, oh, sentiu que o punhal da paixão o atravessava. É isto que designamos por destino? Pois que seja: olha a grande habilidade. O certo é que o destino, por interposto Leonardo, há muito que não topava com uma circunstância assim tão propícia ao exercício do seu mister.

quarta-feira, novembro 16, 2011

10.

António Martins Mascarenhas era um dos mais dinâmicos estrategas da guerra diplomática que neste ano do Senhor de 1773 conhecia o auge. Não o movia o interesse público: mas era em nome dele, como é quase sempre, que defendia os seus interesses próprios.

Os interesses não é de costume digladiarem-se em podendo juntar-se. Os armadores catalães, que dominavam a praia com quase noventa das cem artes de xávega que aí concorriam, procuravam chamá-lo à razão: a situação interessava a todos.

Mas António Martins Mascarenhas via longe, que é muitas vezes um modo de vermos curto: e já imaginava, expulsos os catalães aos seus domínios, ser ele a dominar o empório da sardinha. Conspirou. Moveu cordelinhos. Fez aquilo a que hoje chamaríamos lóbi, termo que recentemente deixou de ser pejorativo para ser tão gabado.

António Martins Mascarenhas, vírgula: o nome de Mascarenhas constava de alguns dos relatórios enviados ao Paço. E neste mês de Setembro de 1773, enfim, sorri de ver que o mover das peças no tabuleiro legislativo, muito por sua iniciativa e empenho, começa a levar os espanhóis ao abandono dos areais da baía de Monte Gordo, que alguns designavam já por Monte do Ouro.

A coisa começava a compor-se.

terça-feira, novembro 15, 2011

9.

As pescarias de Monte Gordo, repetindo-se a história de quinhentos, sobretudo aproveitavam aos cofres do outro lado da fronteira. Os armadores catalães, atraídos pela fama da riqueza de peixe miúdo, vieram e fugiram aos impostos como se fizera sempre no individual interesse de todos menos no interesse do bem colectivo. O pescado vendia-se nos areais sem passar pelo Registo de Portagem ou era baldeado em águas oceânicas, de embarcação para embarcação, e levado directamente a Ayamonte como se fosse pescado em mares de Castela. Os cobradores de impostos, entretanto, nos intervalos de receberem alcavalas e calarem-se, faziam sestas prolongadas na repartição.
8.

A corda tinha deslaçado e Sebastião José compreendeu que a coisa não avançaria com falinhas mansas. E declarou guerra a Castela. Mas era ainda a diplomacia o que comandava o processo: os diplomatas retomavam as mesas de jogo para que não fossem necessárias tropas no terreno: em vez dos tiros que seriam o recurso sem a presença e a actuação deles, a diplomacia movia as peças no tabuleiro legislativo.
7.

A diplomacia é a arte de esconder o jogo e procurar foder o parceiro com elegância. Às vezes as cartas estão todas em cima da mesa e faz-se de conta que há jogo escondido. Um sabe que o outro sabe o que o outro sabe e ambos fazem de conta. E, no entanto, quem vê as cartas e sabe que não há jogo escondido, mas faz de conta que acredita que há jogo escondido, deixa correr a coisa elegantemente até a corda começar a deslaçar. Então é altura de o que está enfraquecido informar superiormente que o adversário enfraqueceu tanto que é tempo de dar-lhe o golpe final; o que está a vencer informa de modo igual o seu governo. Os diplomatas saem ambos por cima, o de um lado e outro, e lavam as mãos com elegância. Entretanto fizeram ambos um excelente e reconhecido trabalho e haverão de receber medalhas dos respectivos estados pelas mesmas e diversas razões.

As medalhas são concedidas em sessões solenes às vezes em datas não muito afastadas.

segunda-feira, novembro 14, 2011

6.

Cinco mil pessoas é diferente de uma mais uma mais uma até cinco mil. Cinco mil pessoas é um ponto num mapa, uma generalização num relatório entregue a Sebastião José sobre a economia do Reino do Algarve. Uma mais uma mais uma até cinco mil é uma pessoa e outra e outra, um e outro rosto, um nome e outro nome até à soma de cinco mil nomes e cinco mil rostos.

Mas a Coroa, preocupada com o interesse público, pouco curará de saber de nomes e rostos. Nos relatórios enviados a Lisboa não existe nenhum João Martins, de alcunha o Joanete, que cortou vinte e seis pinheiros na mata do concelho; nem consta nenhum Romão Pereira nem nenhum António Martins Mascarenhas, este que acaba de acusar aquele do roubo de pão. Existe apenas o conjunto abstracto que resultou do somatório de parcelas concretas.

António Martins Mascarenhas, vírgula: este armador de xávega há-de constar de mais que uma petição, de mais que um relatório, de mais que um anexo dos arquivos do Paço. Não Romão Pereira, claro, simples costeiro sem nome em autos que não sejam de querela e no papel de querelado. Mas este António Martins Mascarenhas, vírgula: os armadores catalães não podem vê-lo e é a ele que acusam das mudanças em curso e que, garantem, a ninguém acabarão por aproveitar. Acusações antigas, de resto, como haverá de se ver.

quarta-feira, novembro 09, 2011

5.

O interesse público vê a fuga aos impostos, ou apenas os cofres públicos quase vazios, com os maus olhos com que é suposto que veja.

O tgv (quer dizer: a expansão marítima) exigia pulso firme na percepção das receitas. Reformaram-se forais, mexeu-se em mordomias antigas de senhores com brasão de granito nas empenas das casas e camas de dossel, apertou-se ao povo um pouco mais o gasganete em nome do interesse público: construíram-se naus, desenhou-se um império.

E as modas pegam. D. Manuel, já no século XVI, recebe um relatório que fala de sítios ermos de areia, na foz do Guadiana e na contígua linha de costa, onde a riqueza invulgar de pescado não acrescenta um ceitil ao erário da Coroa: é a Castela que a apanha do carapau e da sardinha aproveitam. Em 1512 manda el-rei português que junto ao estuário seja edificada uma vila capaz de impor a prática de uma soberania que até então o era apenas de direito. Eis o programa: controlar os ataques corsários e a avidez mourama, inscrever no território as marcas efectivas do poder central, atacar o contrabando, fiscalizar, arrecadar receitas.

É assim que nasce Santo António da Foz do Guadiana por ordem real. Como se os lugares, as vilas, as cidades, se edificassem por decreto contra a geografia das necessidades, dos sonhos e da necessidade deles. Acontece, portanto, que antes ainda dos éditos, antes ainda das cartas de privilégio, já num desenho de Duarte de Armas o lugar é referenciado com topónimo castelhano: Arenilha. Já ali, portanto, antes da decisão real de mandar construir o aglomerado, havia gente a viver em barracas e a dar-lhe um nome. É bem feito.

Mas era a poente, não longe, nos areais abertos à baía de pescado abundante, indiferente às cartas de privilégio ou à outorga de regimentos de alfândega, que o povo começava a juntar-se. Santo António de Arenilha haverá de ficar sem gente, haverá de afundar-se nas águas do rio; e o contrabando haverá de persistir, como haverão de persistir a fuga aos impostos e a imposição dos interesses individuais, de gente livre, contra os interesses do Estado e as correlativas determinações de D. Manuel e de D. João III. E é por isso que neste mês de Outubro de 1773, pelas contas do jovem Leonardo Loppes de Arouca, o número de almas que na praia de Monte Gordo vivem (supondo que a cada indigente corresponde uma alma) ultrapassa os cinco mil.
4.

A liberdade individual é contrária aos interesses do Estado. O Estado prossegue o bem comum, o interesse público. Promulga leis, regulamenta. E a liberdade individual deve sujeitar-se às regras que garantam e assegurem o primado de um interesse mais vasto: o interesse comum. O ponto é que o interesse comum nunca é o resultado da soma dos interesses individuais. E a soma dos interesses individuais esbarra nos superiores interesses do Estado.

Os pinheiros da mata do concelho estão ao serviço do interesse público. Os pinheiros são cortados por ordem do Procurador do Concelho e vendidos na outra margem do rio; em Espanha. João Martins, de alcunha o Joanete, nunca usufruiu, directamente ou indirectamente, da venda legal e regulamentar dos pinheiros bravos. Uma noite resolveu cortar vinte e seis pinheiros e vendê-los a um espanhol que, de costume, os comprava mais caros ao Procurador do Concelho. Pela primeira vez iria usufruir de uma parcela de um bem comum. O certo é que foi apanhado e não é crível que o crime fique sem o castigo que a lei regulamenta e o interesse público recomenda.

segunda-feira, novembro 07, 2011

3.

Leonardo olhou o desenho do enviado da Corte e fascinou-o essa representação do real. Não tanto por o desenho representar a realidade: mas por reinventá-la.

É certo que se implantam em três linhas ao longo de uma légua as cabanas de colmo e as poucas casas de adobe e cobertura de telha onde vivem os mais de cinco mil habitantes da Praia de Monte Gordo: mas era preciso um desenho para representar essa realidade. Porque de nenhum ponto se tem uma percepção do conjunto. A quem chega pelo Norte, pelas marinhas do esteiro da Carrasqueira, o aglomerado novo há-de parecer um pequeno conjunto de choças erguidas por entre o ondulado dos relevos dunares; a quem chega do nascente, das bandas do Guadiana, seguindo pela vereda que corre na orla do pinhal do concelho, a imagem que se realça é a da igreja de Nossa Senhora das Dores e de uma espécie de largo que não é senão um breve descampado de areia; antes, de um e outro lado, dez cabanas iguais. E tudo é tão igual que estando em qualquer lugar do aglomerado é como se estivéssemos em todos os outros.

Mas o desenho do enviado da Corte reinventa cada minúscula parcela, esbate a ideia de um lugar abstracto onde se misturam patrões de xávega e gente adventícia fugida à justiça por delitos e más obras: uma rua específica, uma cabana específica, uma específica casa de adobe: onde vivem, onde trabalham, onde vagabundeiam, onde circulam aladores e mestres de alar, cirurgiões e estanqueiros, carpinteiros e soldados de infantaria, capitães e tanoeiros, sapateiros, costeiros, padeiros, mestres de iate.

O mundo é um desenho. E a realidade é a representação que se faz dela.

sexta-feira, novembro 04, 2011

2.

Um homem, na mata pública, cortou vinte e seis pinheiros verdes. Estavam arrumados em toros de nove palmos pelo comprido no interior de uma lancha que não tardaria a atravessar o rio quando o homem foi surpreendido pelo Procurador do Concelho. Tanto era certa a consciência de que cometia um crime: procedera ao corte das árvores durante a noite; e era madrugada ainda quando, furtivo, acabava a tarefa.

A Leonardo começara sobretudo por surpreendê-lo a determinação do Procurador: quase a ira. Tinha dificuldade em compreender esse empenho contra um homem que, de acordo com o próprio denunciante, em sua defesa se limitara a afirmar «ser um pobre».

O Procurador acusou-o do roubo dos pinheiros e de posse de arma ilegal. E o escrivão quase sorriu de ver como as histórias se repetiam e como os acasos eram tão favoráveis às instâncias dos poderes: quis o acaso que naquele dia o Procurador se tivesse levantado invulgarmente cedo e topasse o homem pronto a largar-se da margem com os toros de nove palmos; quis o acaso, ainda, que quatro pessoas ali passassem nesse preciso momento e testemunhassem o denunciante a retirar ao denunciado, por cautela, uma faca que trazia no cós do calção e se confirmou ser flamenga, «de ponta aguda penetrante», com o seu cabo de madeira lavrada e um anel de metal amarelo; e quis o acaso, finalmente, que dois soldados artilheiros da guarnição da Praça ali estivessem em lugar de costume tão deserto e assim o levassem logo para o posto da guarda do Poço da Areia enquanto o Procurador rumara a denunciar o roubo «e mais perfídias» ao doutor juiz de fora ou a quem em juízo o representasse.

O homem, João Martins, de alcunha o Joanete, que cortava os pinheiros e se preparava para vendê-nos na outra margem por desafio de um espanhol que vivia de argúcias, não saberia defender-se por não compreender as razões de o que fazia ser um crime. Quer dizer: não desconhece que apenas é possível cortar pinheiros da mata por ordem do Procurador; mas não compreende porque se diz que os pinheiros são uma riqueza de todos quando sabe que nunca a ele essa riqueza aproveitou e tem por certo que nunca haverá de aproveitar-lhe.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Capítulo III

[Monte Gordo, Outubro de 1773]

1.

Leonardo Loppes de Arouca tem uma expressão curiosa no seu livro de apontamentos: «este fascinante caos urbano de vária gente». É uma frase quase inverosímil para a época. Leonardo vem de boas famílias de Faro, é um jovem de vinte e um anos, e a praia de Monte Gordo, vê-se, mexe-lhe com a estrutura. A frase equivaleria hoje a falarmos com o mesmo entusiasmo das periferias urbanas: do caos de anexos de tijolo e prumos metálicos, da fascinante desordem e rendilhado das fasquias e dos andaimes das obras, dos impasses, dos loteamentos de ruas desligadas, de passeios interrompidos, de azulejos decorativos nas varandas.

Leonardo Loppes de Arouca, escrivão da Câmara, tem como função essencial dar conta dos autos de querela que na dita praia ocorrem com frequência desusada. Aí, na cabana de aposentadoria do juiz ordinário, às vezes com enfado, quase sempre com curiosidade e aprazimento, dá nota das ocorrências vulgares. Os autos de denunciação, no entanto, não é tanto ao corregedor ou ao doutor juiz de fora que os redige: primeiro os aproveita como matéria para a compreensão do mundo.

quarta-feira, novembro 02, 2011

Capítulo II

[Pombal, Setembro de 1779]

O homem que entra na sege parece um mendigo. Caminha devagar. Tem uma manta sobre os ombros, um gorro de lã enfiado na cabeça, umas calças largas de saragoça. É ainda escuro. Dois jovens ajudam-no a subir o degrau, a entrar, a sentar-se. A cena tem algo de desconcertante: uma mistura de miséria e solenidade, de vulgaridade e nobreza. As cortinas de cabedal fecharam à praça o espaço interior da sege e na manhã de Setembro começou por ouvir-se o ruído metálico das rodas a correr na pedra do pavimento, o eco dos cavalos a trote.