Capítulo III
[Monte Gordo, Outubro de 1773]
1.
Leonardo Loppes de Arouca tem uma expressão curiosa no seu livro de apontamentos: «este fascinante caos urbano de vária gente». É uma frase quase inverosímil para a época. Leonardo vem de boas famílias de Faro, é um jovem de vinte e um anos, e a praia de Monte Gordo, vê-se, mexe-lhe com a estrutura. A frase equivaleria hoje a falarmos com o mesmo entusiasmo das periferias urbanas: do caos de anexos de tijolo e prumos metálicos, da fascinante desordem e rendilhado das fasquias e dos andaimes das obras, dos impasses, dos loteamentos de ruas desligadas, de passeios interrompidos, de azulejos decorativos nas varandas.
Leonardo Loppes de Arouca, escrivão da Câmara, tem como função essencial dar conta dos autos de querela que na dita praia ocorrem com frequência desusada. Aí, na cabana de aposentadoria do juiz ordinário, às vezes com enfado, quase sempre com curiosidade e aprazimento, dá nota das ocorrências vulgares. Os autos de denunciação, no entanto, não é tanto ao corregedor ou ao doutor juiz de fora que os redige: primeiro os aproveita como matéria para a compreensão do mundo.