tag:blogger.com,1999:blog-130938682024-03-07T04:05:40.031+00:00Casa de CacelaTextos e imagens de José Carlos Barros. Perguntas: blogcacela@gmail.comjcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comBlogger1525125tag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-12400044263760761222015-10-26T17:12:00.001+00:002015-10-26T17:12:47.725+00:00[um outro lugar]
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Nasci em 1963 e saí de casa dezasseis anos depois. Na minha família quase
não existiam lágrimas nem risos. Desconhecíamos o sobressalto. O mundo corria
tão devagar que nos era possível surpreender o momento exacto em que as flores
brancas das acácias-bastardas, erguidas do outro lado da rua, numa plataforma
mais elevada, irrompiam para anunciar o fim do Inverno. Os meus pais quase
nunca falavam; e quando falavam, entre eles e connosco, era em voz baixa, num
tom que parecia misturar o apaziguamento e a melancolia. O silêncio de dentro
era o mesmo silêncio de fora. Vivíamos numa rua larga de terra batida que não
levava a lado nenhum, como se a Vila terminasse ali. Enxertada em ângulo recto
na estrada nacional, em frente ao edifício do Grémio da Lavoura, a rua subia
por entre propriedades agrícolas até a uma curva a partir da qual se bifurcavam
dois caminhos: um seguia para a banda do nascente e o outro para noroeste, que
era de onde, quase sempre, soprava o vento e chegavam as chuvas. Mas nunca
ultrapassávamos esse ponto e nunca nos interrogámos sobre as razões que levavam
a isso. Nas nossas brincadeiras de infância, quando passávamos tardes inteiras
a brincar aos cobóis, ou ao guarda e ao pilha, era como se houvesse um acordo tácito
de demarcação de fronteiras que nos impedia de passar além desse lugar. O mesmo
havia de acontecer mais tarde, já adolescentes: não recordo ninguém, de carro
ou a pé, de motorizada ou de bicicleta, que, subindo a rua, não tivesse dado
meia volta ao chegar à Curva da Mina.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">A biblioteca do meu pai ia crescendo ao ritmo de um ou dois livros por ano.
Em 1979, quando saí de casa, constava de cinquenta e sete títulos. Nas duas
prateleiras de baixo, por autores, quarenta e nove livros alinhavam-se numa
rigorosa ordem alfabética, de Manuel Asturias a Jonathan Wilde. Na prateleira
de cima, onde havia apenas oito volumes, dir-se-ia, não se dando o caso de
ocuparem sempre a mesma posição ao longo do tempo, que a ordenação era
arbitrária. O primeiro, a contar da esquerda para a direita, era o tomo VIII de
uma edição em castelhano dos Sermões do Padre Luys Burdalue (en el que se
contienen los SERMONES para los Domingos, Lunes, Miercoles, Jueves, y Viernes,
desde el Jueves de la Segunda Semana de Quaresma, asta à el Viernes de la
Quarta Semana, inclusivamente). Publicado em Amberes, em 1740, a custas de
Marcos-Miguel Bousquet, devia ser uma relíquia de família trazida pela minha
bisavó, uma espanhola muito católica, que já não cheguei a conhecer, nascida
num pueblo dos arredores de Valladolid e que, conta-se, passava o tempo a
chorar e a rezar. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, vinha logo a
seguir. Cervantes, nesta prateleira, era o único autor com direito a dois
volumes: do Quixote constava uma edição portuguesa, com tradução dos Viscondes
de Castilho e de Azevedo e as conhecidas ilustrações de Gustavo Doré gravadas
por H. Pisan, e outra, em castelhano, publicada em Buenos Aires no ano de 1943
pela Editoral Sopena Argentina. Seguiam-se-lhe Ficções, de Jorge Luis Borges
(na aclamada tradução de Carlos Nejas), Anna Karenina, de Tolstoi, O Vermelho e
o Negro, de Stendhal, e Alegria Breve, de Vergílio Ferreira. Foi nesta estante
de três prateleiras que aprendi a ler e era nesta estante que estavam todos os
livros, cinquenta e sete, que li até fazer dezasseis anos e sair de casa.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.</span></span><br />
<div class="Body1" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Eu estava sentado numa manta, a jogar ao monopólio com o Ramiro e o Sérgio,
quando vi o meu irmão pela última vez. Era uma tarde muito quente de fins de
Junho de 1977 e nós estávamos assim, a aproveitar a sombra das
acácias-bastardas, quando o meu irmão, de quem raramente se ouvia uma palavra,
passou por nós, parou por instantes e, olhando por cima do ombro, disse: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">"O futuro já existe."</i> Achei,
sem nenhuma razão plausível, que era imprescindível fixar os olhos do meu irmão
nesse brevíssimo instante em que nos olhou por cima do ombro. Olhei: e vi que
os seus olhos estavam vazados. Quando ele se virou e recomeçou a caminhar pela
rua acima, eu continuava a ver esses olhos vazados e continuava a ouvir essa
frase como se alguém tivesse falado do fundo de um poço. Hoje penso que o meu
irmão se havia fechado irreversivelmente às coisas exteriores por
impossibilidade de acertar o seu tempo com o tempo dos outros. Porque talvez o
meu irmão já estivesse num outro lugar: <i style="mso-bidi-font-style: normal;">"O
futuro já existe."</i> O certo é que foi a última vez que o vi, ainda que
a memória dos seus olhos vazados, tantos anos depois, continue presente como
nessa tarde muito quente de Junho de 1977. E neste momento, tantos anos depois,
quero acreditar que o meu irmão já não levava consigo memórias nenhumas, e que,
de olhos vazados, subindo a rua a caminho da Curva da Mina, o havia tocado a
graça do esquecimento. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Porque</i> o meu
irmão ia a caminho de um outro lugar e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">a
memória do passado é a que deve causar a primeira pena das almas condenadas.</i></span><i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></i></span></div>
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Não me lembro de se ter falado do desaparecimento do meu irmão. Em casa
continuou o mesmo silêncio de sempre: um silêncio espesso, uma vibração
imperceptível do ar. O meu pai passava o tempo a ler, embora nunca tirasse um
livro das duas prateleiras de baixo: os livros que escolhia, invariavelmente,
eram os da prateleira da estante onde não se alinhavam mais do que oito
volumes. Às vezes penso que lia o mesmo livro várias vezes seguidas, reiniciando
a leitura logo que chegava à última página, ou então que retrocedia e avançava
à procura de uma passagem precisa, por não me parecer provável que o processo
fosse aleatório. A minha mãe, por outro lado, estava quase sempre sentada ao pé
da janela da sala, puxando a cadeira mais para trás ou para diante, mais para a
esquerda ou para a direita, conforme as estações do ano e as horas do dia
derramavam a luz quase a pique ou a estendiam, oblíqua, leve, difusa, quase a
misturar-se à obscuridade da casa. Mas a maior parte das vezes era como se não
existisse. Eu entrava na sala à procura da minha mãe, e a minha mãe não estava:
sobre a mesinha ao lado da cadeira de verga viam-se apenas dois novelos de lã,
um azul, outro cinzento, as agulhas longas e uma espécie de tapete bicolor cada
vez mais pequeno, como se o tricot devesse sobretudo ao laborioso, lento,
trabalho de destrançar as malhas; eu entrava na cozinha à procura da minha mãe,
e a minha mãe não estava: sobre o fogão via-se uma chaleira com água quase a ferver,
e eu ficava muito tempo à espera e a minha mãe não chegava, e a água da
chaleira continuava assim, quase a ferver, como se fosse possível continuar a
ser aquecida sem nunca atingir o ponto de ebulição. Certa vez, num dia radioso
de Verão em que a minha mãe estava no fundo da sala, junto à janela, vi com
espanto que a luz a atravessava como se ela fosse transparente. Como se, aos
poucos, estivesse a ficar invisível. Apeteceu-me gritar. Apeteceu-me chamá-la.
Mas era como se o tempo tivesse parado e as coisas acontecessem apenas fora de
nós.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Não posso dizer que tenha lido todos os livros da biblioteca do meu pai.
Porque deixei alguns a meio; porque, achando outros mais monótonos ou
repetitivos, mas ainda assim fascinantes, saltava algumas páginas ou, mesmo, um
ou outro capítulo, depois de lhe passar os olhos de viés. Fosse como fosse,
nessa altura eu não podia saber que os livros das duas prateleiras de baixo
faziam parte de uma biblioteca impossível. A verdade é que, desde que saí de
casa, em 1979, nunca mais encontrei nenhum desses quarenta e nove livros nem vi
referência a um único desses onze autores. Tudo começou quando, certa vez, já
muito tempo depois de ter saído de casa, me apeteceu reler alguns dos meus
livros preferidos: "Tratado Sobre a Impossibilidade das Graças", por
exemplo, de Jorge Castilho Azevedo Ferreira, edições A Curva da Estrada; ou
"Os Lugares que Mudam de Sítio", de Vergílio Leão Rosa, edições
Pretérita. Pesquisei, interroguei, corri tudo e não encontrei uma única referência
aos títulos, aos autores, às editoras. E, no entanto, ambos os livros estavam
na biblioteca do meu pai: li-os, mais do que uma vez, de uma ponta a outra. Por
isso passei alguns anos sem conseguir compreender: não era fácil compreender
que o espólio da biblioteca do meu pai não pudesse ter mais do que oito volumes
e sete autores, e que, simultaneamente, constasse de cinquenta e sete volumes e
dezoito autores.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">No princípio, quando tinha onze anos, doze, as coincidências entre a vida e
a literatura pareciam-me normais. Os livros, para mim, limitavam-se a descrever
as coisas que já tinham acontecido e as coisas que haviam de acontecer. Como se
tudo já estivesse escrito nas páginas dos livros. Por isso não comecei por
estranhar quando, no "Discurso Sobre a Razão", de Luís Guimarães
Borges (edições Esporão, 1964), os pormenores de um acidente de bicicleta do
protagonista pareciam descrever o meu próprio acidente de bicicleta, ocorrido
mais de dez anos depois da publicação do volume. Por isso não estranhei quando,
imediatamente após o desaparecimento do meu irmão, recordei um trecho de
"A Avenida Imensa" em que, no final do sexto capítulo, podia ler-se:
"E foi então que ele subiu a rua como se deixasse o mundo atrás de si: os
olhos vazados, a passada lenta, a expiar as culpas dos outros. Era uma tarde
muito quente de fins de Junho: três rapazes estavam sentados numa manta e
olhavam-no sem compreenderem que o futuro e o passado se misturavam nesse
momento até à impossibilidade da reconciliação." E quando a minha mãe
desapareceu, em 1978, não achei estranho que, algum tempo depois, ao ler
"A Aurora Última" (edições Valdarada, 1965), se falasse de uma mulher
"de longos cabelos" que deixava o mundo, e as palavras do mundo, numa
manhã em que "a neve cobria os telhados das casas e os caminhos que não
levavam a lado nenhum".</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Lembro-me do momento exacto em que vi a minha mãe pela última vez. Foi em
Dezembro de 1978. A neve caía desde a noite anterior até cobrir de branco as
coisas todas: os telhados, as árvores, os caminhos. Eu acordara tarde, era um
sábado, e abrira ligeiramente a janela do quarto para sentir o frio a
entranhar-se-me vagarosamente no corpo. E foi então que a vi: a minha mãe subia
a rua a caminho da Curva da Mina e a imagem dela ia-se diluindo na quase
cerração do ar. E não deixava pegadas na neve: era como se já tivesse caminhado
nessa rua há muito tempo, como se o tempo tivesse coberto de neve as passadas
que dava. Penso ter gritado: "Mãe." Mas talvez apenas tenha
permanecido em silêncio, a replicar o silêncio de fora, a replicar o silêncio
da casa. Eu olhava e o corpo da minha mãe, mais do que a diluir-se na poalha
fina, parecia começar a ficar transparente, invisível. Como se estivesse a
desaparecer de si mesma. Não sei. O que sei é que em casa não se falou do
assunto. O que sei é que o meu pai continuava a passar os dias a ler, um livro,
depois outro, retirando-os da prateleira de cima, onde não havia mais do que
oito volumes e sete autores declarados. O que é certo é que, na mesinha ao lado
da janela da sala, havia duas agulhas e dois novelos de lã, um azul, outro
cinzento, como se o destino, que é o futuro, esperasse que alguém se sentasse
na cadeirinha de verga e começasse a tricotar um tapete bicolor.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Foi uma vizinha que me telefonou, no ano em que estamos, 2014, a dar
notícia da morte do meu pai. Tinham passado mais de trinta e quatro anos desde
que saíra de casa. Vivo na Bélgica, em Antuérpia, e os negócios quase me
impediram de chegar a tempo do funeral. Um avião para o Porto, depois um carro
alugado. Entrei na igreja e estranhei, contra a tradição, a meio do elogio
fúnebre, ver o caixão fechado: a tampa fechada sobre o corpo do meu pai. A
missa já decorria. Não perguntei a ninguém por que razão o rosto do meu pai
estava escondido sob uma tábua. Não perguntei, e recordei um texto antigo
segundo o qual um féretro era o andor em que, nos triunfos, se levavam os
despojos dos vencidos. E não tive coragem de pedir que abrissem o caixão: tinha
a certeza de que, abrindo-o, se veria que não havia ninguém lá dentro. Como se
o meu pai nunca tivesse existido ou não pudesse existir.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
.<br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">A vizinha Ermelinda, condoída em lágrimas, lamentando-se de a vida ser
assim como é, entregou-me a chave da casa dos meus pais. Regressado do
cemitério, ouvidas as condolências todas, entrei na casa de que saíra no
afastado ano de 1979. Era como se entrasse num templo. A salinha de baixo, a
escadaria em madeira a ranger sob os meus passos, o corredor, a sala, a
cadeira, a mesinha onde permaneciam as agulhas e os dois novelos de lã, a
cozinha, o meu quarto, o quarto do meu irmão mais velho, o quarto dos meus
pais. E a estante dos livros. Havia jurado nunca mais olhar essa estante, essas
três prateleiras, as lombadas desses livros. Mas não resisti, aproximei-me, olhei
a prateleira de cima, com oito volumes, e as duas prateleiras de baixo. E foi
então que descobri, além dos cinquenta e sete títulos, um outro: "O Futuro
já Aconteceu", de Henri-Marie Nikolayevich. Puxei da cadeirinha de verga
da minha mãe, que continuava ao pé da janela da sala, e abri o livro. Começava
assim: "Uma vizinha deu-lhe notícia da morte do pai. Nessa altura, em
2014, trabalhava em Amberes -- a que outros chamam Antuérpia. Quase não chegou
a tempo das cerimónias fúnebres. Entrou na igreja já com a missa adiantada e
estranhou que o caixão, contra a tradição, estivesse fechado." Parei a
leitura. Não queria acreditar. Mas, por outro lado, as peças encaixavam-se: os
livros das duas prateleiras de baixo contavam a história da minha família, ou
talvez a história do mundo: o que já tinha acontecido; o que, um dia, mais
tarde, mais cedo, havia de acontecer.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
.<br />
<div class="Body1" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span></div>
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Fui à procura de uma mala grande. Enchi a mala imensa, de couro, do meu
pai, com os cinquenta e oito livros da biblioteca. Arrastei-a a custo, guardei-a
na bagageira do carro alugado. Tinha um voo marcado, no Porto, para as dez da
manhã do dia seguinte. Eram duas da tarde. E não resisti: talvez nunca mais
tivesse uma oportunidade assim. Fui à loja do chinês, junto ao mercado, e
comprei três rolos, quinhentos metros cada, de fio de nylon. E subi a rua da
infância, da adolescência, até à Curva da Mina. Não havia ninguém em redor, não
se ouvia um ruído. Espetei no chão um prego caibral e, no prego, dei um nó ao
fio do primeiro novelo. Havia dois caminhos. Segui pelo que levava ao nascente,
deixando, atrás de mim, o fio estendido. Não havia árvores, não havia matos,
não havia ervas: a paisagem nua, sem nada, sem o ondulado dos montes, sem o
vinco das ribeiras ou dos rios. A própria terra parecia esboroada, peneirada
até ao pó de giz, até à limalha mais fina. Até ser tudo branco, tudo liso, tudo
irreconhecível. E eu deixava o fio atrás de mim e continuava. Sempre a direito.
E depois o novelo terminava e eu espetava no chão um outro prego e continuava a
caminhar, sempre a direito, deixando o fio de um outro novelo atrás de mim. E
já o fio do terceiro novelo estava a terminar quando cheguei à Curva da Mina:
ao ponto de partida. Procurei o prego espetado no chão, mas o prego tinha
desaparecido. Talvez o meu irmão se tivesse perdido nesse caminho e regressado
ao ponto de partida. Talvez a minha mãe se tivesse perdido nesse caminho e
regressado ao ponto de partida. Talvez tivessem regressado. Talvez se tivessem
perdido para sempre. O certo é que o caminho não levava a lado nenhum.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Olhei então o caminho que seguia na direcção do noroeste. Apeteceu-me
avançar, deixar-me perder nele ou encontrar-me, descobrir finalmente aonde
levava, compreender os segredos que guardava. Decidi-me. Hesitei. Desisti.
Porque, levasse aonde levasse, terminasse ou não no ponto de partida, tivesse
ou não um princípio e um fim, pareceu-me então evidente que esse era o caminho
que levava a mundo do esquecimento e das ausências.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="mso-ansi-language: PT;"><span style="font-family: Helvetica;">.<o:p></o:p></span></span><br />
<span style="font-family: Helvetica;"><span style="mso-ansi-language: PT; mso-fareast-font-family: Helvetica;">Nessa noite, no Porto, no hotel, preparei-me para passar a noite inteira a
ler o último volume da biblioteca do meu pai: "O Futuro já
Aconteceu", de Henri-Marie Nikolayevich. Peguei na mala e achei-a
estranhamente leve. Abri-a. E descobri com espanto que estava quase vazia. Lá
dentro, em vez dos cinquenta e oito livros que tinha arrumado, havia apenas
oito: os oito volumes da prateleira de cima da biblioteca do meu pai.</span><span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p></o:p></span></span><br />
<br />
<div class="Body1" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="mso-ansi-language: PT;"><o:p><span style="font-family: Helvetica;"> </span></o:p></span></div>
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-88181942402411252802015-08-19T17:56:00.002+01:002015-08-19T17:56:51.885+01:002. riscar o que não interessa<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSfiVlp5u0qu9ZXCczjl9JfwXCoUVvDDpGb_lGVYdmRAlVAiXUMNx-z76lvB8WRb7gL-xL16tYdZrqtAdAckyqCdmlZsxQAxd-b_IJXQ9wQp-MCJbmynRts_1BalP7fPFeKoB77Q/s1600/19_Ago+105.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="240" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSfiVlp5u0qu9ZXCczjl9JfwXCoUVvDDpGb_lGVYdmRAlVAiXUMNx-z76lvB8WRb7gL-xL16tYdZrqtAdAckyqCdmlZsxQAxd-b_IJXQ9wQp-MCJbmynRts_1BalP7fPFeKoB77Q/s320/19_Ago+105.JPG" width="320" /></a></div>
<br />
<br />
ter presente que<br />
a realidade é não é quer<br />
dizer é<br />
o que éjcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-67227735059591038942015-08-09T17:30:00.001+01:002015-08-09T17:30:13.847+01:001. tempo de caçaatira-lhe<br />
a ver<br />
se<br />
caijcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-55316712294308269652015-07-09T12:02:00.004+01:002015-07-09T12:02:54.760+01:00[as palavras]<span style="font-size: x-small;">jcb</span><br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwEcS_bhigh3BgqIVtNqcgmKYNOCNYLRvDnauxue441XZpvwp_LZTAaLB5J3kV2WEjM2_tyTLeerceD94z_u4DKxJUg5YAgm7Oiu4hJVRSptDDTKTwxsp9nhuVP5Nn13mzwbwv1g/s1600/R%25C3%2583.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwEcS_bhigh3BgqIVtNqcgmKYNOCNYLRvDnauxue441XZpvwp_LZTAaLB5J3kV2WEjM2_tyTLeerceD94z_u4DKxJUg5YAgm7Oiu4hJVRSptDDTKTwxsp9nhuVP5Nn13mzwbwv1g/s400/R%25C3%2583.JPG" width="400" /></a></div>
<div align="left" class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
As palavras<br />
lama<br />
e<br />
alma<br />
escrevem-se<br />
com as mesmas<br />
letras.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-12072148365834958732015-02-01T22:30:00.002+00:002015-02-01T22:30:21.194+00:00a ponte de carvalhelhos<span style="font-size: xx-small;">fotografia de jcb</span><br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7jtGui3A-gqsQz-a08Neq8VL7x-aqI3CSkU_t3fMMByRxgBGqWqheXOHKaoFL6IEH4g8PUp56Lnm-1AH5V6_Sm4MWyCgQfAPoBIZALLnB39JIYTyeI-blxYRJwlxOqr1blga4SQ/s1600/ponte_be%C3%A7a.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7jtGui3A-gqsQz-a08Neq8VL7x-aqI3CSkU_t3fMMByRxgBGqWqheXOHKaoFL6IEH4g8PUp56Lnm-1AH5V6_Sm4MWyCgQfAPoBIZALLnB39JIYTyeI-blxYRJwlxOqr1blga4SQ/s1600/ponte_be%C3%A7a.jpg" height="240" width="320" /></a></div>
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-86527731110749323442015-02-01T00:33:00.001+00:002015-02-01T00:33:21.988+00:00vilarinho secojcb<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_vpQXJZfuVWNXhlqhwxXUG5qKyoIFyNKAA_47ZoxqOERia0rjD-a569BFE7nQ4hGDEl814ccmy9-LVFZhQoq021Iju0H0kP9I_gMk0-bdBsgptKTvUn6OlxrvBOXz92-SJGZAng/s1600/vil_seco_2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh_vpQXJZfuVWNXhlqhwxXUG5qKyoIFyNKAA_47ZoxqOERia0rjD-a569BFE7nQ4hGDEl814ccmy9-LVFZhQoq021Iju0H0kP9I_gMk0-bdBsgptKTvUn6OlxrvBOXz92-SJGZAng/s320/vil_seco_2.jpg" /></a></div>
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-23380903218470863312015-01-24T02:25:00.001+00:002015-01-24T02:25:25.617+00:00Não davam cabo de tudoA minha avó explicava no seu jeito<br />
simples: "é que assim ao menos não davam cabo<br />
de tudo ao mesmo tempo". Por isso as raparigas<br />
diziam antigamente ao deitar as flores sobre <br />
<br />
os recém-casados (e mais tarde o arroz, escolhido<br />
por ao cozer aumentar tanto a porção inicial<br />
que sobre quase todas as <br />
restantes coisas podia simbolizar <br />
<br />
a abastança): "eu deito flores para vos abençoar<br />
[ou arroz, na versão tardia], <br />
e deito e torno a deitar,<br />
<br />
e que seja a mulher em casa <br />
sempre a governar". Que eles era mais boa-vai-ela<br />
e lances arrojados: matarem um javali <br />
<br />
com zagalotes ou desaparecerem para os brasis <br />
ou as franças a ganharem o sustento <br />
da família e já-gora a verem o mundo. Ou passarem <br />
manhãs e tardes de domingo inteiras <br />
<br />
na bêbeda com o pretexto do malhão <br />
ou do jogo do fito. E eram elas sempre <br />
que tratavam da casa. <br />
Aí, em o marido não metendo <br />
<br />
excessivamente a colher, sempre era certo <br />
haver uma toalha de linho em cima da mesa<br />
ou na corte um animal que se vendesse<br />
<br />
gordo em véspera de dias diferenciados.<br />
E tratavam da horta com aquele modo <br />
prosaico de desejarem apenas<br />
<br />
que os frutos ou os legumes crescessem<br />
enquanto eles nas feiras faziam<br />
mirabolantes negócios que se não metessem gajedo<br />
metiam vacas e espingardas ou uma 6.35 <br />
<br />
de defesa pessoal antes de rumarem <br />
a uma taberna a encharcarem-se <br />
com o pretexto de selarem negócios. Que ao menos lhes<br />
fosse dado a elas tratarem da casa: que assim<br />
<br />
ficava garantido esse governo<br />
enquanto os homens faziam apostas de vararem<br />
a tiro as tábuas de madeira ou os sinais de trânsito<br />
<br />
ou subiam em padiola a escada<br />
de pedra que levava da adega<br />
aos aposentos de dormir<br />
<br />
às quatro da manhã. Eles<br />
mandavam nas mulheres e no mundo<br />
e as mulheres deixavam que eles<br />
mandassem nelas e no mundo<br />
<br />
desde que na casa não tomassem conta de nada<br />
para não darem cabo de tudo<br />
ao mesmo tempo. Por isso as amigas<br />
não desejavam mais à noiva <br />
<br />
no dia do casamento<br />
do que Deus permitir que em casa<br />
fosse a mulher a governar<br />
<br />
enquanto os homens andassem no destino deles<br />
de serem felizes e conquistarem o universo<br />
e foderem tudo.<br />
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-66061416564190909572015-01-24T01:29:00.002+00:002015-01-24T01:29:58.798+00:00A girafaA girafa olha o relvado<br />
com uma sensação filha da puta de que<br />
vai ter que vergar a mola.<br />
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-8729665789363513512015-01-21T16:00:00.001+00:002015-01-21T16:00:36.468+00:00Mateus 4:18 Elas vinham contra a mim. Andava <br />
com o arrasto metia-lhes à frente e <br />
as suspindia. Em junho vêm para terra <br />
à desova. O pessoal as pisa <br />
e leva um esticai. Investem contra a gente<br />
maganas. Vão-se ao cimo da água a <br />
invistirem. Apanhava-as com o arrasto<br />
mas não podia tocar no ferro do arrasto <br />
impenas na parte do pau. Mesmo só dos pés<br />
no chão sentia o estremução delas. <br />
Depois chegava à praia e as <br />
descarregava. As punha na areia<br />
pareciam mortas as putas<br />
e ainda a darem-nos choque.<br />
Por aí se vê a admiração de na Galileia<br />
aos que lançavam as redes dizer-se que dizia<br />
Jesus que o seguissem<br />
que fazia deles pescadores<br />
de homens. Pois me admirava eu mó<br />
era se dissesse aos discípulos<br />
que pescassem tremelgas.<br />
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-79817753478103218232015-01-12T16:54:00.002+00:002015-01-12T16:54:38.119+00:00Adormecer longe de casa<div class="separator" style="clear: both; text-align: left;">
<span style="font-size: xx-small;">jcb.</span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEifKQrMGdGpFPV44tSQDT9L5hOsoshj_X9VzpOMWI2XzWLCWs3rEGN9tCXshkwbtEXh06tCti-X484XRMzGwpIRVkpz37L_UHxL_N9SBA6_hdzxv_ssugt-ewqBjGLirxCzBHFOFg/s1600/adormecer.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEifKQrMGdGpFPV44tSQDT9L5hOsoshj_X9VzpOMWI2XzWLCWs3rEGN9tCXshkwbtEXh06tCti-X484XRMzGwpIRVkpz37L_UHxL_N9SBA6_hdzxv_ssugt-ewqBjGLirxCzBHFOFg/s1600/adormecer.png" height="298" width="320" /></a></div>
<br />
<br />
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-27177844886982342862015-01-12T16:40:00.001+00:002015-01-12T16:40:05.092+00:00Caderno de andar. La Habana.<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjFyZgfIfpjxON2gjBCATOdTQ0sRZ9DMKX8oi6edGjf9vaH-_pWsdnIRaVoRd1iCuV0zG3GiZxtqf1mCUe2XyNcO4I-AbzUxoFVnvlCCMYUU1FMRKChBpLjNZhNnyfsjKGGSRSQDw/s1600/out___+001.png" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjFyZgfIfpjxON2gjBCATOdTQ0sRZ9DMKX8oi6edGjf9vaH-_pWsdnIRaVoRd1iCuV0zG3GiZxtqf1mCUe2XyNcO4I-AbzUxoFVnvlCCMYUU1FMRKChBpLjNZhNnyfsjKGGSRSQDw/s320/out___+001.png" /></a></div>
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-9668034829057793262015-01-10T03:08:00.001+00:002015-01-10T03:08:42.248+00:00Secret StoryÉ duvidoso que, atendendo aos termos<br />
contratuais, possa revelar o <br />
segredo. O meu advogado diz-me que <br />
tal-e-não sei quê. Arrisco <br />
e digo a verdade: não entrei no Desafio <br />
Final 3 porque tinha pêlos no corpo <br />
e nenhumas tatuagens nos braços. Nem <br />
no pescoço. Nem nas pernas. <br />
Mostrei, em último recurso, erguendo<br />
a meia manga da t-shirt, uma <br />
mancha escura no ombro <br />
de nascença que quase parece <br />
uma tatuagem. Nada. Não era suficiente. <br />
Ainda chamaram lá um assessor a decidir -- <br />
mas nada. E assim se vê como <br />
é tão ténue a fronteira entre <br />
o anonimato e a <br />
glória. Continuarei a escrever<br />
poemas que ninguém lê<br />
até me depilar e,<br />
não obstante o exposto no<br />
Levítico 19:28, tatuar-me.<br />
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-18592829642262315412015-01-09T18:56:00.001+00:002015-01-09T18:56:44.150+00:00outra vezUM ROSTO ESTRANGEIRO<br />
<br />
não chegavam a olhá-los de frente<br />
olhos nos olhos<br />
com receio de que uma qualquer forma de afecto acabasse por aproximá-los<br />
limitavam-se a dar-lhes água e a inventar uma desculpa <br />
para se fecharem de novo e<br />
ficarem a olhá-los por detrás dos vidros das <br />
janelas das casas enquanto eles vagarosamente se afastavam<br />
era assim que estava escrito<br />
nenhum sentimento nos deve ligar aos que estão de passagem<br />
nenhum sentimento nos deve ligar aos que desconhecemos<br />
por isso não os olhavam de frente e não faziam perguntas<br />
até a esse dia em que alguém decidiu ficar por mais tempo na rua<br />
e olhou de frente um rosto estrangeiro<br />
até ao sobressalto de compreender que <br />
havia alguma coisa nesse rosto que pertencia ao seu próprio rosto<br />
que havia alguma coisa nos seus gestos que<br />
era já parte dos seus próprios gestos<br />
e fumaram juntos e falaram de lugares diferentes do mundo<br />
como se ambos fossem estrangeiros e<br />
assim começassem aos poucos a deixar de sê-lo<br />
ou pelo menos a deixarem de <br />
ser estrangeiros um do outro<br />
como se ambos andassem há muito tempo perdidos<br />
e agora se encontrassem para a possibilidade fabulosa de<br />
caminharem juntos<br />
e se perderem juntos<br />
nos caminhos do mundojcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-22672491710020145892015-01-09T18:09:00.004+00:002015-01-09T18:11:39.680+00:00ISTO SÓ EM VILARINHOFoi há seis anos que dona Marquinhas anunciou o propósito de recuperar a tradição do presépio de Vilarinho que antigamente se montava no Largo da Escola. Fez as contas à reforma e às poupanças e começou por adquirir a imagem do Menino Jesus em tamanho natural. E, passados quatro meses, a Nossa Senhora. E depois, espaçadamente, o São José, o burro, os Reis Magos, o pastor, as ovelhas. Seis anos nisto até que a 12 de Dezembro último, enfim, se começou a montagem. Todos muito rendidos à emoção, quase a epifania, quando se dá um revés. Diz a Lena: «Ó Marquinhas, carai, então os teus Reis Magos, os três, são brancos co-má-gente? Não saberás que um era preto retinto?»<br />
<br />
Lá teve, pois, que se encomendar a Braga, com pedido de urgência, um preto. A temer-se, tão em cima da hora, que já nem chegasse a tempo. Quis Deus que chegasse: a 23. E logo nessa tarde, sem demoras, se recomeçaram os trabalhos de colocação das figuras: já o serrim nos caminhos, já o papel azul de lustro nas ribeiras, já o musgo no resto. <br />
<br />
Até que a Lena se apercebeu da falta da vaca: «Olha-me um presépio só com o burro.»<br />
<br />
Outro revés. Este pior: anunciada a inauguração, o padre Martins convidado à bênção, as rabanadas e as filhoses de jerimum à espera. <br />
<br />
Mas foi então que o Tó Maluco, o único declarado no nome de entre os doze que existem na terra, se fez ouvir: «Descansem. Eu é falar com o doutor e resolve-se tudo.»<br />
<br />
Diz-se que em todas as terras há um maluco. Em Vilarinho são doze. Quem o afirma é o doutor Augusto, que parece que se inclui nas contas. A Marquinhas também ninguém a tira do rol. Isto, somado ao Tó, é ver-se a quem a coisa começava a ficar entregue.<br />
<br />
O certo é que a 24, ao anoitecer, o Artur Vicente estacionou a camioneta no Largo da Escola e viu-se a descarregar e a fazer deslizar sobre o musgo, ajudado pelo doutor Augusto e o Tó Maluco, um vulto de pescoço alto.<br />
<br />
E hoje, 25 de Dezembro, não sendo ainda meio-dia, já o povo das aldeias à volta, e mesmo de Chaves, pois tão longe e rapidamente andou a notícia, se acotovela em redor do presépio. <br />
<br />
É quando alguém diz: «Isto só os malucos de Vilarinho.»<br />
<br />
Inveja. Porque o certo é haver acima de duzentas pessoas a olhar, deslumbradas, o único presépio do mundo com quatro Reis Magos e uma girafa, desaparafusada na noite anterior do carrossel que o Artur Vicente estaciona durante o Inverno no jardim do doutor Augusto, a fazer de vaca.<br />
<br />
<br />
<i><span style="font-size: xx-small;">[Texto publicado originalmente na revista SÁBADO, nº 556, edição de 23 a 29 de Dezembro de 2014]</span>
<strike></strike></i>jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-43591701994136131522015-01-03T04:34:00.000+00:002015-01-03T04:34:12.062+00:00[O amor]Se não lhe faltasse<br />
o sentido de orientação<br />
era uma ave<br />
o amor.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-13040773753608264672015-01-02T00:52:00.002+00:002015-01-02T00:52:59.235+00:00dos poemasEu dava tudo por escrever alexandrinos.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-57328109136506005042015-01-01T18:45:00.000+00:002015-01-01T18:45:24.654+00:00a literatura é sobretudo o enredo, a mensagem- E não tens vergonha, pá? Então bateste na tua mãe?<br />
- Não, levava-as eu.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-36063502421845087422015-01-01T18:43:00.001+00:002015-01-01T18:43:24.665+00:00ainda sobre a literatura 2A minha tia Almerinda mandou-me uma SMS a desejar um foliz ano nobo. Não se pode dizer que a minha tia Almerinda seja particularmente devotada às letras. Mas eu emocionei-me e quase me vieram as lágrimas aos olhos. É que sou dos que acham que o importante é a história, o enredo, a mensagem que se quer transmitir. A linguagem é o menos.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-83853603600844941972015-01-01T18:36:00.001+00:002015-01-02T01:03:14.318+00:00ainda o caso espírito santoO meu tio António ficou de pé-atrás. E disse-lhe:<br />
- Ó Estriga, mas assim perdes dinheiro. Se compras a cinquenta e vendes a quarenta e sete e quinhentos...<br />
E ele:<br />
- Mas perco pouco.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-46613818817993754612015-01-01T18:31:00.001+00:002015-01-01T18:31:28.253+00:00ainda sobre a literaturaBrilhem mais, brilhem menos, há estrelas que pernanecem o ano todo acima do horizonte. Não é como aquelas totós, cheias de brilhozinho e aparente grandeza, que, vai-se a ver, deixam de ver-se quando menos-se-espera. O Sporting, com estrelas das que brilham pouco, mas que são circumpolares, foi a Guimarães e deu-lhes duas batatas. Isto podia ser uma metáfora. Mas não é: é só porque alguém tem que dizer estas coisas. jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-44116447382612785282015-01-01T18:10:00.001+00:002015-01-01T18:10:51.119+00:00é páprenderesEu:<br />
- E o tipo isto e aquilo, e ó carai, que já nem o posso ver.<br />
Ele:<br />
- Mas tens assim tanta admiração pelo gajo?<br />
E eu:<br />
- O quê, mó? Mau que não-te-percebo. E à-mor-de-quê é que dizes isso?<br />
E ele:<br />
- É que eu só falo mal de quem admiro.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-85443658512426180502014-12-27T17:07:00.001+00:002014-12-27T17:20:12.196+00:00ainda O Uso dos VenenosO meu livro de poesia "O Uso dos Venenos", edições Língua Morta, foi referenciado, nas habituais escolhas dos melhores livros publicados em Portugal durante o ano, por dois críticos literários do jornal Público (José Riço Direitinho e Luís Miguel Queirós) e por dois do Expresso (Pedro Mexia e José Mário Silva). O livro, que se vende ao preço de 13 euros e que saiu numa tiragem de duzentos exemplares, deve estar longe de se encontrar esgotado. Além dessas referências na imprensa, que valem o que valem, acrescente-se a opinião do meu tio Alberto e da minha prima Esmeralda, que consideram "O Uso dos Venenos", respectivamente, "um livro que tem ali umas coisas que dá que pensar" e "uma obra que, não fosse a gente não entender metade do que lá se diz, tinha que se lhe dissesse". <br />
<br />
O livro pode ser adquirido, por exemplo, na Livraria Letra Livre (www.letralivre.com), ou pedido directamente à editora através do mail edlinguamorta@gmail.com. <br />
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-46238036549004735962014-11-02T03:02:00.000+00:002014-11-02T03:02:06.313+00:00um disco dos doorsCoisas que chegámos a pensar<br />
que guardaríamos para sempre. Um disco <br />
dos Doors. Umas calças de ganga. Um seixo <br />
rolado da Presa das Tílias. Um livro<br />
<br />
de Teixeira de Pascoaes. Uma<br />
carta de amor com a letra ainda trémula<br />
de os sentimentos de quem escrevia<br />
se sobreporem aos cuidados<br />
<br />
da caligrafia. Um mapa das estradas. <br />
Coisas assim. A vereda a caminho do rio<br />
onde pela primeira vez as nossas mãos <br />
<br />
por um momento tão breve<br />
chegaram a tocar-se. Uma dança<br />
num baile de aldeia. Uma viagem de automóvel <br />
<br />
sem gps. O odor húmido<br />
dos pinheiros bravos depois dos incêndios. <br />
Coisas assim<br />
<br />
que um dia julgámos<br />
que havíamos de guardar como tesouros<br />
inconsumíveis. E no entanto<br />
<br />
fomos perdendo tudo<br />
até os bolsos ficarem vazios<br />
e o coração apagado como num incidente<br />
de inverno. E nem a memória <br />
<br />
de tudo isso pode agora valer-nos. <br />
Porque a memória<br />
recupera sempre o que não temos<br />
ou já não podemos ter.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-45506894690564570002014-10-26T03:23:00.002+00:002014-10-26T03:23:29.453+00:00notas do caderno de apontamentos do meu avô franciscoOs<br />
que entram no mundo<br />
pelo silêncio das florestas.<br />
Os que vêem apenas<br />
quando a luz<br />
os cega.<br />
Os que repetem<br />
em voz alta<br />
os nomes dos frutos.<br />
Os que procuram até ao fim<br />
a árvore<br />
dos significados.<br />
Os<br />
que não<br />
acreditam.<br />
Os que não temem<br />
o frio<br />
do inverno.<br />
Os<br />
que não têm<br />
contas a prazo.<br />
Os que chegam sempre<br />
tarde<br />
às paragens dos autocarros.<br />
Os que se esquecem<br />
de riscar os dias<br />
nos calendários.<br />
Os que se recusam<br />
a serem jovens<br />
para sempre.<br />
Os que guardam<br />
as sementes<br />
nas gavetas das cómodas.<br />
Os<br />
que não têm<br />
pátria.<br />
Os que deixam<br />
entre as folhas dos livros<br />
os retratos antigos.<br />
Os<br />
que enlouquecem<br />
devagar.<br />
Os <br />
que têm<br />
a obsessão dos mapas.<br />
Os<br />
que se rendem<br />
à linguagem.<br />
Os que crêem <br />
no poder obscuro<br />
dos acasos.<br />
Os<br />
que olham <br />
as estrelas.<br />
Os<br />
que se<br />
perdem.<br />
Os<br />
que não esperam nada<br />
do mundo.<br />
Os<br />
que não têm nada<br />
a perder.jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-13093868.post-3221771103242278872014-10-15T02:17:00.001+01:002014-10-15T02:17:27.578+01:00(poema antigo)FADO<br />
<br />
Gostava de escrever letras de fado.<br />
Falar de um coração que não existe<br />
se a dor o não tocar ou não for triste,<br />
se o mundo não ruir, desmoronado<br />
<br />
de tanta vil angústia e desalento.<br />
Gostava desses temas nos meus versos:<br />
de ter todos os dias mil pretextos<br />
pra invocar um crime ou um lamento,<br />
<br />
a insídia, um aneurisma, um anexim<br />
antigo, um nó fatal na coronária,<br />
traições, o luto, as penas do inferno.<br />
<br />
Gostava tanto de escrever assim.<br />
Detesto a minha obra literária.<br />
Detesto ser poeta e ser moderno.<br />
<br />
jcbhttp://www.blogger.com/profile/10484236844947262783noreply@blogger.com