sábado, abril 09, 2011

[pareces-me um gajo porreiro]

A nossa história, feita de cruzamentos e desencontros, começou na sala dezanove do Liceu. Na primeira aula do primeiro trimestre. Penso que éramos as únicas novidades numa turma onde toda a gente se conhecia dos anos anteriores. Ela vinha de uma escola nãoseidonde, eu vinha do ciclo de Vidago. E quis o destino que ficássemos juntos, a partilhar a mesma mesa com tampo de fórmica de um amarelo debotado. Meti conversa no intervalo grande da manhã. Sentados no parapeito da janela em frente à sala de aula. Eu com aquele ar de aprendiz de artista de cinema a dizer-lhe como a achava fabulosa e a perguntar-lhe o nome. «O meu nome foi dito na chamada. Se o não recordas é porque não te interesso.»

Acabara de cumprir dezassete anos e o meu insucesso com as mulheres era de uma evidência que cheguei a temer que estivesse inscrito na testa, ou nas faces, em letra de imprensa. Mas andava nos treinos, começava a esboçar umas tácticas. Não estava era preparado para lances tão decisivos e dramáticos, para cortes tão radicais. Atrevi-me, ainda assim, como naqueles momentos em que acreditamos que é tudo ou nada. E disse-lhe: «Claro que me interesso. Nunca vi uma rapariga tão bonita na minha vida.» Ela ficou em silêncio. Sorriu apenas. Como se sorrisse para dentro dela. E entrámos, ao toque, para a aula de Ciências Físico-Químicas.

Só ao chegar a casa, já noite, já depois de apanhar a camioneta da carreira no Jardim do Bacalhau, já depois de passar Curalha e Casas Novas, já quando bebia uma imperial no Jeremias com o Zé Manel, encontrei o bilhete no bolso do casaco. Só podia ser dela. Só mo podia ter deixado durante as aulas. Dizia apenas: «Amanhã 17 horas Adega Eiffel.»

O dia seguinte passou a correr. Às cinco em ponto entrei na Adega do Faustino. A pista parecera-me fácil: havia a conhecida história que atribuía a Eiffel, ou à sua escola, o projecto do Faustino. Ou, pelo menos, da deliciosa estrutura do tecto, desenhado numa teia elegante de ferro e madeira. E, de facto, ela lá estava, com a Teresa, ao fundo, num entusiasmo ruidoso que só não era superior à inépcia demonstrada no lançamento das pequenas malhas do jogo do sapo. O orgulho, no entanto, deixou-me ao balcão, apenas lhes acenei num cumprimento vago, pedi um branco traçado. Tinha a certeza de que ela não tardaria a aproximar-se, a desnovelar conversa, a retomar o fio do mistério que começava a alvoroçar-me. Mas não. Passaram-se uns cinco minutos, uns dez minutos quando muito, e já elas saíam, rindo, cúmplices, quase sem se dignarem olhar-me. Eu não contive um «filha da puta» em voz alta. Mas elas já não podiam ouvir-me. E os meus parceiros de balcão não esboçaram um gesto que demonstrasse terem achado desusada a terminologia. Pedi a conta. E, com os trocos, recebi um envelope. «Pediram-mo que lho entregasse.» A caligrafia era a mesma do bilhetinho inicial: «Para o José Carlos.» E, no interior, um novo recado em papel-manteiga fez-me regressar o sobressalto: «Mereces-me se adivinhares o nome da minha mãe. Tem doze letras. ‘Anagrama’ é a palavra-chave. Disporás de sete pistas. Talvez descubras antes da última. Não fales comigo até me dizeres as duas palavras desse nome próprio com doze letras.»

E foi assim. Durante quase dois meses, a intervalos irregulares, recebi sete mensagens nas situações mais inverosímeis: duas chegaram-me por correio normal; uma foi-me entregue num pavilhão do Tabolado, na feira dos Santos, por uma moça que fazia os trocos das fichas dos matraquilhos; uma outra deu-ma a Adelaide do Jeremias com a explicação de que a tinha deixado ao meu cuidado o viajante dos finos; e as restantes foram-me aparecendo na mochila de ginástica e nos bolsos dos casacos. Da sétima mensagem dei-me conta já em casa, ao deitar-me, no último dia de aulas antes das férias do Natal.

Tinha, portanto, sete pistas para decifrar um enigma. Os recuos iam sendo mais que os progressos; mas o desânimo não chegou nunca a ultrapassar os repetidos momentos de júbilo sempre que avançava na desmontagem das cifras.

A primeira pista remetia de forma óbvia para um topónimo: «As árvores das amoras são um dos lugares»: Amoreiras, claro. A segunda também não foi difícil de resolver: «Um SEREME invertido no concelho de Valpaços» invocava, naturalmente, a igreja de Santa Maria de Émeres (eu lia umas merdas). «Os cachorros de Leocádia» permaneceu durante muito tempo imune à decifração. «Um campanário no Calvo Grande» deu alguma luta; mas, com a ajuda do meu amigo Luís Moura, cada vez mais entusiasmado com os enigmas e seduzido pelo mistério em que eu o tornara cúmplice, cheguei a outro topónimo: Calvão. Havia mais uma pista fácil: «Com mais um S era um Osso» só podia significar Oso, embora isso não nos dissesse coisa absolutamente nenhuma. E foi ainda o Luís Moura, muito calhado com a história da cidade, que me explicou que «É a igreja que foi do Bispo Idácio» só poderia significar uma referência à Igreja Matriz de Chaves, ou de Santa Maria Maior. «Perdizes de São Miguel», enfim, era pista com que não atinávamos: tempo de colheitas, riqueza cinegética?

Mas na noite de consoada, à mesa cheia de copos do café do Jeremias – com o fogo lá fora a subir as labaredas à altura dos fios dos telefones e a pô-los em risco –, o Luís Moura, às tantas, bateu com violência no tampo da mesa, virou-se para a Adelaide e disse, quase num grito: «Cerveja para todos.» Puxou da folha A4 onde, há vários dias, íamos alinhavando nomes e frases. Eu quase não respirava. Sentia o desassossego de quem se aproxima do único segredo do mundo, da revelação, de um corpo que não tardaria a pertencer-me.

Eis as notas que era possível compor:

1) Amoreiras. 2) Santa Maria de Émeres. 3) Leocádia [igreja de Santa Leocádia? Ver se a igreja tem cachorros ou gárgulas]. 4) Calvão [ver se a igreja de Calvão tem um campanário singular]. 5) Oso [ver…]. 6) Igreja de Santa Maria Maior. 7) Perdizes?/São Miguel?/Vilar de Perdizes/Igreja de São Miguel?

Não queria acreditar. «Meu Deus, parece definir-se um padrão: igrejas.» «Claro», respondeu o Luís Moura, já calmo, um sorriso a rasgar-lhe o rosto. «Maria Mantela. Estas pistas parecem remeter para a lenda de Maria Mantela. É só um momento.» E desapareceu. Uma hora depois lá estávamos, de novo, de roda das pistas e de um artigo do padre Lourenço Fontes. «Não conheces a lenda de Maria Mantela?» Eu que não. E então o Luís explicou-me.

Pelos primeiros anos do século XIV um abastado sujeito da Vila de Chaves, passeando com a esposa, encontrou uma mulher com dois filhos gémeos que lhes pediu esmola. Fernão Gralho, assim ele se chamava, condoeu-se da pobre. Mas Maria Mantela, a esposa, colocou em dúvida a honestidade da mulher, porque nenhuma mulher de um só homem poderia gerar de uma só vez mais que um filho. Acontece que, alguns meses depois, Maria Mantela, na hora do parto, teve, um após outro, sete filhos. Com o marido ausente numa caçada, e aflita lembrando-se do que dissera à pobre mãe de duas crianças gémeas, encarregou a ama de lançar às águas do Tâmega seis dos filhos que acabara de parir. Estava a ama a meio das poldras quando apareceu Fernão Gralho e descobriu o que se passava. Ordenou à ama que regressasse a casa e informasse a senhora do cumprimento das ordens. Fernão pegou nas seis crianças e confiou-as, em diferentes aldeias, a diferentes amas. Dez anos depois solicitou à esposa que preparasse um lauto banquete para festejar o Ano Novo com seus especiais convidados. À mesa, quando Maria Mantela chegou com o banquete, estavam sete jovens todos iguais em feições. «Qual deles é o teu filho?», perguntou Fernão.

«Maria Mantela. As pistas remetem para a lenda de Maria Mantela» – insistia, eufórico, o Luís. «Estas sete crianças tornaram-se padres. E cada uma delas acabaria por fundar uma igreja com a invocação de Santa Maria: Santa Maria de Moreiras, Santa Leocádia, Santa Maria de Calvão, Mosteiro de Oso, Santa Maria Maior, Santa Maria de Émeres, São Miguel de Vilar de Perdizes.»

O resto das férias passou vagarosamente. Desesperadamente devagar. É claro que faltava decifrar o segredo final: o nome da mãe da minha apaixonada. Mas isso parecia agora o mais fácil. Como dizia o bilhete do Faustino, ‘Anagrama’ era a palavra-chave. O segredo final só poderia ser um anagrama de Maria Mantela. Peguei num lápis. Papel. Risquei letras, alinhavei palavras. E depressa cheguei ao único nome possível: doze letras: Mariana Telma…

No intervalo da primeira aula do segundo trimestre, no primeiro intervalo da manhã, puxei a minha apaixonada para um canto. «Decifrei o segredo. A tua mãe chama-se Mariana Telma.»

Ela olhou-me semicerrando os olhos. Como se a tivesse surpreendido. Como se não esperasse a minha capacidade de decifração dos enigmas. E respondeu:

«É verdade. Acertaste. Mas vens tarde. Fernão Gralho escondeu o segredo durante dez anos. Tu demoraste vinte dias a descobri-lo. É um avanço. Mas há uma semana que o teu amigo Luís Moura me revelou a resposta. Acertou primeiro. Temos estado juntos. Passámos juntos o fim de ano. Somos namorados. Talvez me venha a arrepender, não digo que não: tu pareces-me um gajo porreiro.»




publicado originalmente aqui: http://chaves.blogs.sapo.pt/