BEM CERTO é que uma coisa puxa outra e as conversas são como as cerejas. Estávamos a falar dos resultados das eleições e o meu amigo recuou um pouco mais de um ano para trazer à baila esse fim de tarde mágico em que o glorioso benfica venceu o everton por cinco golos sem resposta. Ainda hoje os ingleses devem acordar a meio da noite a magicar e a procurar compreender que passes de bailado foram aqueles que levaram os homens de goodison park a encolher-se e a perder o norte. E o mais certo é que depois adormeçam de novo por dentro de um pesadelo que é feito de memórias da perfeição ofensiva da equipa de lisboa. Porque a magia costuma ter sobre as pessoas esse efeito que é intrínseco à própria definição do termo: uma espécie de entorpecimento deslumbrado. Os de liverpool vinham para a segunda parte com um único golo de desvantagem. Ainda começaram por levantar a cabeça ligeiramente. Mas óscar cardozo marcou aos 47 minutos e voltou a marcar aos 48 minutos. E depois luisão deve ter achado que o melhor seria não deixar arrefecer o motor do ataque e voltou a meter a bola dentro das redes quase logo a seguir: corria o minuto 52. O meu amigo fala dos cruzamentos deslumbrantes de di maria ou das velocíssimas e exemplares transições ofensivas. Mas fala sobretudo da multidão de quarenta e cinco mil pessoas que assistia ao jogo e da força que podem ter quarenta mil pessoas a gritar ao mesmo tempo por algo em que acreditam e os leva a sair de casa para se juntarem a outros que partilham uma crença.
O MEU AMIGO retoma a conversa das eleições do passado domingo. E fala dos votos em branco. E procura convencer-nos da importância de refletirmos sobre o significado de um voto que não entra diretamente nas contas de nenhum dos seis candidatos. Mais de cinco milhões de pessoas ficaram em casa. Tinham os seus nomes inscritos nos cadernos eleitorais e resolveram ficar em casa. Mais de metade dos eleitores ficaram em casa e deixaram os outros decidir por cada um desses cinco milhões. Mas houve cento e noventa mil pessoas que deram baixa dos seus nomes nos cadernos eleitorais e votaram em branco. Não ficaram em casa. Não abdicaram do exercício de um direito que talvez só valorizemos verdadeiramente se um dia o não tivermos de novo e seja necessário começar a lutar do princípio para voltar a pertencer-nos. A verdade é que houve mais de cento e noventa mil pessoas que votaram em branco. E cento e noventa mil pessoas são mais de quatro vezes as pessoas que assistiram ao benfica a derrotar o everton num fim de tarde de outubro fascinante de comunhão e delírio. E o meu amigo relembra que o voto em branco não tinha outdoors nem comícios nem caravanas nem tempo de antena e que foi o único a não ser entrevistado pela judite de sousa. E que cento e noventa mil votos em branco devia querer dizer alguma coisa. E que talvez fosse importante discutir o significado disso no intervalo dos discursos eufóricos ou resignados.
MAS EU JÁ ESTAVA farto da conversa. Até porque votei naquele senhor da madeira que se chama qualquer coisa coelho e o caso começava a fazer-me prurido; porque só então discorri que houve mais votos em branco do que no meu candidato-revelação.
Publicado no Jornal do Algarve.