sexta-feira, abril 01, 2011

[um hotel em havana: dezembro de 1946]

1.

Não é consensual o inusitado elogio
na conferência inaugural
ao sistema democrático:
«a eleição livre de San Martin
é uma espécie de caução.» Mayer
Lamsky explica pacientemente
que não há lugar a um revólver
onde a regra instituída puder
substituí-lo com vantagem
dos interesses.


2.

Vito Genovese tinha acabado de fazer
quarenta e oito anos e era cada vez mais óbvia
a assimetria do seu rosto. A recepcionista
do Hotel Nacional olhava-o fascinada
a imaginar até onde poderia levá-lo essa quase
afável metade esquerda sem um vinco
e sem o arqueado da sobrancelha
que do outro lado parecia erguer-se em permanência
na direcção dos desastres. Às dezoito e quinze
do dia vinte e quatro de dezembro
de mil novecentos e quarenta e seis
Lucky Luciano veio impaciente do terraço da suite 212
a blasfemar contra os atrasos.
E foi o próprio Mayer Lamsky que ligou
aos gritos para a recepção a perguntar se alguém
vira por acaso Vito Genovese. Mas a menina
que atendeu não saberia como explicar
que talvez a reorganização mundial dos mercados
de narcóticos e jogo clandestino
tivesse que esperar mais um pouco
até a colega sair da salinha das bagagens
onde procurava a gritar de prazer
os segredos da face esquerda
de um rosto.


3.

Um jovem fascinado com as glórias
do mundo afastou-se do grupo
e saiu pela porta de serviço
do piso inferior.
Atravessou os jardins
e virou à direita a caminho do Malecón.
O silêncio e uma calma imprevista começavam
enfim madrugada adentro
a desenhar-se depois da música e dos risos
voláteis da noite. O jovem encostou-se
ao paredão a fumar um cigarro e a deixar
os olhos correr atrás da espuma
da ondulação de um barco a deslizar
vagarosamente sobre as águas
na direcção do Castillo del Morro.
Quando regressou ao Hotel Nacional
viu Lucky Luciano num dos sofás da entrada
com a cabeça enterrada nas mãos
e imaginou que por um instante poderia
atravessá-lo a nostalgia da invisibilidade
passeando sob um céu estrelado da Sicília
nos campos de oliveiras envolventes do pequeno
povoado de Lercara Friddi
como se até os assassínios de Masseria
e Maranzano participassem já de um
mesmo plano de regresso
a um lugar que deixou de pertencer-nos.
Mas Franck Sinatra estava com
sono e subiu ao quarto e deitou-se
a pensar nas glórias do mundo
e a reflectir sobre coisas tão abstractas
como o sentimento da honra.


4.

Era de supor que a conciliação
ou a procura de bases mínimas
de consenso não exigiriam esforços
num grupo de conferência de interesses comuns
fechado à chave contra o ruído
das regras. Mas Joe Bonanno
está exausto e vem por instantes
sozinho aos jardins a procurar
um intervalo na mediação
a que é chamado em permanência por
uma antiga tradição de consensos.
É o penúltimo dia do encontro
e será preciso ainda mediar
os conflitos que parecem levar
Luciano e Genovese a
uma irremediável dissensão.
Ao fundo emergem como um espelho
as águas do Atlântico. Joe
Bonanno fecha os olhos e depois regressa
ao interior do hotel com a sensação estranha
de que a transparência dessas águas
o persegue ainda a caminho
do salão de banquetes como
as luzes de um casino
onde não houvesse
cartas marcadas.


5.

Em Havana há sinais de que
a oposição a Trujillo parece irradiar
como um vírus. Como se os países deixassem
de ter uma fronteira delimitada nos mapas antigos
e se estendessem pelos vales
e pelas cordilheiras
definindo novos territórios. Como se Cuba
ou Bolívia ou Porto Rico
fizessem parte de uma mesma
inverosímil geografia. Isto defendia um jovem
universitário do segundo
ano preparando-se para controlar
a Federação de Estudantes.
Mas em nenhum momento
o nome quase desconhecido de Fidel
de Castro Ruiz foi pronunciado
durante as várias
sessões da conferência
em que se discutiam casinos e narcóticos
e as potencialidades nunca verdadeiramente
relevadas da indústria dos têxteis.


6.

Yoani explicou às amigas
que Albert Anastasia lhe pareceu
um homem igual a todos os outros.
Que provavelmente o poder
e a desumanidade
não serão relevantes
nas coisas
do amor.