3.
Leonardo olhou o desenho do enviado da Corte e fascinou-o essa representação do real. Não tanto por o desenho representar a realidade: mas por reinventá-la.
É certo que se implantam em três linhas ao longo de uma légua as cabanas de colmo e as poucas casas de adobe e cobertura de telha onde vivem os mais de cinco mil habitantes da Praia de Monte Gordo: mas era preciso um desenho para representar essa realidade. Porque de nenhum ponto se tem uma percepção do conjunto. A quem chega pelo Norte, pelas marinhas do esteiro da Carrasqueira, o aglomerado novo há-de parecer um pequeno conjunto de choças erguidas por entre o ondulado dos relevos dunares; a quem chega do nascente, das bandas do Guadiana, seguindo pela vereda que corre na orla do pinhal do concelho, a imagem que se realça é a da igreja de Nossa Senhora das Dores e de uma espécie de largo que não é senão um breve descampado de areia; antes, de um e outro lado, dez cabanas iguais. E tudo é tão igual que estando em qualquer lugar do aglomerado é como se estivéssemos em todos os outros.
Mas o desenho do enviado da Corte reinventa cada minúscula parcela, esbate a ideia de um lugar abstracto onde se misturam patrões de xávega e gente adventícia fugida à justiça por delitos e más obras: uma rua específica, uma cabana específica, uma específica casa de adobe: onde vivem, onde trabalham, onde vagabundeiam, onde circulam aladores e mestres de alar, cirurgiões e estanqueiros, carpinteiros e soldados de infantaria, capitães e tanoeiros, sapateiros, costeiros, padeiros, mestres de iate.
O mundo é um desenho. E a realidade é a representação que se faz dela.