6.
Fernanda tinha quê? quinze, dezasseis anos. Levantei-me, abri a porta do quarto e vi-a pela primeira vez. Estava escuro. A luz da vela iluminava apenas uma parte do seu rosto, uma parte do seu corpo. Pareceu-me uma criança assustada. Vinha chamar-me para a ceia. «Que estava na hora, senhor engenheiro.» Desci. Na sala separada da taberna por uma cortina havia três pequenas mesas quadradas e, ao fundo, uma mesa comprida, estreita, de castanho, duma única tábua. O Mendes sentou-se a meu lado, «se eu não me importava que ceássemos juntos». Continuava a chover. Chovia sempre. A água batia nos vidros da janela, ouvia-se o barulho da chuva a cair no telhado e nas coberturas de latão dos anexos. Estava frio, desconfortável; o Mendes esfregava as mãos; gritou para dentro: «então, a comida?» Levantou-se; acompanhei-o. Passámos a cortina e a porta por detrás do balcão da taberna e entrámos numa divisão interior. A lareira acesa: o lume dos corgos de ervideiro, as brasas dum vermelho incandescente. Fernanda, de roda do pote, tirava os grelos com uma escumadeira, colocava-os cuidadosamente numa travessa ao lado da carne cozida. Olhei em redor: as paredes e as telhas da cozinha muito escuras de fuligem, as malgas e os pratos alinhados num louceiro, a masseira, o tendal. E, arrumado a um canto, encostado à lareira, uma espécie de banco corrido e uma tábua suspensa na vertical agarrando-se à base por dois prumos: um escano. Nunca tinha visto um escano. Nunca tinha estado num lugar assim, à lareira, o lume dos corgos de ervideiro, as brasas dum vermelho incandescente. Perguntei ao Mendes se não podíamos cear ali. «Que sim.» Sentámo-nos e rodámos sobre a cabeça a tábua suspensa por dois prumos até que ficou assente nos paus laterais, a fazer de mesa. Fernanda servia-nos. Comemos carne de porco cozida, da banda, e grelos untados com a gordura da carne. Lá fora continuava a chover; chovia sempre. Ouvia-se o barulho da chuva a bater nos vidros da janela, a cair no telhado e nas coberturas de latão dos anexos. O lume dos corgos de ervideiro; as brasas dum vermelho incandescente. Sentados no escano; à lareira. Como se as coisas começassem a ser inventadas. Como se o mundo estivesse a começar. Como se alguém dissesse: aqui a água, aqui o fogo. O odor dos grelos e da carne cozida; o pão de centeio; o vinho palhete; o lume dos corgos de ervideiro; as brasas dum vermelho incandescente. Lá fora continuava a chover. E era como se o mundo estivesse a nascer; como se algumas coisas ainda nem tivessem nome.