sexta-feira, abril 11, 2008

5.

Eu vinha da serra da Seixa a caminho do Padrão quando começou a chover. O dia estava cinzento e o vento da barra anunciava a chuva que acabou por chegar assim, abatendo-se de súbito num manto único de cumeada a cumeada. A noite aproximava-se. E no entanto era como se uma rede muito fina deixasse ver ao longe, translúcidas, as árvores das encostas e as primeiras casas da Vila. E, ao longe, quase noite, uma misteriosa luz parecia envolver as árvores da encosta e as primeiras casas da Vila. Tudo começou nesse momento: essa sensação estranha que haveria de acompanhar-me ao longo dos meses: essa sensação estranha de pressentir que pouco separa o milagre e o lodo, a ruína e a exaltação. Chovia. Era quase noite. A água gelava-me o corpo. Meti-me ao caminho de regresso e cheguei à taberna completamente encharcado. O Mendes estava atrás do balcão, a arrumar uma estante, e olhou-me como se olhasse um fantasma, uma dessas almas penadas tão frequentes nos relatos que haveria de escutar ao serão ao longo dos meses. Que estavam preocupados, que «nem imagina, senhor engenheiro», que temiam já que tivesse desaparecido numa ravina da serra. Subi ao quarto. Acendi uma vela. Despi-me, sequei-me, fiquei algum tempo deitado na cama a ouvir o barulho da chuva nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos. Fechei os olhos e imaginei a água a cair sobre o carvalho grande da Colina da Raia, a escorrer dos troncos brancos dos vidoeiros, a engrossar o caudal do corgo do Pereirinho, a lavar a sujidade das ruas, a erguer uma cortina contra as desordens do mundo. Percorria-me uma confusa felicidade. Como se visse a chuva pela primeira vez e a chuva caísse pela primeira vez nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos. Sentia-me feliz. E devo ter adormecido. Porque ouvia o ruído distante duma pancada que se repetia a espaços e só então percebi que batiam à porta.