domingo, abril 20, 2008

13.

Esperava ser recebido com animosidade. (Talvez não: este povo já não me era estranho.) Américo Fontes tinha começado por nos levar ao fundo do pátio: «gostava que vissem a vinha antes de bebermos do seu vinho.» Seguimos depois a um telheiro onde nos sentámos a aproveitar a leve aragem do crepúsculo. Eu não sabia como encetar a conversa; Américo falava de tudo menos de pinheiros e plantações. Falava do vinho: das uvas colhidas em Outubro, do modo como eram pisadas no lagar de pedra, da trasfega, do engarrafamento num dia de Março ou Abril em que não houvesse uma nuvem no céu, do chão de terra da adega onde as garrafas eram enterradas para que o Verão, o mês de Julho, um fim de tarde como este, a leve aragem do crepúsculo, permitissem desenterrá-las e trazer esse ligeiro gasoso, esse breve rumor das bolhas de gás a rebentar ao contacto com o ar, e depois se descobrissem na boca os sabores misturados da luz e da água, do calor e do vento fazendo ondular durante a noite os arames das vinhas. Falava do presunto: do modo como, cevado o porco com a lavadura aquecida nos pátios, morto e desmanchado, tinha ficado a defumar, primeiro a um lume vivo de giestas, guiços, lenha miúda, depois a um lume vagaroso de brasas de carvalho, até que se retirava dos lareiros da cozinha e se pendurava na adega, suspenso das traves de madeira, protegido do terror da varejeira por uma rede de serapilheira fina. Falava dos cabritos: criados nos pastos «por baixo do Voluntário, senhor engenheiro, como saberá», do cabrito que haveríamos ainda nessa noite de comer, assado em tabuleiros num forno em «lenha de carvalho, claro». A noite passou a correr. Américo não falou uma única vez de pinheiros e plantações. E à saída, quase sem dar por isso, ao despedir-me num agradecimento confuso, prometi que as pastagens seriam preservadas do avanço das plantações e semeaduras. «Que estivesse descansado.» Fernando achou «que a noite tinha corrido bem». Não sei. Eu continuava ausente. E não me saía da cabeça a imagem da filha de Américo Fontes: Leonor. Os seus olhos, as suas mãos, o seu rosto. Não me saía da cabeça a imagem de Leonor; sentada a meu lado; a levantar-se para ajudar a mãe, diligente, a trazer mais vinho, cabrito, batatas assadas num forno em brasas de carvalho. Leonor: nunca mais a vira desde esse dia distante na Presa das Tílias, na margem esquerda do Terva, deitada, nua, protegida na tarde de Primavera indecisa por um maciço de arbustos de arando.