segunda-feira, abril 07, 2008

44.

Quando a manhã avança para o meio dia (conta Maria Teresa e eu acrescento um ponto), e a camioneta da carreira leva enfim atrás de si o tisne e a fuligem, e a luz regressa às folhas recortadas da sempre-noiva, e os gatos da Emília se estiram na pedra do jardim dos Correios, Lalice fica por algum tempo na pedra da entrada do armazém de mobílias a olhar os campos da veiga e a Encosta dos Matos, o polígono apertado da Vila e o céu muito baixo, mesmo quando o céu de Setembro se ergue leve e azul a uma distância sem medida, as ruas apertadas e sujas com galinhas a debicar na terra fresca da base dos muros, homens sem rumo com varas de aguilhada no ombro direito ou de chapéu rodado nas mãos a sair do edifício das Finanças ou da secretaria da Câmara, e sente que nenhuma razão o impele a mover os músculos, a erguer-se da cama cedo de manhã, a deitar-se, a gritar ou a correr pelos campos lavrados das Trindades. É certo que o armazém dista escassos quarenta metros da Pensão Americana e que a vê todos os dias, a ela, Fernanda, chegando-se à rua ou atrás dos vidros da janela grande a compor o cortinado, e que quase sempre almoça junto dela, e às vezes janta, e às vezes partilha o serão, e que é com Fernanda que faz amor quando se deita em casa da Rute numa esteira muito suja ou com uma puta desconhecida do Caneiro, e que tantas vezes ficam por algum tempo sentados à mesa a discutir os episódios do último romance francês da biblioteca de Carlos, o Alferes, que ambos lêem, um depois do outro, e que os aproxima no segredo de uma história feliz ou de uma traição, como se uma história feliz ou a traição das páginas de um livro fossem parte de uma outra história que poderiam ter vivido juntos. Mas não é a mesma coisa. Lalice perdeu a ilusão de que tudo poderia ser diferente, de que tudo poderia começar de novo: antes da chegada da camioneta da carreira, antes da tempestade. Não. Já nada poderia ser a mesma coisa depois dessa noite de há muitos anos em que topou com o engenheiro na cama de Fernanda, e o obrigou a sair da Pensão e a subir à Colina da Raia, e o suspendeu de uma corda carral, e o queimou com um archote aceso até o seu rosto ficar irreconhecível.