quarta-feira, abril 16, 2008

9.

O frio do Inverno parecia aguardar que a chuva deixasse a abóbada do vale. Os dias eram claros e azuis, e as noites desenhavam no céu todas as estrelas do mundo. Ao fim da manhã, durante o início da tarde, o sol chegava a ser agradável. Mas logo depois, antes ainda do crepúsculo, o frio era difícil de suportar e as crianças iam abandonando as ruas. A sala contígua à taberna passou a ser o meu escritório. Aí comecei a receber as primeiras pessoas. Não obstante a hostilidade com que continuavam a olhar-me, sem intimidades nem um sorriso, começavam a aproximar-se, a saber das condições de trabalho. A escassez empurrava-os para a inevitabilidade de participação num processo que temiam acabar por voltar-se contra eles mesmos. Falavam pouco, escutavam o que era de ouvir, não chegavam a sentar-se. E foi então que ele apareceu. Fernando era um jovem de não mais que vinte ou vinte e um anos. Tínhamos falado algumas vezes. Sentava-se a meu lado; olhava com curiosidade as cartas topográficas; fazia perguntas. Pois nessa tarde atravessou a cortina que separava a taberna da sala contígua e, numa voz decidida, como se as suas palavras revertessem de muita reflexão e fundadas certezas, atirou-me de chofre: «o senhor engenheiro está a olhar para o seu futuro encarregado geral.» Nunca ninguém me tinha falado assim; num tom que não admitia réplica; olhando-me de cima, olhos nos olhos. E, ainda não refeito da surpresa, intuí de imediato que acabava de ganhar um aliado e que se iniciava uma decisiva fase do processo. Os homens, de facto, começaram a aparecer em catadupa, a inscrever os seus nomes, e depois a pedir um lugar para as suas mulheres e os seus filhos. Confiavam nele; na sua voz decidida; nos seus argumentos a favor do progresso; no modo como descrevia um mundo novo, sem miséria, sem crianças descalças a correr nos muros do cadastro ou nos taludes de saibro dos caminhos.