domingo, abril 13, 2008

8.

Era como se o Inverno deixasse a Vila entregue aos seus fantasmas. As pessoas quase não saíam à rua e havia uma sombra que delimitava o mundo conhecido: das cumeadas da Serra da Seixa à Raposeira, do Alto do Barco de Pedra à Colina da Raia. O mundo, subindo a Encosta dos Matos a caminho do Voluntário, parecia terminar nessas fragas erguidas contra a linha do horizonte como se mais nada existisse na imensidão da terra e do céu; como se a partir daí tudo fosse silêncio e vertigem. Os dias de chuva sucediam-se. É impossível esquecer esse rumor de fundo da água a bater nos telhados das casas e a correr nas bermas dos estradões. A noção de tempo, de passagem do tempo, começava a perder-se e a misturar as coisas do passado e do presente, do presente e do futuro. A chuva caiu durante meses seguidos, ou durante semanas seguidas, não sei. Mas um dia, de forma imprevista, o céu amanheceu sem uma única nuvem, claro e azul. Saí à rua; desci o caminho do largo do Toural, passei a curva do Noro, cheguei ao muro de pedra de Onde se Juntam os Rios, continuei na margem direita do gralheiro ao longo do Terva, cheguei finalmente ao açude da Presa das Tílias. E aí fiquei, rendido ao milagre do mundo que começava a nascer, a olhar a névoa a levantar-se da terra ainda molhada, a ouvir os pássaros que tinham regressado aos ramos das árvores, a ver a luz poisada nos caules das ervas e o brilho da água a correr no remanso a jusante da presa por entre os seixos rolados do fundo. E foi então que a vi. Ela estava na outra margem, protegida de quase todos os lados por uns arbustos de arando, nua, deitada sobre a própria roupa que estendera no chão. Os seios erguidos, as pernas ligeiramente flectidas, a mão direita poisada no sexo. Quase não se movia. Os olhos fechados, a cabeça inclinada para trás, o sol a iluminar o seu corpo como se mais nada à face da terra pudesse reflectir essa luz vigorosa. A aparição de um corpo nu deixou-me interdito. Habituado à sombra e aos modos rudes das pessoas, tendo ainda presente na memória o cheiro a merda que se misturava no ar daquela manhã em que cheguei à Vila, habituado à lama e à sujidade das ruas, a ideia de um corpo nu, belo, perfeito, rendido ao desejo, era quase inverosímil. Ela estava deitada e tocava o sexo com a mão direita, vagarosamente, movendo-se em gestos quase imperceptíveis, inclinando a cabeça para um dos lados, distendendo os músculos atados ainda à sombra espessa do Inverno que parecia ter terminado naquele preciso instante para que o mundo pudesse começar de novo. Fiquei durante algum tempo a olhá-la, escondido por detrás de um amieiro que subia contra o céu desde as suas raízes enterradas no leito do rio, excitado, interdito, suspenso dos seus mínimos gestos e da sua respiração que começava a ser descompassada. Fiquei a olhá-la; a olhá-la até ouvi-la gritar; a olhá-la até que foi regressando de novo a si mesma, até que se levantou e ergueu o corpo nu em todo o esplendor do desejo, até que se vestiu e seguiu pelo carreiro que leva à Encosta dos Matos. Esse mesmo carreiro que haveria de passar pela Colina da Raia, descendo depois ao Padrão, regressando enfim à curva do Noro e à entrada da Vila.