18.
Encontrei Leonor várias vezes depois dessa noite. Um segredo juntáva-nos e delimitava um território que nos separava do mundo. Escrevo estas notas no dia 17 de Novembro de mil oitocentos e noventa. Cheguei à Vila (parece mentira) exactamente há um ano. Tudo, entretanto, mudou. A minha vida mudou. O mundo mudou, como muda sempre, à medida que as nossas vidas mudam e as mudanças das nossas vidas mudam o mundo em que vivemos. O Inverno trouxe a chuva, de novo, e o barulho da chuva caindo nos telhados e nas coberturas de latão dos anexos; o Inverno trouxe a geada e esse silêncio quase mágico das coisas suspensas das folhas e dos ramos dos arbustos da serra; o Inverno trouxe a primeira nevada do ano, esse branco quase azul de tão branco que cobre as ruas e as casas, os taludes dos caminhos e os muros, as margens das ribeiras que descem dos montes entre o sobressalto e a quietação dos vales. Estava frio. Uma nuvem densa anunciava a tempestade. Eu tinha-me metido a caminho das pastagens por baixo do Voluntário. Era ao fim da tarde. Subi pelo carreiro do Lajedo, cheguei ao bosquete de carvalho-negral, segui arrumado à vedação do muro de pedras. E foi então que a vi. Ela sorriu; como se me esperasse; como se me esperasse desde o fundo do tempo. Sorriu. Eu disse «boa tarde». Embaraçado, confuso. «Como está, Leonor?» Não me respondeu. Tinha uma navalha nas mãos. Virou-se ligeiramente e esculpiu um coração trémulo no tronco branco de um vidoeiro. Só então me olhou de frente. Eu via a tarde a descer as encostas, uma nuvem de sombra a poisar na copa mais alta das árvores. Aproximei-me. E compreendi que esse coração trémulo haveria de ficar gravado na minha pele como uma cicatriz ou uma doença do corpo.