sexta-feira, abril 04, 2008

42.

Dona Carmo. Carminha. Arnaldo Adão, o Lindinho, lembra-se de subir a avenida de Sangunhedo numa corrida; a puxar as golas do sobretudo contra a chuva imprevista. Era uma manhã de domingo; prometera ajudá-la na preparação do jantar dessa noite: nos arranjos de mesa, nos ambientes de luz, nos canapés, nas tartes de noz. «Bem vê, Arnaldo. É a primeira vez que o comité das senhoras reúne em minha casa; não gostaria de desmerecer.» A chuva imprevista, uma bátega de primavera indecisa. Chegou a escorrer água. «Meu Deus, tem que despir já essa roupa, secar-se.» Arnaldo não dizia uma palavra. Não movia um músculo. Carminha aproximou-se. Tirou-lhe o sobretudo encharcado, a camisola molhada. Um perfume leve inebriava-o. Um perfume estranhamente familiar desprendia-se daqueles pulsos muito finos, das suas veias azuis. Ficaram ambos parados. Olhavam-se como quem procura desprender-se de uma mágoa antiga. Carminha estendeu a mão esquerda, mordeu o lábio inferior, tocou-lhe na face muito devagar. Um dilúvio. O barulho da água no telhado, a adivinhar-se contra os vidros das janelas para além dos cortinados corridos, na Ribeira do Fontão, na Encosta dos Matos. Um diante do outro. O vestido de Carminha a cair a seus pés. Lá fora um dilúvio. Ela pegou-lhe na mão, levou-o para o quarto, entraram no quarto, na penumbra do quarto, a chuva puxada pelo vento da barra. Como se tivesse que ser. Como se estivesse escrito nas folhas dos negrilhos. O seu corpo nu a desprender um perfume leve, um perfume estranhamente familiar. O mesmo perfume da Joaninha Custódio, da roupa interior da Joaninha Custódio, recordou-se finalmente Arnaldo Adão, o Lindinho, distraído por instantes, antes de acabar de se despir e se deitar a seu lado.