domingo, abril 13, 2008

7.

Os dias sucediam-se entre o fascínio das deambulações pela serra, o abrigo dos serões à lareira e uma hostilidade quase generalizada. A sala contígua à taberna passou a ser o meu escritório. Revia os levantamentos topográficos, confirmava os carreiros da exígua rede de caminhos de cabras, escrevia memorandos para Lisboa. O planeamento dos trabalhos confrontava-se com o problema da distância e do isolamento, com as dificuldades de comunicação, com a aquisição de equipamento, com a gestão das plantas de viveiro e das sementes de penisco. Mas cedo compreendi que a grande questão haveria de ser outra: como recrutar trabalhadores e encarregados? O que parecia fácil, em vista da miséria desta gente que vivia como bichos, era afinal o maior obstáculo. Havia a desconfiança no desconhecido, claro: em mim e neste processo de transformação da paisagem que eu lhes garantia ser a base de um futuro digno, recompensador. Isso, essa desconfiança, era visível desde o início. Pensei que seria uma questão de tempo até que esmorecesse. E no entanto acentuava-se à medida que se ia compreendendo o verdadeiro alcance da minha missão. Porque a floresta pertencia a todos: e isso exigia a minha própria compreensão das coisas do mundo. A floresta estava em todas as coisas; em todas as coisas de todos os dias: nas portas e nas janelas das casas, nos bancos e nas mesas, nos caibros, nos armários, na masseira, no tendal, no calçado, na lenha da lareira, no arado, na forquilha, no engaço, na gadanha, no cabo da enxada, nos matos, nas pastagens, nas gamelas, na comida, nas colmeias, no berço, na cama, no caixão, nos ladranhos dos carros de bois, nas rodas dos carros, nos estadulhos, nas chedas, nos eixos, nas travessas, nos lareiros das cozinhas, na vara de aguilhada, na prensa do lagar, nas aduelas, nos cântaros de almude, nos cestos, nos rosários, no andor de Nossa Senhora. Eu dividia-me. Este era o mundo que um plano feito em Lisboa ameaçava ruir.