3.
[Modernidade, num determinado tempo antigo, significava humanismo: o conceito separava da vasta barbárie a minoria dos que partilhavam os valores da vida e da dignidade e lutavam pela liberdade e os direitos do homem (palavrão, lugar-comum). A modernidade, hoje, confunde-se com a cultura de massas; hoje somos todos modernos (ou ainda menos). Compreender-se-á que a grande exigência do nosso tempo não seja outra que a de nos libertarmos desta modernidade rasca (varrendo-a) sob pena de chafurdarmos todos nela. Um dos caminhos (não o único) para desatar os nós da urdidura passa pela reinvenção da nossa relação com o meio em que nos movemos. Quem são os modernos de hoje? Imagine-se o blogger moderno (nascido, é um supor, em 1975) a ler um texto sobre um mundo que já não existe em que um lenhador deseja uma mulher e em que os amieiros e os freixos da margem do rio servem de enquadramento à cena. O blogger moderno, vindo de comprar umas calças modernas numa loja das periferias urbanas de Lisboa iguais às calças compradas pelo adolescente de Pequim ou de Manchester ou pelo cota de Baião, não apenas haverá de sorrir como, superior, sobranceiro, resistirá com dificuldade a um comentário displicente. Do género: «Ela adivinha o quanto ele a deseja… com o pescoço no cepo. Assim a carga dramatica seria muito melhor! Ah ah eh eh eh» Este seria um comentário digno, verosímil, do blogger moderno que vem de fazer um download pirata (relevem-se as dificuldades ortográficas do comentário). Acontece que o lenhador desse mundo que já não existe estava certo com o seu mundo e aprendia a evoluir dentro dos condicionalismos geográficos, temporais, culturais, em que vivia; o blogger moderno não sabe quanta da urina que mijou ontem vem no copo de água que acabou de beber, e os condicionalismos culturais e ambientais em que se move são os que ele mesmo, ululante, prescreveu. O lenhador dos anos sessenta tem um caminho a percorrer, embora sem consciência perfeita do caminho que percorreu e do caminho que lhe falta percorrer; o blogger moderno julga conhecer o chão que pisa e não intui que, não obstante encontrar-se em plena corrida e pronto para a aceleração, o mais certo é que bata com os cornos contra uma parede invisível erguida (por ele) no caminho que ele mesmo escolheu percorrer.]