quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Capítulo IV

(Onde Aline escreve sobre memórias dispersas)

1.

Deus, a que outros chamam Natureza, formou e aplanou as montanhas, deformou os materiais que tinha sedimentado, colmatou bacias, comprimiu os relevos, juntou e separou blocos continentais, formou fossos tectónicos, afastou continentes, fez o mar avançar pela terra dentro e depois afastar-se; concebeu a chuva e o relâmpago, a neve e o fogo, o poço e a nuvem, a geada e a luz, o dia e a treva; criou os peixes e as aves, os escalos e os gaios, a truta e a calhandra; criou a raposa e o saca-rabos, o cão e a salamandra, a galinha e o lobo, a lebre e o texugo; criou os carvalhos e as faias, a aveleira e o escalheiro, a madressilva e o trovisco, a salsaparrilha e o codorno, a urze e o tojo, o azevinho e a bétula; criou finalmente o Homem para que tudo comandasse; e depois, cansado, retirou-lhe uma costela e criou a Mulher. O mais certo é que fosse já tarde; que a fadiga lhe impedisse a perfeição final. E então, dando a tarefa por terminada, coibiu-a de sentir o desejo e de experimentar o prazer.