domingo, fevereiro 17, 2008

Capítulo II

(Onde o dr. João Marcos fala do pai de Aline e de um amor tocado pela tragédia)

1.

Claro (conta o dr. João Marcos) que o conheci. Vivemos em casas contíguas. (Não, ele não vivia com os pais. Peço desculpa, mas isso é outra história; e não vem ao caso.) Se éramos amigos? Sim. Quer dizer. A amizade é hoje um conceito volúvel; a frivolidade uma das principais características deste tempo que me foi dado ainda viver. A amizade, então, era um objecto raro. Não sei se deva dizer que a amizade nos tocava um ao outro. Conhecemo-nos, partilhámos uma infância que hoje não saberia classificar entre a ferida e a felicidade, a sombra e o iluminado êxtase. Corríamos nas encostas da urze e nas veredas que seguiam da escola a caminho do vale, pescávamos trutas palmeiras no regato do Covas, guardávamos gado, ajudávamos no campo, armávamos esparrelas aos melros. Mas eu saí cedo. A cidade. Os estudos. O meu tio queria fazer de mim um homem. Eram essas as suas palavras. O meu pai acabou por ceder. O meu tio dizia que as raízes dos negrilhos se misturavam em nós e nos agarravam à terra. Que era preciso cortar cerce essa matéria vegetal incombustível. Para que a pele e o chão da aluvião não acabassem por misturar-se e confundir-se. Mas eu regressava muitas vezes. Sempre que podia. Nos dias festivos. No Verão. Eu era o seu confidente. O pai da Aline contava-me tudo. Pedia conselhos. Partilhávamos medos, júbilos, apreensões. Sim, talvez possa dizer que éramos amigos. Mesmo considerando que a amizade era então um objecto raro, precioso, singular.