quarta-feira, fevereiro 20, 2008

2.

A infância passou a correr (conta o dr. João Marcos). A infância é um vórtice, um tempo sem cronologia. A infância, verdadeiramente, não existe. A infância é a memória que guardamos dela num tempo futuro. Passa sempre a correr. Passou a correr e eu saí a caminho da cidade. Saí cedo, como lhe disse. Mas tarde de mais para que fosse já possível cortarem-me por inteiro as raízes dos negrilhos que se misturam em nós. Por isso fiquei a fazer parte da terra, agarrado a ela por laços invisíveis e inverosímeis. Regressava muitas vezes. O pai de Aline procurava-me sempre. O fascínio da cidade é imenso num jovem que vive na montanha, afastado do mundo, por detrás de demoradas cumeadas que se sucedem e perdem na distância entre o cinzento e o azul ténue da melancolia. Ele queria saber do mar e das avenidas, das mulheres e dos aviões, dos barcos e da iluminação das praças e dos grandes edifícios do comércio. Sentia o apelo forte do desconhecido mundo. Veja como são as coisas: sentia esse apelo forte e teve várias oportunidades de sair; quase todos os jovens do nosso tempo acabaram por sair. Mas não. Foi ficando, ficou sempre, ficou para sempre. O mais certo é que fosse tarde: que as raízes dos negrilhos se tivessem já misturado, irrevogáveis, à sua pele e ao ar que respirava.