sábado, fevereiro 23, 2008

5.

O tempo raramente cura as feridas. Mas as feridas ficam e o tempo corre. O pai de Aline (conta o dr. João Marcos) acabou por acordar o casamento com a irmã de Luísa. Ana Paula tinha uma beleza e uns modos que não ultrapassavam os limites do decoro. A aldeia não sentiu os perigos insustentáveis da lascívia ou do prazer ostensivo (Luísa desaparecera para sempre). A aldeia, aliviada, estendeu-lhe um chão de alecrim e alfazema a caminho da igreja; ergueu-lhe grinaldas e arcos de loureiro e vinha-virgem. Era um dia muito quente de meados de Maio. Sem uma nuvem. Claro, quase transparente nas mãos inclinadas contra o horizonte. O ar iluminado e leve até à iridescência. Ana Paula entrava na igreja quando se ouviu um grito. As aves ergueram-se dos ramos dos freixos do largo. A aldeia, num sobressalto, correu ao adro: uma criança destapava um lençol de linho na pedra do cruzeiro e o corpo de Luísa, como se estivesse ainda vivo, os olhos abertos e fundos, estendia-se imóvel no chão do fim da manhã de Maio como uma aparição do desassossego.